1. Introdução
O microcrédito é um crédito destinado a pequenos negócios de propriedade de pessoas de baixa renda, para investimento nas atividades produtivas e geração de trabalho e renda nesses micro-empreendimentos. Tradicionalmente, o público de baixa renda possui acesso restrito a crédito e outros serviços financeiros no setor bancário tradicional, geralmente por não possuir patrimônio suficiente a ser oferecido como garantia nas operações creditícias nem empreendimentos formalmente registrados. O microcrédito busca atender a esse público, adotando, para isso, metodologias específicas que visam suprir a escassez de garantias e as necessidades diferenciadas dessa clientela. Ele constitui parte de um conjunto mais amplo de serviços financeiros ofertados à população de baixa renda denominado microfinanças.
Nos últimos tempos, o microcrédito tem sido apontado como uma alternativa eficaz para redução da pobreza no mundo (Yunus, 2002) e promoção do desenvolvimento econômico e social através do combate ao desemprego e geração de renda. Ele foi estabelecido no âmbito das políticas institucionais de alívio à pobreza protagonizadas por organismos internacionais, ganhando grande destaque, principalmente, a partir do lançamento da Conferência Global sobre Microcrédito, em 1997, que em seu plano afirma o crédito como um instrumento central no combate à pobreza (Microcredit Summit, 1997).
A despeito do entusiasmo e do grande potencial atribuído ao microcrédito no combate à pobreza e seus males, alguns trabalhos empíricos evidenciam que o microcrédito não exerce impactos tão positivos como se propaga e que possui pequena penetração junto às camadas mais pobres da população.
Diante de tímidos resultados apresentados pelo setor, provedores de recursos e organismos de apoio começam a cobrar que as instituições de microcrédito, em sua maioria entidades sem finalidades lucrativas, apresentem bons indicadores econômico- financeiros de performance. O argumento subjacente a essa postura é de que boa performance financeira se converte em resultados sociais efetivos no combate à pobreza, havendo uma relação de causalidade. Como resultado, do foco em recursos subsidiados e doações, as instituições de microcrédito se tornam cada vez mais voltadas para a busca de resultados financeiros e operacionais, visando assegurar sua auto-suficiência e viabilidade financeira.
O propósito desse artigo é analisar, através de literatura existente sobre o setor, algumas implicações para a estrutura e operação das instituições de microcrédito decorrentes da atual ênfase em resultados financeiros, bem como para concretização de sua missão social de combate à pobreza. Especificamente, pretende-se investigar sobre a possível existência de uma nova lógica subjacente às ações das organizações, diferente daquela exclusivamente orientada por valores substantivos de combate às mazelas sociais, presente na origem do microcrédito; e verificar, com base em evidências da literatura, a compatibilidade ou não entre a busca da viabilidade financeira e o alcance da população mais pobre, que é um objetivo eminentemente social.
O campo microfinanceiro teórico e prático é dividido entre welfaristas, corrente que advoga existir uma incompatibilidade entre propósitos sociais e financeiros; e institucionalistas, que postulam a complementaridade entre o objetivo de combate à pobreza e a ênfase na auto-suficiência e em resultados financeiros positivos. Assim, investigar sobre a compatibilidade ou não desses dois propósitos equivale a buscar evidências na literatura que sejam condizentes com a tese welfarista ou com a tese institucionalista.
Inicialmente, proceder-se-á a uma discussão geral focada na busca de algumas respostas para os questionamentos apontados, baseando-se em resultados de trabalhos empíricos e teóricos da literatura sobre microcrédito/microfinanças e buscando explanar características, fatos e concepções teóricas mundialmente presentes e discutidas no setor. Em seguida será lançado um breve olhar sobre o setor microcreditício no Brasil, no intuito de verificar se podem ser apontadas semelhanças e/ou diferenças no microcrédito em nível nacional no que tange aos aspectos analisados.
2. Crédito, Microcrédito e Microfinanças
A palavra crédito é originária do latim creditu e significa, em sentido lato, segurança de que alguma coisa é verdadeira, confiança/crença, boa fama/reputação (Ferreira, 1995). Em um sentido econômico restrito, crédito consiste na entrega de valor (mercadoria, serviço ou importância em dinheiro) para pagamento futuro mediante promessa estabelecida (Silva, 1998). Define um instrumento de política de negócios a ser utilizado por uma empresa comercial ou industrial na venda de seus produtos ou por banco comercial, por exemplo, na concessão de empréstimos ou financiamentos (Silva, 1998).
Ao focalizar a base da pirâmide social e empresarial, o crédito pode ser utilizado como ferramenta de inclusão social, seja através de sua orientação para o consumo ou, de forma considerada mais nobre, ao prover recursos para atividades produtivas (Zouain e Barone, 2007). O microcrédito e as microfinanças situam-se no âmbito do acesso a crédito e outros serviços financeiros por parte de clientes de baixa renda.
Microfinanças compreendem um conjunto de serviços financeiros (poupança, créditos, seguros etc.), prestados por instituições financeiras ou não, para indivíduos de baixa renda e micro-empreendimentos (formais e informais) excluídos (ou com acesso restrito) ao sistema financeiro tradicional (Nitcher et al, 2002).
Segundo Soares e Melo Sobrinho (2008), do total da população mundial considerada carente, mais de 500 milhões são economicamente ativos. São pessoas que ganham a vida trabalhando por conta própria em microempreendimentos (negócios muito pequenos) ou como empregados informais desses pequenos negócios e produzem uma grande variedade de bens e serviços. Esses microempreendedores perdem a oportunidade de crescer com segurança, principalmente por não terem, geralmente, acesso a serviços financeiros adequados. Foi para preencher esta lacuna e atender a esse nicho de mercado que surgiu a indústria microfinanceira, focada na concessão de serviços financeiros especializados a pessoas de baixa renda.
A atividade de microcrédito é comumente entendida como principal atividade do setor de microfinanças pela importância que tem junto às políticas públicas de redução da pobreza e geração de renda (Soares e Melo Sobrinho, 2008). Principalmente no Brasil, a parte mais visível e desenvolvida do complexo conjunto de ferramentas microfinanceiras de geração de renda e combate à pobreza é o microcrédito (Parente, 2002).
Microcrédito consiste em um crédito de baixo valor destinado a pequenos empreendimentos mantidos por pessoas de baixa renda/pobres sem acesso ou com acesso restrito ao sistema financeiro tradicional, principalmente por não terem como oferecer garantias reais. É um crédito destinado a atividades produtivas e emprega, em sua concessão, uma metodologia específica que envolve grupos solidários e agente de crédito. É concedido por instituições financeiras tradicionais ou não, e tem como objetivo gerar trabalho e renda e melhorar condições econômicas e sociais do cliente (adaptado de Barone et al, 2002; Grameen Bank, 2008; Nitcher et al, 2002; Alves e Soares, 2004).
Embora os programas de microcrédito apresentem diferenças de um país para outro, existem critérios e características que distinguem o microcrédito (Grameen Bank, 2008). De forma mais detalhada, Barone et al (2002) e Alves e Soares (2004) mencionam os principais aspectos que caracterizam o microcrédito como uma modalidade específica de crédito e diferenciam-no do crédito tradicional:
- Crédito produtivo: microcrédito visa apoiar atividades produtivas de negócios de pequeno porte, mantidos por pessoas de baixa renda, não se destinando, portanto, ao financiamento do consumo.
- Crédito orientado: acompanhamento dos créditos concedidos realizado pelo agente de crédito (funcionário da instituição), que é o profissional que desempenha o papel de acompanhar o empreendedor antes, durante e depois de contraído o empréstimo.
- Sistema de garantias: emprego do aval ou fiança solidária como substitutos das garantias reais. O aval solidário consiste na reunião, em geral, de três a cinco pessoas com pequenos negócios e necessidades de crédito, que confiam umas nas outras para formar um grupo solidário, com o objetivo de assumir coletivamente as responsabilidades pelos créditos concedidos a cada um dos componentes do grupo.
Os microempreendimentos informais e, de uma forma geral, a população de baixa renda ou pobre possuem características que os tornam pouco atraentes como clientela para o sistema financeiro tradicional no que se refere à concessão de crédito. Fatores como vulnerabilidade econômica do tomador potencial, insuficiência ou ausência de colaterais a serem fornecidos para garantir o crédito e demanda de operações em baixo valor unitário fazem com que as instituições possuam altos custos para atender a essa clientela. Esses custos são incorridos na busca de informações consistentes sobre o potencial prestatário e seu negócio, de modo a fazer face aos altos riscos operacionais que esse mercado representa para a instituição.
Nesse sentido, as instituições de microcrédito, através de suas características peculiares e de suas formas de funcionamento específicas, buscam estabelecer laços de confiança com os tomadores no intuito de romper com o ciclo de falta de informação e o conseqüente alto risco operacional representado pelo potencial tomador (Yunus, 2002).
3. O ideário de combate à pobreza e a questão da sustentabilidade no microcrédito
O microcrédito se insere no contexto de políticas de alívio da pobreza protagonizadas por organismos internacionais, o que lhe confere uma aura de instrumento com forte geração de impacto socioeconômico. Ele se estabeleceu como política institucional e ganhou corpo e notoriedade quando, com o apoio do Banco Mundial, realizou-se, em fevereiro de 1997, a Microcredit Summit Campaign ou Conferência Global sobre Microcrédito que em seu plano afirma o crédito como um instrumento central no combate à pobreza. Assim, essa modalidade de crédito é, geralmente, visualizada como uma poderosa arma de combate à pobreza (Microcredit Summit, 1997; Grameen Bank, 2008; Elahi e Danopoulos, 2004).
A despeito do entusiasmo em relação ao microcrédito e da confiança nele depositada como instrumento no combate à pobreza, muitas discussões relacionadas a essa questão dividem o campo microfinanceiro, evidenciando também o ceticismo de alguns autores e estudiosos da área na efetividade do microcrédito na redução/eliminação da pobreza no mundo, principalmente nos países em desenvolvimento.
De fato, existe um amplo distanciamento entre a realidade e a promessa do microcrédito, uma vez que o impacto na redução da pobreza através do microcrédito permanece elusivo (Dichter, 2006). Evidências empíricas (Bhatt e Tang, 2001; Morduch, 1999, 2000 e 2008; Elahi e Danpoulos, 2004; Karnani, 2007; Shetty, 2008; Barone et al., 2002; Nichter et al, 2002) têm constatado um tímido poder de penetração da grande maioria das instituições junto às camadas mais pobres da população.
Inevitavelmente, a discussão desemboca na problemática do modo mais apropriado para a concretização desse objetivo, estando em voga nesse debate a questão da existência ou não de conflito ou trade-off entre dois objetivos primordiais: sustentabilidade financeira das organizações de microcrédito (objetivo econômico-financeiro) e alcance aos mais pobres (objetivo social).
Pesquisadores, gestores e estudiosos do tema se aglomeram em duas grandes correntes de pensamento divergentes no que se refere a essa questão “financeiro” versus “social” no microcrédito. Essas duas correntes de pensamentos são: institucionalistas e welfaristas (Woller et al, 1999; Morduch, 2000).
Os institucionalistas defendem possibilidade de plena conciliação do objetivo social de combate à pobreza com o aparato institucional de independência financeira. Segundo essa corrente, a auto-sustentabilidade financeira não deve ser tratada como um objetivo per se, mas como a maneira mais eficiente de se atingir a meta social de combate à pobreza. Eles consideram que, através da ampliação de escalas (operações de portes significativos), os custos operacionais unitários poderiam ser reduzidos de modo a proporcionar a sustentabilidade ou viabilidade das instituições de microcrédito concomitante ao alcance às camadas mais pobres. Não há, assim, segundo essa abordagem, um trade-off entre sustentabilidade da instituição e alcance dos mais pobres. Esses dois quesitos são, na verdade, complementares.
Nessa perspectiva teórica, o centro da atenção é a instituição de microcrédito, e o sucesso é galgado à medida que ela se torna financeiramente auto-suficiente e independente de subsídios. (Woller et al, 1999). Para os institucionalistas, a sustentabilidade é um conceito central no microcrédito. Ela deve ser entendida genericamente como permanência, continuidade no mercado (Navajas et al, 2000), e em termos específicos, estando associada à habilidade da instituição ou do programa de microcrédito de gerar fundos suficientes para cobrir os seus custos (Kabeer, 2006).
Enquanto os institucionalistas priorizam a sustentabilidade e o número de clientes atendidos pelas instituições de microcrédito (grandes escalas), a outra corrente, os welfaristas, colocam ênfase na profundidade do alcance aos mais pobres, ou seja, níveis mais profundos de pobreza a serem alcançados. Eles estão menos interessados nos serviços financeiros e bancários por si e mais voltados ao emprego desses serviços como meios para o alívio direto dos efeitos da pobreza mais aguda das famílias e comunidades, mesmo que tais serviços requeiram doações ou recursos subsidiados (Woller et al, 1999).
Diferentemente da vertente institucionalista, os welfaristas acreditam que, no propósito de aliviar a pobreza, a provisão de serviços financeiros e não financeiros deve ser garantida através de recursos subsidiados. A sobrevivência e a sustentabilidade das instituições serão condicionadas e dependentes da obtenção desses recursos em base contínua (Robinson, 2001).
Como ressaltam Woller et al (1999), para os welfaristas não é possível garantir resultados positivos por parte da instituição, através da cobrança de taxas de juros que cubram todos os custos operacionais e proporcionem sobras ou lucros, e ao mesmo tempo garantir a diminuição da pobreza por meio da concessão de crédito. A motivação por resultados predominará sobre o objetivo social de redução da pobreza caso esses dois objetivos sejam mantidos concomitantemente. Conning (1999) reforça que uma limitada insistência em recuperação de custos e eliminação de subsídios pode forçar os programas de microcrédito a excluírem tomadores mais pobres de seus portfólios, dado que eles são os mais difíceis de serem atendidos e oneram muito a instituição.
O debate sustentabilidade versus alcance/foco nos mais pobres é polêmico e em seu cerne reside o questionamento fundamental, qual seja, se e em quanto as pessoas efetivamente pobres podem, de fato, se beneficiar dos programas de microcrédito e em quanto o microcrédito concretiza sua promessa e seus objetivos. Tal debate deve ser entendido e situado no âmbito do questionamento do microcrédito como promotor do empoderamento econômico e social das classes populares, ou seja, como um instrumento de emancipação de tais classes (Dichter, 2006). Assim, a questão que deve ser analisada é se o microcrédito pode contribuir para remover as restrições que limitam as liberdades individuais e a igualdade, e assim promover o desenvolvimento e emancipação econômica e social do público ao qual se destina.
4. Uma análise da ênfase das instituições de microcrédito em resultados financeiros
Tradicionalmente, o microcrédito tem sido altamente dependente da provisão de recursos financeiros subsidiados, recursos esses que constituem os principais meios que as organizações possuem para disponibilizar essa modalidade de crédito e assim buscar a promoção do objetivo de redução da pobreza (Khan, 2008). No entanto, a partir dos anos 90, doadores e outros provedores de recursos começaram a enfatizar e cobrar resultados financeiros positivos e sustentabilidade das instituições microfinanceiras (Robinson, 2001). Esse requerimento também vem de agências multilaterais que fornecem suporte e recursos ao microcrédito, como por exemplo, o CGAP (Grupo Consultivo para a Assistência aos Pobres), que passam a condicionar a concessão de empréstimos ao alcance, por parte das instituições, de parâmetros específicos de performance e sustentabilidade (Conning, 1999).
Essas novas condições têm exercido considerável impacto sobre as operações das instituições de microcrédito, impulsionando a busca de novos clientes, ampliação da oferta de serviços e produtos, maximização de resultados financeiros, controle de custos (Khan, 2008), principalmente tendo em vista o crescimento da concorrência no setor.
Para autores como Khan (2008), Johnson et al (1999), Hermes et al (2008) e outros houve uma mudança de paradigma no âmbito das microfinanças. Johnson et al (1999) consideram que essas transformações têm alcançado as entidades microfinanceiras sem finalidades lucrativas1 e também todo setor formado por organizações sem orientação para o lucro, caracterizando um movimento em direção à gestão e avaliação por resultados.
Segundo Johnson et al (1999) ocorre um movimento geral de racionalização, caracterizado pela aplicação de técnicas e princípios de negócios em práticas de organizações não lucrativas. Os princípios de racionalização têm sido aplicados em organizações não lucrativas com o mesmo vigor em que aparecem no mundo dos negócios lucrativos. O objetivo fundamental é minimizar custos enquanto maximiza resultados. Assim, presume-se que os programas ou instituições que demonstram alto grau de racionalização também apresentarão resultados efetivos e bem avaliados.
Alves (2002) analisa essa questão sob a ótica da racionalidade existente nas organizações lucrativas e não lucrativas, utilizando-se do referencial de Weber (1964) e Ramos (1989). O autor considera que as organizações sem fins lucrativos têm sido cortejadas por apresentarem uma racionalidade substantiva, em que a ação social dos indivíduos atuantes é motivada pela crença consciente em valores (éticos, religiosos ou de qualquer outra forma de manifestação), sem relação alguma a resultados. Nessa perspectiva, essas organizações teriam suas ações fundamentadas, principalmente, em conceitos de solidariedade e atuariam em estruturas consideradas menos formais que as organizações com finalidade lucrativa.
No entanto, o próprio Alves (2002) contesta essa crença de muitos autores de que a racionalidade subjacente à atuação das organizações sem fins lucrativos seja uma racionalidade substantiva ou por valores, no sentido de Weber (1964) e Ramos (1989). Para ele, o terceiro setor constitui um espaço onde existem várias motivações para a ação, inclusive a racionalidade instrumental. A racionalidade instrumental é característica das ações que se orientam pelos fins, de forma consciente, calculada e deliberada. Os fins são racionalmente ponderados, avaliados e escolhidos, servindo de orientação. As condições ou meios são determinados de forma a se adequarem aos fins a serem perseguidos (Weber, 1964 apud Alves, 2002).
A organização moderna ou burocrática surge como uma expressão da racionalidade instrumental no contexto organizacional. Essa racionalidade constitui um ponto-chave da burocracia qualificada por Weber (Tragtenberg, 1992). O modelo burocrático surge no século XIX e passa a predominar como forma de organização, contribuindo amplamente para a expansão e consolidação do capitalismo, (Tragtenberg, 1992). No entanto, na atualidade, são evidentes as ineficiências e disfunções da burocracia, bem como crescem as discussões sobre a manifestação de novas formas organizacionais que representariam a operacionalização de modos de racionalidade diferentes daquele descrito por Weber como típico do modelo burocrático (Clegg, 1990; Dellagnelo e Machado-da-Silva, 2000). As novas formas organizacionais correspondem às organizações pós-burocráticas ou pós-modernas e seriam comprometidas com valores distintos daqueles preconizados nas burocracias, como autonomia, empoderamento, emancipação do ser humano, flexibilidade, trabalho em equipes.
Ao tomar por base os valores que orientam as organizações sem fins lucrativos, elas poderiam ser entendidas como novas formas organizacionais. Como esclarecem Diniz e Mattos (2002), as organizações sem fins lucrativos são diferentes das outras organizações integrantes do setor privado porque elas são orientadas por valores incorporados e vividos por pessoas que acreditam e lutam por transformação no contexto mundial. Os valores encarnados por essas organizações são múltiplos e variados, incluindo: altruísmo, compaixão, sensibilidade e solidariedade.
As organizações de microcrédito, em sua maioria configuradas sob a modalidade de atuação não lucrativa – comprometidas com o combate à pobreza e seus males, buscando promover a emancipação e liberdade dos pobres através da concessão de crédito que possibilita a participação dessas pessoas na economia (Yunus, 2002) – poderiam ser citadas como exemplos dessa substantividade que é considerada presente nesse setor não lucrativo. No entanto, o processo de transformação que está sofrendo o setor microfinanceiro de uma maneira geral parece estar conduzindo as organizações de microcrédito para uma lógica cada vez mais instrumental e utilitarista, calcada na busca pela maximização de resultados monetários, parâmetro típico das organizações privadas e das burocracias. Essa lógica que irrompe no setor de microfinanças tende a torná-lo semelhante ao setor financeiro tradicional, onde prevalecem os imperativos de mercado.
Tendo em vista que as entidades de microcrédito são, em sua maioria, sem finalidade lucrativa, pode-se dizer que essa problemática acima evidenciada é consoante com o que Diniz e Mattos (2002) caracterizam como um processo de ajustes organizacionais que as organizações não governamentais vivenciam visando garantir sua sobrevivência institucional, e que tem reflexos na estrutura e prática administrativa. Segundo os autores, esses ajustes ocorrem dentro de uma lógica imposta pelas regras de mercado e podem levar a uma transição ideológica dessas organizações, do conceito de gestão social, para o conceito de gestão estratégica, tornando-as cada vez mais funcionais. Essa transição pode gerar uma desfiguração de seu caráter original e da missão institucional (Diniz e Mattos, 2002). Conforme acima explanado, isso é o que tem acontecido com as instituições de microcrédito, à medida que intensificam a busca eficiência em custos e resultados financeiros.
Ao trabalharem no alcance de bons indicadores de performance e resultados financeiros positivos, as instituições de microcrédito pretendem evidenciar a sua legitimidade perante a comunidade doadora e a sociedade em geral, provar que estão contribuindo para a sociedade e que a sua existência não constitui apenas despesa para os seus stakeholders (Khan, 2008). Para garantir sua sobrevivência em um ambiente mutável, as organizações podem incorporar normas, valores, regras culturais existentes em um setor ou na sociedade como um todo (DiMaggio e Powell, 2005). Assim, com intuito de provar para outras organizações das quais depende (suporte financeiro e não financeiro, sociedade em geral) que sua existência é legítima e benéfica e assim garantir sua sobrevivência no longo prazo, muitas instituições de microcrédito incorporam quesitos de eficiência e comercialização, adotando uma lógica de mercado e aproximando-se, em termos valorativos, de instituições com objetivos lucrativos (Khan, 2008).
Para Johnson et al (1999), princípios de avaliação com base em resultados e racionalização estão se disseminando amplamente pelo setor não privado, através de um processo de isomorfismo institucional. O isomorfismo institucional prevê que as organizações dentro de um mesmo campo se tornarão cada vez mais similares umas às outras à medida que respondem a pressões de outras instituições em outros campos para adotarem suas normas, valores e políticas (DiMaggio e Powell, 2005).
Assim, existem indícios de que o setor microfinanceiro tem passado por algumas transformações e especificamente, as instituições de microcrédito estão se ajustando a novas condições, apresentando um direcionamento focado em eficiência e resultados financeiros. Por outro lado, há também indícios de que esse posicionamento pode levar essas instituições a se desviarem de seu propósito original de combate à pobreza, com crescente número de trabalhos com evidências empíricas (Hermes et al, 2008; Cull et al, 2007; Olivares-Polanco, 2005; Navajas et al, 2000) de que à medida que buscam boas performances em termos de desempenho e viabilidade financeira, as instituições de microcrédito se tornam menos propensas e com menores condições de alcançar a população mais pobre.
Por fim, essas transformações pelas quais passam as instituições de microcrédito parecem imputar uma nova lógica no setor, a lógica de mercado. As instituições podem se tornar mais funcionais e instrumentais, num processo isomórfico de busca de eficiência, em que pese a predominância da gestão estratégica sobre os valores e o ideário social. |