Vol. 39 (Nº 30) Ano 2018. Pág. 12
Carmem Lucia Artioli ROLIM 1
Recebido: 10/03/2018 • Aprovado: 25/04/2018
2. Procedimentos metodológicos
3. Construção social da infância
4. O lugar da escola na infância hospitalizada
RESUMO: O presente estudo tem como objetivo refletir sobre o espaço da escola no contexto do hospital, para crianças que necessitam de internação. Trata-se de uma pesquisa teórica de abordagem qualitativa pautada na perspectiva histórico-cultural. As análises revelam que no adoecimento infantil, imposições advindas da doença são avaliadas socialmente e, os direitos educacionais previamente adquiridos são, por vezes; ignorados. Retirar o direito da aprendizagem escolar de crianças hospitalizadas é impingir marcas de impossibilidades condenando crianças à desesperança. |
ABSTRACT: The present study aims to reflect on the space of the school in the context of the hospital, for children who need hospitalization. This is a theoretical research with a qualitative approach based on the historical-cultural perspective. The analysis reveals that in infantile illness, infirmities are evaluated socially, and the educational rights previously acquired are sometimes; ignored. Removing the right to learn from the hospitalized child is to causes marks of impossibilities condemning children to hopelessness. |
Pensar a escola enquanto espaço de direito da criança, situado no contexto hospitalar, é processo que compreende proposições de saúde e doença, construções sociais e culturais que envolvem o processo histórico da infância e de seus sujeitos e, ainda, observa a criança hospitalizada que sem direito a fala, é analisada pelo olhar externo, ou seja, pelo adulto que imbuído de valores socioculturais tece seu julgamento.
Julgamento nutrido por expectativas de uma sociedade que separou a saúde da doença e distanciou o hospital da escola localizando a vida nas mesas escolares e a morte nos leitos hospitalares. Sociedade que reconhece o processo biológico presente na doença, mas que o subordina à avaliação social.
Nesse contexto, refletir sobre o espaço da escola em ambiente hospitalar é movimento complexo que inter-relaciona escolas e hospitais conectados pelos sujeitos que vivenciam seus ambientes, ou seja, pelas crianças em tratamento hospitalar.
Localizar a criança nesse espaço é reconhecer um movimento de contradições no qual diferentes perspectivas coabitam. Se os espaços escolares localizam as expectativas sociais e possibilitam o delineamento do lugar da criança no seu grupo, a supressão desse espaço no contexto da enfermidade, pela internação hospitalar, causa deslocamento do sujeito para um ambiente desconhecido e inóspito trazendo modificações para o contexto social da criança em tratamento.
Nessa direção, subtrair o direito de frequentar a escola provoca prejuízos à criança e ao seu grupo social, prejudica o desenvolvimento infantil, como também, captura expectativas para a continuidade da vida. Situação que necessita de discussão, reflexão e mudanças.
A presente pesquisa é resultado de estudo teórico integrado ao projeto ‘Atividade docente no contexto das especificidades de ensino: um olhar para escolas e hospitais’. O projeto em questão traz pesquisas interdependentes que se relacionam por meio de seu objetivo visando analisar o direito educacional da criança em tratamento hospitalar. Para seu desenvolvimento estão envolvidos diferentes pesquisadores, espaços e sujeitos, situados nas escolas, nas universidades e nos hospitais, cujas discussões possibilitam o desenvolvimento de trabalhos de conclusão de curso de graduação, relatórios de programas de iniciação científica e dissertações de mestrado. Porém, para o presente momento, delimitamos o estudo temporalmente, trazendo os resultados de análises do período compreendido entre os anos de 2016 e 2017, tendo como objetivo refletir sobre o espaço da escola no contexto do hospital, para crianças que necessitam de internação.
Trata-se de estudo teórico de abordagem qualitativa, um caminhar histórico-cultural que busca pensar o direito de acesso ao sistema escolar da criança que vivencia a enfermidade (Minayo, 2012). Refletir sobre o direito educacional considerando a teoria histórico-cultural é desafio que busca compreender os acontecimentos a partir de seu momento inicial sem perder de vista o percurso de seu desenvolvimento (Libâneo, 2009).
Desafio evidenciado no objetivo proposto e que buscamos atender por meio do desenvolvimento do estudo, sendo esse organizado em dois momentos. No primeiro, adentramos a construção social da infância e no segundo momento pensamos o lugar da escola para a criança hospitalizada abordando, ainda, vicissitudes acerca da enfermidade na infância, momentos apresentados distintamente, mas interconectados por reflexões que dizem dos direitos do sujeito da infância.
Refletir sobre a infância requer inicialmente explicitar os conceitos que a constituem, conceitos que se definem em determinado momento histórico, mas que carregam influências sociais e culturais do percurso no qual se desenvolveram. É adentrar aos meandros de um grupo marcado pela ausência da fala, sujeitos silenciados, pois, enquanto infantes, ainda não conquistaram o direito de representar-se por sua própria voz. A infância é caracterizada de fora, por quem a analisa, ou seja,
a infância não se fala e, não se falando, não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. E por não ocupar esta primeira pessoa, isto é, por não dizer eu, por jamais assumir o lugar de sujeito do discurso, e, consequentemente, por consistir sempre um ele/ela nos discursos alheios, a infância é sempre definida de fora (Lajolo, 2016, p. 324).
O próprio termo ‘infância’ em sua origem latina está relacionado ao conceito de ausência da fala, nessa direção, Lajolo (2016) a identifica como “estado do infante, isto é, d’aquele que não fala; construída a partir dos prefixos e radicais linguísticos que compõem a palavra: in = prefixo que indica negação; fante = particípio presente do verbo latino fari, significa falar, dizer” (p. 324). Nas palavras de Ferreira e Bluteau (1840) é o período que acontece “até os sete annos, a meninice, a falta de eloquência, difficuldade em explicar-se, a tenra idade dos brutos” (p. 313). Nascentes (1955) traz como a “incapacidade de falar, meninice” (p. 276).
Entender a infância é tarefa complexa não apenas por ser construção em movimento histórico e social, mas também porque o seu sujeito é analisado por alguém externo. É caminhar que necessita seguir pistas expressas em registros e observações, centradas no sujeito, a criança, que ainda sem direito a fala, prossegue, submetida à análise e interpretação do olhar adulto.
Nesse percurso, em que olhamos de fora, entender a infância envolve, ainda, considerar a perspectiva pela qual é questionada. Se pensarmos pelo viés biológico encontramos uma construção que a define na inter-relação de fases do desenvolvimento humano com o tempo cronológico, ou seja, indicam que as etapas “são muito semelhantes para pessoas de uma determinada faixa etária. [...]. O tempo de ocorrência dos eventos biológicos é fixo, dentro de uma faixa normal (as pessoas não experimentam a puberdade aos 35 anos ou a menopausa aos 12)” (Papalia; Olds; Feldman, 2006, p. 58). Essa perspectiva coloca a infância normatizada por um processo linear, relacionando o ciclo da vida com as etapas de maturação.
Porém, pensar a infância pelo viés social, situada em determinado contexto histórico e cultural é considerar os fatores biológicos sem desprezar as influências sociais que atuam no desenvolvimento humano, é assumir concepções advindas da perspectiva social, entendendo a infância como construção edificada localmente e desenvolvida socialmente, nessa direção Ariès (1981) assinala tratar-se de uma fase, que “não corresponde apenas a etapas biológicas, mas as funções sociais” (p. 29), vivenciada pela criança e situada em determinado momento histórico e em contexto cultural. Vemos então a criança, o infante, como o sujeito da infância, para Kramer (2007) estamos na presença de;
sujeitos sociais e históricos, marcados, portanto, pelas contradições das sociedades em que estão inseridas. A criança não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em que deixar de ser criança). Reconhecemos o que é específico da infância: seu poder de imaginação, a fantasia, a criação, a brincadeira entendida como experiência de cultura. Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, que produzem cultura e são nela produzidas. Esse modo de ver as crianças favorece entendê-las e também ver o mundo a partir do seu ponto de vista. A infância, mais que estágio, é categoria da história: existe uma história humana porque o homem tem infância (p. 15).
Diante das contradições que envolvem o conceito, consideramos que o sentido da infância é construção contínua que se desenvolve em diferentes espaços sociais, coadunados com o tempo histórico e a especificidade sociocultural. Perspectiva que busca a compreensão do conceito como construção erigida no decorrer do tempo e espaço, ou seja, que considera o percurso social regressando ao passado para 'a contrapelo' compreender o presente, nas palavras de Benjamin (2016) “uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogêneo, mas por um tempo preenchido pelo agora” (p. 18).
Com essa perspectiva percorremos o movimento histórico, regressando à idade média, momento no qual “a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade” (Ariès, 1981, p. 3). Nessa fase a vida da criança era, por vezes, desconsiderada e sua presença no contexto familiar era de curto espaço de tempo.
Mesmo em tenra idade a criança era realocada em casas de pessoas que nem sempre mantinham laços consanguíneos ou afetivos, para contribuir ou desonerar sua família, porque se a criança viesse a óbito “como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato” (Ariès, 1981, p.4).
Sem voz e sem identidade a criança não tinha definido o seu lugar na sociedade, situada como objeto do servir, sua perspectiva era tornar-se adulto ou morrer. Se sobrevivesse, deveria, assim que desenvolvesse minimamente a destreza de imitar os adultos, assumir um trabalho entre eles, e, contribuir com o seu esforço pessoal para a manutenção da própria subsistência, deixando de ser um peso para a sociedade e para a sua família.
Nesse contexto, a doença e a morte eram elementos presentes no cotidiano da criança, de modo que sem os cuidados básicos poucas sobreviviam. Para Badinter (1985), a falta de higiene se destacava como um dos principais problemas para a sobrevivência da criança, porque quando a “alimentação não era fatal ao bebê, sua natureza tinha ainda de vencer um mal temível: a sujeira e a falta de um mínimo de higiene” (p. 124), a autora relata ainda que, na época, a “criança ficava atolada em seus excrementos durante horas, por vezes dias inteiros, ou mais” (p. 124).
A criança vivenciava um ambiente insalubre, porém a morte na infância não ocorria apenas pela falta de cuidados, por vezes, ela era intencional. O infanticídio, mesmo considerado crime, era uma prática comum e executada por muitas famílias. No silêncio da noite, assassinatos eram camuflados “sob a forma de um acidente, crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las” (Ariès, 1981, p. 11).
Na idade moderna, essa situação começa a mudar, a criança ganha espaço no ambiente da família consanguínea, momento no qual iniciam as preocupações com o seu desenvolvimento. Nesse contexto a morte de uma criança passa a ser acompanhada por sentimentos de dor e sofrimento. Principia a fase de atenção à vida na infância, estimulada principalmente pela igreja que diante do “infanticídio secretamente admitido passou a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança” (Ariès, 1981, p. 12).
Nesse cenário, o poder público une-se a igreja questionando a falta de preservação da vida infantil e as precárias condições para a sua subsistência. Esse posicionamento impulsiona a manutenção de melhores condições de vida, na infância. Assim, tem início o movimento conjunto, sociedade e família, na tentativa de retirar “a criança da sociedade dos adultos” (Ariès, 1981, p. 272), momento no qual a escola ganha espaço estabelecendo-se como ambiente de instrução e desenvolvimento.
Porém, nem todas as crianças iniciam sua jornada à escola na mesma época. Para a menina a escola, ainda, não era reconhecida como necessária, pois a mulher poderia ser treinada imitando sua mãe ou tutora na execução de tarefas domésticas, atividade que em breve deveria assumir. Já os meninos de famílias com poucos recursos financeiros necessitavam trabalhar, visto que as imposições sociais cobravam seu auxílio para a manutenção da subsistência familiar.
A infância não se apresentava de forma equitativa para todas as crianças, ou seja, os meninos de famílias com poucos recursos financeiros e as meninas demoraram mais tempo para adquirir o direito de compartilhar o espaço escolar. Então, a infância vivenciada pela criança sofre influência sociocultural sendo marcada pela desigualdade, seja por discrepâncias financeiras ou por disparidades de direitos, nesse contexto o acesso escolar se institui de modo assimétrico.
Perspectiva que evidencia a existência de infâncias, construções socioculturais com significados divergentes, de modo que apesar de manterem em comum as especificidades atribuídas a criança, não são construções desenvolvidas em unicidade. Para Freitas (2016), essas disparidades exigem que sejam consideradas “infâncias no plural, e destacamos com isso diferenças expressivas na experiência de ser criança” (p. 10). Desse modo, pensar que não existe a infância de modo universal,
não significa relativizar a infância fazendo um inventário de infâncias possíveis [...], mas perceber, sempre, que o modo como se pensa a experiência que as crianças podem e devem ter, informa o modo como se age sobre elas e também informa (mas não determina) o modo como elas agem sobre o mundo (Cohn, 2013, p. 227).
Nesse movimento, em que se reconhece o cenário escolar como ambiente de desenvolvimento infantil, a escola passa a ser considerada como o espaço da infância, elemento primordial para o progresso da criança. Dessa forma, a escola é significada em sua essencialidade e ao integrá-la enquanto estudante, a criança, recebe da sociedade outro status, lheserá atribuído o papel de aluno. Nas palavras de Kamers (2013) a “escolarização é instituída como dispositivo de inclusão/exclusão da criança na vida societária. Nesse contexto, família e escola se converteram em principais lócus” (p. 158). Assim, ao considerar a educação como construção de direito da criança, a escolarização torna-se uma exigência social da infância.
A escola desenvolve-se como ambiente necessário para o progresso da criança como, também, para a continuidade da vida produtiva. Ela passa a ser o local da infância, o espaço primordial para que as expectativas depositadas na criança, pela família e pela sociedade, sejam desenvolvidas.
Dessa forma, é no decorrer do período escolar e diante da avaliação emitida pela escola que a criança delineia seu lugar no grupo social. Pois, culturalmente, a escola se estabeleceu como elemento essencial ao desenvolvimento da criança, de modo que integrá-la enquanto aluno é possibilidade de êxito na vida adulta.
Subtrair o estímulo escolar causa prejuízos ao sujeito e ao seu grupo familiar, de modo que não só atinge o desenvolvimento infantil, mas acomete, também, as expectativas sociais. Participar das atividades escolares não garante o futuro promissor, porém ser excluído desse espaço é ter minimizadas as possibilidades de sucesso.
Com essa perspectiva, o afastamento do espaço escolar pode ocasionar diferentes prejuízos seja no desenvolvimento de aspectos cognitivos como, também, nas perspectivas sociais. Entre os diferentes fatores que podem ocasionar o afastamento escolar, destacamos o patológico, ou seja, quando uma enfermidade atinge o sujeito causando debilidades orgânicas que levam a hospitalização na infância.
Considerando a historicidade do processo, entendemos que a escola foi se constituindo socialmente como elemento para o desenvolvimento da criança, chegando à atualidade como espaço de direito da infância, local no qual as crianças são reconhecidas enquanto sujeitos detentores de expectativas sociais.
Porém, diante de uma enfermidade que exige internação hospitalar a criança é, por vezes, afastada do espaço escolar vivenciando intempéries provocadas por dores e angústias advindas da doença e do tratamento, e, experimenta ainda a perda do ambiente conhecido. A internação comuta a rotina escolar pelos protocolos hospitalares, sendo o seu espaço de direito subtraído, movimento no qual as expectativas sociais são substituídas pela desesperança.
A criança ao ter a saúde fragilizada, vivencia imposições orgânicas e sociais, sendo os comprometimentos biológicos julgados socialmente e, de acordo com a gravidade da doença, a expectativa saudável, antes promissora, é substituída por descrédito e abandono (Nigro, 2004).
Trata-se de percurso biológico submetido à égide da sociedade que instituiu o processo de normatização da vida da criança, como um período de longa duração no qual são efetivados investimentos, familiares e sociais, cujo retorno irá ocorrer na maturidade, estando à velhice submetida à doença e a morte (Benjamin, 1987).
Essa perspectiva de normalidade assume a infância como fase inicial, seguida pela maturidade e finalizada somente na velhice, desconsiderando a doença ou a morte como um evento que pode ocorrer nas diferentes idades. Assim, a doença ao acometer o sujeito na infância acaba por romper com normatizações estabelecidas socialmente, que situam o adoecer e a morte, temporalmente, distante da infância (Canguilhem, 2009).
O fim da existência do sujeito na infância ou a mudança no modo de vida da criança provocada pelo tratamento hospitalar fragmenta o espaço conhecido e rompe com a ‘norma’ social previamente instituída. Não apenas a doença, mas também os tratamentos ocorridos no período de internação podem deixar sequelas que serão avaliadas pelo grupo social. Vivenciar a doença nesse período desloca de forma temporária ou definitiva o sujeito para o estado de anormalidade. O doente é então julgado e ao ser nomeado como ‘anormal’, se tornará um peso para o seu grupo, um ser depreciado socialmente (Foucault, 2014).
Dessa forma, a enfermidade vivenciada no período da infância traz dores advindas do processo patológico e, ainda, abala convicções socioculturais instaurando sofrimentos relacionados às possíveis sequelas advindas da doença ou do tratamento, à iminência da morte, e, à quebra das expectativas sociais. Assim, a hospitalização na infância causa processos dolorosos pela enfermidade, pelo receio do fim de uma existência e pelas rupturas socioculturais que as acompanham.
Nesse movimento, os aspectos biológicos ao serem julgados são acrescidos de determinado peso social, e a análise do adoecer acaba por impingir valores ao sujeito que vivencia a doença. Atribui-se então, ao doente em sua doença “um julgamento de valor virtual. Doente é um conceito geral de não-valor que compreende todos os valores negativos possíveis” (Canguilhem, 2009, p. 46). Destarte, a necessidade de internação para tratamento de saúde revela fragilidades humanas que dizem, não apenas, do doente e da doença, mas de normatizações socialmente construídas que localizam a vida jovem e saudável no espaço da escola.
Nessa direção, infância e escola se encontram atendendo a normalidade social, de modo que o aluno que hoje ocupa os bancos escolares poderá, no futuro, retribuir o investimento que a sociedade lhe concedeu, assumindo responsabilidades para com a família e o seu grupo social. Porém, o diagnóstico patológico desloca a criança de seu papel de aluno passando a identificá-la como doente.
Ao receber o diagnóstico de determinada patologia a criança submetida à normatização social é identificada enquanto doente e, tal qual o adulto, será nomeada em sua enfermidade como a cancerosa, a diabética, a cardíaca, a aidética, entre outras. Recebendo os estigmas do processo de adoecer e da iminência da morte, receberá também, outra identificação social, ou seja, o doente-doença.
A criança, agora doente-doença, deixará de ser investimento para o futuro se tornando elemento de dúvida e questionamento. Dessa forma, enquanto doente, a continuidade da vida é incerta e os investimentos podem não ter retorno, momento no qual a desesperança ocupa o lugar das expectativas para o futuro porque,
ser doente é ser mau, não como um menino mau, mas como um terreno mau. A doença deixa de ter qualquer relação com a responsabilidade individual. Não há mais imprudência, não há mais excesso a recriminar, nem mesmo responsabilidade coletiva, como em caso de epidemia. Os seres vivos são o resultado das próprias leis da multiplicação da vida, os doentes são o resultado da panmixia, do amor e do acaso. (Canguilhem, 2009, p. 127).
Quanto mais grave é a doença e mais diminutas são as expectativas de cura, mais a criança será submetida à nulidade, imersa no vazio social sua vida é suspensa e de seu futuro nada é esperado. As responsabilidades não são cobradas, pois as expectativas sociais inexistem, os espaços da infância saudável, seja familiar ou escolar, enquanto ambientes de progresso e desenvolvimento são capturados. Assumindo a posição de doente-doença a criança necessitará de local apropriado para o seu novo status, ambiente no qual não precisará se ‘preocupar’ com a escola, nem contaminará o seu entorno, o hospital.
O hospital é espaço de intensas contradições sociais, ou seja, um ambiente para o restabelecimento da saúde e continuidade da vida, mas também, local de afastamento e enclausuramento dos males que afligem a humanidade. Nas palavras de Foucault (2001);
O hospital, que em sua forma mais geral só traz os estigmas da miséria, aparece ao nível local como indispensável medida de proteção. Proteção das pessoas sadias contra a doença. [...] Assim concebido, o hospital permite classificar de tal maneira os doentes que cada um encontra o que convém a seu estado, sem agravar a vizinhança, o mal de outro, sem difundir o contágio no hospital ou fora dele (p. 45-46).
Dessa forma, a criança enquanto doente-doença trocará as mesas escolares pelos leitos de tratamento e para seu próprio restabelecimento, será direcionada para o hospital, ambiente que possibilita tratamento e cura, ao mesmo tempo em que “assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada” (Foucault, 2016, p. 70).
Distanciar os espaços escolares dos contextos hospitalares é subverter o direito da criança em integrar o sistema educacional, pois mesmo em situação de enfermidade a prerrogativa à aprendizagem e ao desenvolvimento permanece. Nessa direção, pensar sobre os direitos da criança acometida pela doença exige romper com normatizações excludentes instituídas socialmente, preceitos que de forma dicotômica localizam a saúde na escola e a doença no hospital. Nesse cenário, espaços escolares e hospitalares são
territórios distintos, separados pelos objetivos de sua criação, mas inter-relacionados pelos sujeitos que ocupam seus espaços. O ambiente escolar é parte da rotina infantil, e a hospitalização altera o mundo conhecido da criança. [...] Nesse contexto, escolas e hospitais compartilham responsabilidades quanto ao público infantil (Rolim, 2015, p. 134).
Assumir reponsabilidades sociais para com o público infantil em situação de enfermidade é andar na contramão do processo dicotômico, tentando unir o que a sociedade insiste em separar. É reconhecer na criança em tratamento o sujeito que, em situação de enfermidade, necessita vivenciar as rotinas hospitalares mantendo as necessidades típicas da infância, ou seja, o direito de ser criança, brincar, aprender, frequentar a escola, pertencer a um grupo social, exercer o direito de ser aluno entre alunos.
Refletir sobre o espaço da escola no contexto do hospital, para crianças que necessitam de internação traz à tona a construção histórica da infância e dos direitos de seus sujeitos, um processo sociocultural de internalização de normas e procedimentos valorativos inculcados na formação da criança.
Retomando o processo histórico observamos que a criança vivenciou o desamparo em uma época que, sem condições de higiene e sem integração familiar, raramente sobrevivia. Porém, caso conseguisse resistir se tornaria responsável por sua própria subsistência. Situação que foi se modificando, paulatinamente, sob a influência do poder público e da igreja, movimentos que impulsionaram a manutenção da vida em tenra idade atuando no processo de integração da criança no ambiente familiar consanguíneo. Integrar a criança ao contexto familiar exigiu de seu grupo social condições básicas para manutenção e desenvolvimento da vida na infância.
Nesse percurso, a família é situada como berço original da criança e a escola como o espaço para a continuidade da vida, ambas se estabelecem como elementos constitutivos da infância. A família como o primeiro espaço de integração social e a escola o local propício para o desenvolvimento que no futuro será substituído, principalmente, pelo ambiente de trabalho. Assim, a escola assume papel relevante à medida que oportuniza o progresso da criança, ou seja, o espaço necessário para a continuidade da vida produtiva. Dessa forma, o ambiente escolar se edifica como elemento que possibilita a inclusão, espaço de direito da infância.
Porém, ao vivenciar o processo patológico a criança será deslocada de seu espaço conhecido para um ambiente inóspito, o hospital. Identificada e nomeada em sua doença vivenciará outra rotina, ou seja, assumirá a posição de doente-doença, sendo por vezes privada do direito de vivenciar o contexto escolar.
Privar a criança do convívio escolar é movimento que desconsidera os direitos da criança acometida pela doença e traz a tona as raízes históricas de silenciamento, sujeição e exclusão, revelando sinais da desvalorização impostos por uma sociedade que subjugou a infância colocando a criança como objeto do servir.
Negar o direito de escolarização para a criança hospitalizada é impingir marcas de impossibilidades condenando a infância à desesperança, trata-se de atribuir a criança o status de doente-doença um estado julgado e condenado na ‘anormalidade’ que, de futuro incerto, não necessita de investimento social. É retirar da infância a oportunidade de continuidade escolar subtraindo o direito de manter o seu lugar social entre alunos, é localizar a morte onde antes exista a esperança. Dessa forma, oportunizar a continuidade escolar para a criança em tratamento hospitalar é mais do que garantir o direito social, é investir na vida.
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1. Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins - UFT. E-mail: carmem.rolim@uft.edu.br