Renato Dagnino
Minha percepção é que a universidade possui uma visão de ciência muito semelhante daquela que há pouco critiquei. Ela percebe a ciência como possuindo um motor de crescimento que guiaria seu desenvolvimento de acordo com leis próprias, definidas endogenamente. E para que esse motor funcionasse bem seria necessário que se mantivesse isolado em relação à sociedade. Essa seria a única forma através da qual a ciência pudesse se desenvolver de modo verdadeiro e eficaz. Vocês, pelo menos os mais jovens, devem estar pensando: Puxa, mas existe gente assim? Leiam com atenção o que aparece na mídia sobre C&T. Saiam por aí, pelo nosso campus, conversem com seus colegas e professores (os que não vieram a este seminário, é claro), e vejam como a maior parte deles pensam dessa forma.
É possível entender essa visão a respeito de como seria a trajetória através da qual a ciência se desenvolveria como Darwinista. Segundo ela, a tecnologia, que nada mais é do que a ciência aplicada, por estar baseada num conhecimento cada vez mais verdadeiro, melhor, seria, também cada vez mais eficiente. Isto é, da mesma forma que a ciência busca a verdade, a tecnologia busca a eficiência. De novo, a única variável desse modelo é o tempo. Assim, a última tecnologia (baseada na última descoberta científica) seria a melhor; e todas as outras seriam atrasadas, obsoletas, não valeriam nada. E aquela, por ser a melhor, vai eliminar todas as outras. E quem não se apressasse em utilizá-la estaria condenado ao atraso, não importando os impactos nocivos de qualquer ordem que ela poderia determinar nas sociedades que a adotam. É nessa visão mecanicista, linear, determinista e acrítica que está baseado o conceito de “tecnologia de ponta”, de “alta tecnologia” que muitos endeusam sem entender o que está por trás dele.
A idéia de que uma tecnologia tem “ponta” e que outras são “rombudas”, de que algumas são altas e outras baixas, busca, na realidade, substituir a noção de que algumas tecnologias são adequadas para determinados fins e não para outros. E a dificultar a percepção de que algumas são funcionais para a reprodução do capital, mesmo que em detrimento de valores morais, ambientais etc. Mas essa concepção ideologizada do fenômeno cientifico tecnológico, como tantas outras presentes no nosso quotidiano, é hegemônica. E, por isso, muito difícil de contestar.
A universidade, então, entende o desenvolvimento da C&T como sendo neutro, não influenciado pelo contexto social. Neutralidade que pode atuar de forma passiva, sem nenhum impacto enviesado na manutenção ou fortalecimento do poder de algum ator social presente no contexto em que ela é gerada. Ou ativa, determinando através de seu impacto a forma que a sociedade assumirá 4.
Caricaturando a partir dos desenhos animados, a ciência seria como uma espada. Se Peter Pan conseguir pegar do chão a espada do Capitão Gancho, ele poder matá-lo, pois a espada (como seria a ciência) é neutra: serve aos interesses de quem a tiver manejando. Levando essa imagem á frente, eu diria que a ciência é muito mais parecida com uma vassoura de bruxa. A vassoura de bruxa só voa com a “sua” bruxa. Se alguém que não ela tentar montar na vassoura de uma bruxa, a vassoura derruba o desavisado que pensou que ela era “neutra”.
Olhando a história vamos encontrar situações que se assemelham a essa caricatura. A tecnologia e a ciência gerada no capitalismo e importada pela União Soviética dos anos vinte não pôde ser usada com sucesso para ajudar a construir o socialismo nascente. Parece que ao tentar fazer com ela funcionasse num contexto marcado por relações técnicas e sociais de produção esqueceu-se que ela precisava para tanto de uma forma de organização do trabalho capitalista, com patrão, gerente e tudo o mais. Sem aprofundar a questão, vale lembrar autores marxistas contemporâneos críticos do socialismo real que entendem a degenerescência burocrática do estado soviético como resultado da introdução de forças produtivas capitalistas numa sociedade já em processo de trânsito ao socialismo, com os meios de produção na mão do Estado sem assalariados etc. Ou seja, esse conflito entre forças produtivas capitalistas e relações sociais de produção terminou impondo a criação de um sucedâneo do capitalista - o gerente que já não podia existir. Assim, como a tecnologia demandava, em função de suas características de segmentação, hierarquização e controle, a figura do gerente, criou-se o burocrata. E esse burocrata através do controle que exercia, ao operar a tecnologia capitalista, sobre o processo de produção na fábrica, terminou reproduzindo no âmbito maior da sociedade uma diferenciação social semelhante àquela que existia no capitalismo. E, finalmente, inviabilizando a transição para o socialismo.
Numa outra visão, a neutralidade seria ativa, ou seja, a ciência e tecnologia determinariam a dinâmica socioeconômica. É a visão que mais se aproxima do determinismo marxista contida na célebre frase de Marx de que o surgimento do capitalismo teria sido uma conseqüência da introdução da máquina a vapor. Da mesma forma com o feudalismo teria sido viabilizado pelo estribo e pelo arado, como historiadores identificados com a corrente determinista sustentam. Como se o desenvolvimento das forças produtivas fosse o responsável pela sucessão das formas de organização da sociedade, pela sucessão dos modos de produção.
Como a universidade se organiza para desenvolver conhecimento? Como é que e a universidade faz pesquisa? Ela orienta-se por uma pretensa cadeia linear de inovação. Cadeia que se inicia com a pesquisa básica, depois com a aplicada, depois o desenvolvimento tecnológico, depois o econômico e o social e aí vamos todos para o céu! 5
Quer dizer, tudo depende da pesquisa básica. Se nós tivermos boa pesquisa básica, de excelência, como se costuma dizer, se formarmos recursos humanos de qualidade, nós desencadearemos um processo auto-sustentado que nos levaria ao bem-estar da sociedade. De novo, essa visão, assim apresentada, deve arrancar de muitos de vocês uma exclamação: “meu Deus do céu, será que tem gente que pensa assim?”. Tem, e é maioria.
A concentração do esforço no lado da oferta, para tornar a universidade capaz de oferecer conhecimento à sociedade, é vista pela comunidade de pesquisa como a sua única responsabilidade. Se a sociedade utiliza ou não esse conhecimento, não é entendido como um problema seu. Se ela não é capaz de absorvê-lo para produzir mais e melhor, se os empresários, por não possuírem uma “cultura da inovação”, não demandam o que é produzido na universidade, isto não é visto como um problema do tipo de conhecimento que é oferecido. Não é um problema do modo como a agenda de pesquisa é formulada. Afinal, só existe uma maneira de fazer ciência de qualidade. E só um modelo, o ofertista-linear, para organizar a atividade de pesquisa.
Se a sociedade não utiliza o conhecimento produzido na universidade, o problema é da sociedade. Não é a universidade que tem que produzir um conhecimento que seja do interesse da sociedade, que ao fim, ao cabo, é quem a sustenta. A comunidade de pesquisa, de forma tautológica, pensa o contrário: para resolver esse problema da sociedade é necessário que ela dê mais valor à ciência. E, para que isso aconteça, a universidade precisa oferecer mais conhecimento à sociedade. A universidade tem que fazer uma cruzada para converter a sociedade, para ensiná-la que ciência é uma coisa positiva, é uma coisa boa, é uma coisa que deve ser valorizada.
Então, condicionada pelos problemas estruturais de nossa condição periférica, e focada, na qualidade, na pesquisa de ponta realizada nos países centrais, a nossa universidade busca emular um padrão de fazer ciência que pouco tem a ver com nossa realidade. E tenta legitimar-se, não com a nossa sociedade, com as nossas unidades produtivas, com a nossa floresta, com os nossos minérios, como ocorre nos países avançados. Ao contrário, ela busca identificar-se, legitimar-se, com os seus pares no exterior. Quanto mais publicar nos journals da moda, reconhecidos pelo Science Citation Index e conformar-se ao mainstream da pesquisa dos países avançados, melhor para a nossa comunidade de pesquisa. Mais ela será reconhecida pelos seus nossos pares no exterior e, ao menos até agora, pela nossa própria sociedade.
Nossa comunidade de pesquisa decidiu que carreira acadêmica deve depender de onde os pesquisadores publicam seus papers: publicado no exterior vale x, publicado no Brasil vale x, menos delta x. Qualquer ator social, e a comunidade de pesquisa é um ator social, possui interesses. E ela vai orientar a política cientifica e tecnológica, quanto mais ela puder, no sentido de atender aos seus interesses.
A universidade, como outras instituições, se organiza baseando suas decisões na opinião, faro, prestígio e poder dos seus líderes e suas redes invisíveis. Por que se faz tal pesquisa e não outra? Por que se dá tal tipo de aula e não outro? Ora, porque alguém disse que tem que ser assim. Mas baseado em quê? Em argumentos racionais? Não, baseado em faro, em prestígio. Na universidade, o poder de quem decide é construído a partir de prestígio acadêmico. O que significa estrita observação desse modo de organização e daquelas regras subjacentes as quais se fez referência.
Em outras palavras, o professor pesquisa, pesquisa, pesquisa, orienta, orienta, orienta, publica, publica, publica e, a partir de um determinado momento, em função do prestigio acadêmico que ele granjeou, passa a ser um chefe de departamento, um diretor de unidade, um reitor, etc. Esse mecanismo de acumulação de poder, baseado no prestigio, não tem nada a ver com algo racional, com uma capacidade técnica para decidir sobre qual tipo de atividade de pesquisa e docência é mais adequado para a sociedade.
A comunidade de pesquisa considera que esse mecanismo garante trajetórias ótimas contra a contaminação não-cientifica, e o que a universidade mais tem medo é da contaminação não-cientifica. Aqui, no território da ciência, se busca a verdade. E isto torna desnecessário um processo de tomada de decisão racional. A idéia de que a liberdade acadêmica e a qualidade são suficientes para pautar o desenvolvimento da universidade, costuma traduzir-se na recomendação de que planejar é pior do que não planejar. A falta de confiança no planejamento leva a que a universidade não estabeleça uma política de pesquisa, não discuta o profissional que forma. E, em conseqüência, corre o risco de formar gente para o passado, não para o presente e muito menos para o futuro.
A política de pesquisa é formulada por default, ela não é programada, é o resultado de um conjunto de projetos amorfo, porém sempre aderente às características da Tecnologia Convencional. Não há uma agenda de pesquisa, no sentido estrito da palavra, há uma decisão por omissão 6.
Resumindo: a universidade reforça, de uma maneira sutil, aparentemente natural, enraizada no mito da neutralidade da ciência e em função do contexto sócio econômico que o engendra, a Tecnologia Convencional.
Bom, se nós parássemos aqui, podíamos ir embora para casa: essa coisa de Incubadora de Cooperativas não vai dar certo mesmo. Não tem jeito, está tudo ao contrário. A ciência vai no sentido contrário, a universidade a percebe de uma forma equivocada, se organiza de uma forma que reforça a Tecnologia Convencional...
4 Faço um tratamento detalhado deste tema em Dagnino, Renato (2002): Enfoques sobre a relação Ciência, Tecnologia e Sociedade: Neutralidade e Determinismo. In Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a ciência e a cultura, Sala de Lectura CTS+I de la OEI, disponível em http://www.campus-oei.org/salactsi/index.html.
5 Faço um tratamento detalhado deste tema em Dagnino, Renato (2003): A Relação Universidade-Empresa no Brasil e o “Argumento da Hélice Tripla”. Revista Brasileira de Inovação, Rio de Janeiro, Finep, v.2, n:2, pg. 267-308, jul./dez.
6 Faço um tratamento detalhado deste tema em Dagnino, Renato e Gomes, Erasmo (2003): O Processo Decisório na Universidade Pública Brasileira: uma visão de Análise de Política. In: Sobrinho, D. J. e Ristoff, I. Dilvo: Avaliação e Compromisso Público. Insular, Campinas, p. 159-187.