Vol. 39 (Nº 10) Ano 2018. Pág. 12
Valdir BORGES 1; Luiz Alberto de ALCÂNTARA 2
Recebido: 26/10/2017 • Aprovado: 25/11/2017
3. Os fundamentos éticos dos Direitos Humanos
RESUMO: Nossa proposta é inter-relacionar direitos humanos, educação e ética na era da globalização a partir dos pressupostos histórico-filosóficos e, ético-políticos de Paulo Freire. No início do século XXI é importante reinventarmos o educador brasileiro Paulo Freire, sua vigência e atualidade no que tange à educação libertadora, comprometida com a afirmação dos direitos humanos, pautada na ética, tendo a justiça social como finalidade do processo educativo. Esperamos alertar a todos e a todas que o problema ético mais urgente dos dias hodiernos é a erradicação da pobreza extrema, da fome e da miséria, ou seja, da aplicação da justiça social, primazia do processo educativo. |
ABSTRACT: This study aims at interrelating human rights, education, and ethics in the era of globalization based on the historical-philosophical and ethical-political presuppositions of Paulo Freire. In the early twenty-first century it is important to reinvent the Brazilian educator Paulo Freire, his effectiveness, and relevance with regard to an education as a practice of freedom, committed to human rights, based on ethics, and having social justice as the purpose of the educational process. We aim to make everyone aware of the fact that the most urgent ethical problem of modern day relates to the eradication of extreme poverty, starvation, and misery, that is, the enforcement of social justice, a priority in the educational process. |
No Brasil, país conhecido internacionalmente pelas abismais desigualdades nos diversos âmbitos da vida, ecoa sempre mais o clamor e a sede de justiça e equidade social onde se trevam duros embates pela justa medida na distribuição de oportunidades e recursos, ainda concentrados nas mãos de uma casta privilegiada. Esse processo de injustiça e indiferença social é o resultado desastroso da selvageria do atual capitalismo globalizante, pautado no lucro e na economia de mercado. Neste, há um processo de separação entre os que detêm as condições e oportunidades e aqueles que são excluídos, parcial ou totalmente, de qualquer participação social, política, cultural ou econômica.
Paulo Freire, por meio de sua pedagogia crítico-libertadora, diante do capitalismo global, sem ética, ou melhor, portador da ética do lucro, poderá nos auxiliar a empreender iniciativas no campo da justiça social e dos direitos humanos diante dos desafios ao poder globalizante.
Estes desafios se encontram imbricados na educação, entendida como atitude ética, comprometida com a transformação do entorno social e com a busca constante do aperfeiçoamento do sujeito. Esta forma de pensar freireana é uma das maneiras de reivintá-lo no século XXI, segundo nosso entendimento, pois Paulo Freire compreende a educação integrada aos direitos inerentes ao ser humano, como uma atitude ética e como uma síntese da justiça social.
Somente quando o educando é tratado como sujeito pensante, autônomo, livre e construtor da sua própria história, será capaz de interagir no processo ensino-aprendizagem com as práticas sociais. Estas deveriam forjar núcleos de estudos para ler, interpretar e transformar o contexto histórico-social envolvido. Desta forma, Paulo Freire articula aos direitos fundamentais a ética e a educação visando a justiça social.
Este modo de conceber a educação, segundo Paulo Freire, será possível intervir no contexto histórico-social de inserção, subtraindo as abismais desigualdades sociais e os diferentes tipos de exclusões sociais a que nossos conterrâneos são submetidos na era da globalização, em que a pobreza extrema, miséria, fome, que atinge milhões de pessoas, está se tornando a mais poderosa arma de destruição em massa, fruto do horror econômico global, excludente, vergonhoso e afrontador dos direitos fundamentais do ser humano. Por isso, destacaremos alguns presssupostos histórico-filosóficos freireanos como fundamentação de nossa proposta e reflexão inicial.
Para realização da pesquisa optou-se por realizar uma pesquisa documental e bibliográfica, que por meio de uma análise de conteúdo de documentos selecionados, estabeleceu-se um diálogo crítico com as fontes. Os dados foram problematizados com apoio nas obras de Andreola (2001), Borges (2013), Comparato (2004), Freire (2005, 2006), Streck (2008), Ventorim (2000), entre outros, buscando compreender, analizar, refletir e dialogar e inter-relacionar direitos humanos, educação e ética na era da globalização a partir dos pressupostos histórico filosóficos e, ético-políticos de Paulo Freire.
A conscientização, para Paulo Freire, é entendida como a sua teoria e prática da libertação, pois tomando consciência da sua condição, existência e realidade que o ser humano se existencializa, estabelecendo relações com seus semelhantes. "O ser humano é visto por Freire como um ser de relações" (Ventorim; Pires, 2000, p.114). Sem o estabelecimento das sólidas relações não há diálogo e, sem este, o ser humano é apenas um indivíduo, e não uma pessoa realizada. Devido a isso, Freire insiste em sua concepção existencialista e dialógica exposta em Pedagogia do Oprimido:
(...) Se é dizendo a palavra com que, "pronunciando" o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens, por isso, o diálogo é uma existência existencial (Freire, 2005, p.91).
E acrescenta, que o ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos com os existentes no mundo e com o mundo. Com isso acontece o desvelamento e a tomada de consciência onde o ser humano penetra a essência dos fenômenos que compõe a conjuntura da sua realidade.
A experiência concreta e o existencializar-se do ser humano na história são elementos que permeiam a obra freireana no seu conjunto. O primado da experiência concreta se expressa em sua obra prima, Pedagogia do Oprimido, em que Paulo Freire declara:
As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem, tão pouco, de outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes que elas tenham sido. Estão sempre ancoradas, como sugerimos, no início destas páginas, em situações concretas (Freire, 2005, p.25).
Do conjunto das obras freireanas, especialmente aquelas surgidas nos anos 1960 e 1970, como também, as posteriores, demonstram as bases histórico-filosóficas de Freire. Estas fundamentam e priorizam a experiência e a existência do ser humano historicizado, engajado e comprometido em um projeto político, dialógico, crítico e libertador, capaz de proporcionar justiça e equidade social (Cf. Borges, 2013, p.126-130).
Além de aludir a alguns dos pressupostos histórico-filosóficos de Paulo Freire será necessário perscrutar, no conjunto da obra freireana, o delineamento de um projeto pedagógico libertador, onde a prática educativa e a atitude ética se imbricam mutuamente para forjar a justiça social. Esta será a temática da seguinte seção.
O campo ético-educativo em Paulo Freire se realiza no processo ensino-aprendizagem, quando somos capazes de nos indignar das injustiças sociais que permeiam o contexto histórico-social a que estamos inseridos, na capacidade de indgnição diante das injustiças está o início da ética. Esta capacidade de indignar-se surge no processo de conscientização através do ato de educar (Cf. Borges, 2013, p.161).
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, delineia as mútuas relações entre o ato de educar e a atitude ética.
Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos, professores e professoras, a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar esta responsabilidade igualmente àqueles e àquelas que se acham em formação para exercê-la. Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a natureza prática educativa, enquanto prática formadora. Educadores e educandos, não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro. [...] Não falo, obviamente, desta ética. Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração da forma de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, [...] golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho da utopia [...]. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles. Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos (Freire, 2006, p.15-16).
Cremos ser este o mais enfático posicionamento ético de Paulo Freire relacionado ao ato de educar. Os saberes concernentes à prática educativa estão fundados na dimensão ética, na dignidade humana e na autonomia do educando. O ato de educar, entendido como atitude ética, conduz a pessoa ao engajamento na transformação social e na indignação de qualquer injustiça que fira os direitos fundamentais inerentes ao ser humano (Cf. Borges, 2013, p.162).
Na medida em que o ser humano exerce a liberdade e a autonomia como cidadão que participa e age no contexto em que se insere, se sentirá “tanto mais livre, quanto mais eticamente assumindo a responsabilidade de suas opções” (Freire, 2006, p.93). Desta forma, afirma Freire, que nós, seres humanos:
Seres histórico-sociais, nos tornamos, capazes de comprar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos seres éticos (...). Não é possível pensar os seres humanos longe, se quer da ética, quanto mais fora dela (Freire, 2006, p.32-33).
Esta mútua implicação entre o ato de educar e a atitude ética é que o ser humano se autocompreende como sujeito histórico-social capaz de intervir e transformar o mundo em que vive, se indignar diante das injustiças sociais e das violações e descasos aos direitos inalienáveis ao ser humano (Cf. Borges, 2013, p.162-169).
Quando a ética e a educação se implicam mutuamente, tornam-se portadoras do arraigamento, da cultura dos direitos humanos e da justiça social. Por isso, a grande importância das instituições de ensino de todos os níveis para que a bandeira dos direitos humanos continue levantada.
A perspectiva dialógico-problematizadora freireana, nascida das implicações entre a ética e a educação, é capaz de promover o encontro entre interlocutores, que juntos, denunciam a palavra, ou seja, dão significação ao momento e ao contexto histórico-social no qual se encontram. Desta forma, inicia-se um processo de conscientização em que o sujeito se auto refere, descobrindo-se como autor da própria história e que constantemente necessita ser libertado, de modo gradual e integral.
É o ato de educar, entendido como atitude ética que leva a redescoberta do sujeito histórico, sujeito de direitos e sujeito de libertação. Desde os anos 1960 até os dias hodiernos, a libertação é um dos movimentos essenciais na América Latina e até em outros países, que impulsiona a dinâmica dos movimentos sociais e anima as organizações sócio-políticas e religiosas engajando os sujeitos de libertação na busca de novos processos históricos. Cremos que, atualmente, o debate em torno aos direitos humanos é o mais imponente, pois consegue expor o clamor de tantas minorias, alijadas de justiça e participação social. O impulso a estes movimentos de libertação veio de diversas frentes e eixos temáticos, porém nosso ponto fulcral está orientado sob a vasta bibliografia do filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel (Cf. Borges, 2013, p.130-136).
Por que continuar a reflexão acerca da libertação e dos direitos humanos dos sujeitos históricos em pleno século XXI? A verdade é que as dinâmicas opressoras, segregadoras e cooptadoras dos direitos humanos continuam na atualidade; a exclusão, o desenvolvimentismo, a financialização da economia globalizante, tem produzido milhões de excluídos, vitimados por tal processo, consequentemente alijados de qualquer direito fundamental. Ademais, estamos inseridos em um contexto histórico-social, a sociedade brasileira, em que a desigualdade, em todos os seus âmbitos, é a marca registrada desde os seus primórdios (Comparato, 2004, p.66-84 apud Carvalho, 2004). Apesar desta desigualdade, deve-se empenhar para que a igualdade de cidadania seja reconhecida, garantida e protegida.
Tudo isso só poderá ser concretizado e possibilitado no encontro e nas implicações entre a ética e a educação. Sem uma educação comprometida e engajada nos processos sociais que liberte os sujeitos históricos de toda discriminação, será impossível a construção de um sujeito livre, autônomo e portador dos direitos fundamentais. Estes, já estabelecidos no ano de 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, três anos após a Segunda Guerra Mundial, pela Organização das Nações Unidas, da qual nosso país é signatário. Além disso, no início deste milênio, a Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), alicerçadas nos direitos humanos impulsiona, entre outros, a igualdade e a liberdade em todos os âmbitos para que a dignidade humana seja promovida, bem como o acesso à educação básica universal e a erradicação da extrema pobreza e a miséria. Não bastam leis, necessitam-se ir aos fatos, pois os países signatários de tal declaração, também, possuem grande parte desses direitos fundamentais “escritos” no interior de sua Carta Magna. É o que constamos em nossa Constituição federal de 1988 em seu artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O problema é que entre a lei escrita e a prática existem insondáveis abismos.
Devido a isso, a força das instituições de ensino, seja fundamental, médio ou superior, da opinião pública são fundamentais para criarmos uma cultura que conduza à vivência prática de tais direitos e impulsionar a agenda global dos direitos humanos, seja em forma de pesquisa, divulgação, como protagonismo, defesa e a formação de novos ativistas destes direitos fundamentais. Não bastam os discursos, necessitamos ações concretas em favor dos direitos fundamentais inerentes ao ser humano. Esse esforço propiciado por uma educação entendida como atitude ética será capaz de mudar e pautar pela abertura de novos caminhos que visem a transformação e a justiça social dos sujeitos históricos e de libertação. Ao verificar a importância da educação, entendida por Paulo Freire como atitude ética, capaz de promover a redescoberta do sujeito histórico e, de uma educação em direitos humanos capaz de abrir novos caminhos à transformação e à justiça social, faz-se mister perscrutar os fundamentos éticos dos direitos humanos.
A primeira coisa que podemos ressaltar é que a era globalizante trouxe diversos benefícios e esperanças à humanidade. Porém, destacamos que, simultaneamente, trouxe novas inquietações, riscos e um constante distanciamento e desigualdade entre ricos e pobres. Enquanto a economia de mercado globalizando está prosperando, na mesma escalada, aumenta a exclusão, a miséria, a fome mundial, a pobreza, fruto do horror econômico, denunciado por Viviane Forrester no final do segundo milênio, que adiante mencionaremos. Nestes dias hodiernos da globalização, onde o capitalismo selvagem se reafirma com maior força e ousadia, em que a privatização, o lucro e o egoímo primam sobre a pessoa humana; é difícil adentrar no âmago da consciência daqueles que foram escolhidos para dirigir o destino das nações e garantes dos Direitos Humanos o sentido de corresponsabilidade pelo outro, que tem rosto. Não raras vezes, este outro, acaba tornando-se peça desta macabra engrenagem e objeto, mercadoria de baixo custo.
A pobreza extrema, a fome, a miséria, o subemprego, o desemprego, e exclusão, a injustiça social caminham juntos e devem ser combatidos juntos. Essas enormes vergonhas nacionais e internacionais, globalizadas, são violações universais dos direitos humanos e uma afronta à Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). O remédio a estes males globalizados é a educação, entendida como atitude ética, fundada nos direitos humados e que tenha por finalidade a justiça social e a promoção da dignidade da vida. Essa foi a luta do educador brasileiro Paulo Freire e, por isso, uma ausência sempre presente, imortalizada nos seus escritos e interiorizada nos ativistas e defensores dos direitos inerentes à todo ser humano.
O principal problema mundial hodierno é o das constantes migrações e o da mobilidade social, onde milhões de pessoas, para fugir da miséria, de guerras, perseguições étnicas, violações aos direitos humanos, migram para outros países e regiões. Deparando-se, assim, com preconceito, xenofobismo e até a volta de um acirrado nacionalismo, que ferem o ser humano na sua integridade, dignidade dos seus direitos fundamentais. É necessário, diante desta cultura do desprezo, da violência, fomentar uma cultura dos Direitos Humanos, solidificada na igualdade, liberdade e na solidariedade. Desta forma, estaríamos impulsionando a justiça social, incrementando a capacidade de indignação dos seres humanos, que é a ética no sentido mais original, no entendimento de Paulo Freire. Quando a dignidade do ser humano é afrontada, os seus direitos fundamentais convertem-se em um problema ético. A maior ambição de todos os movimentos, nacional e internacional, dos Direitos Humanos é a garantir, assegurar a felicidade da humanidade como um todo. Eis aqui o sentido ético, emancipatório e inovador dos Direitos Humanos. Isso só será possibilitado por uma cultura dos Direitos Humanos propagada, difundida e alicerçada pela prática educativa. Esta é a nossa linha de raciocínio e também do nosso inspirador, Paulo Freire.
A questão dos direitos humanos, como da ética, possui sua historicidade e são tecidos no amâlgama das relações humanas, edificados e fundamentados em um determinado contexto histórico social que denominamos realidade. Esta temática dos direitos humanos é um problema hodierno candente, porque apesar de sua declaração ser universal pela Organização das Nações Unidas, em 1948, as violações a estes direitos inerentes aos seres humanos são, universalmente, em menor ou maior escala, violados. Nesta esteira, seguimos a afirmação de Wolfgang Lienemann: “Os direitos humanos, por definição, tencionam ser universais. No entanto, sua característica mais universal é sua violação universal” (Lienemann, 1982, p.80 apud Lisnner, 1982).
Temos denunciado, em nosso livro, o problema ético dos direitos humanos, alijados de uma educação engajada e comprometida com a dignidade humana, inclusive citando a diversos autores de renome internacional (Cf. Borges, 2013, p.170-179). Dentre estes, o autor que mais nos impressiona e que fez-nos perceber a urgência do problema ético no que tange aos problemas dos direitos humanos foi Viviane Forrester, que denuncia os horrores econômicos em plena época da globalização:
São milhões de pessoas, digo bem, pessoas, colocadas entre parênteses, por tempo indefinido, talvez em outro limite a não ser a morte, têm direito apenas a miséria ou à sua ameaça mais ou menos próxima, a perda muitas vezes de um teto, a perda de toda consideração social e até mesmo de toda a auto-consideração. Ao drama das identidades precárias ou anulado. Ao mais vergonhoso dos sentimentos: a vergonha (Forrester, 1997, p.10).
Essa realidade vergonhosa global é conhecida por nós nas denúncias da supracitada autora e de muitos outros. O produto avassalador das políticas econômicas neoliberais, impulsionadas pelas grantes potências mundiais, por meio dos seus organismos internacionais aos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. O problema ético deste tipo de ação político-econômica é a marginalização e a indiferença com aqueles que são excluídos de toda participação, mas teoricamente, ao menos, na lei escrita, no direito positivo, “iguais em dignidade e direitos” (Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 10/12/1948). A sociedade neoliberal constituie-se de enormes desigualdades e distâncias entre as classes, por isso é essencial ampliar e recriar espaços de discussões acerca do reconhecimento dos Direitos Humanos. É neste contexto que entra a educação, como aquela que fomenta o debate e suscita reflexões e ações favoráveis à efetivação dos Direitos fundamentais. A própria educação deve ser entendida como um direito fundamental da pessoa, é intríseca ao ser humano. É um direito fundamental, pois sem a educação, não poderíamos conhecer nenhum outro direito, estariamos alijados, à margem da participação nos diversos níveis da sociedade, da cidadania e da justiça social. Devido a isso, reconhecemos as mútuas implicações e interdependências entre educação e Direitos Humanos. A educação engloba e perpassa todo o rol dos Direitos Humanos no que tange à igualdade, justiça social e ética. A educação está imbricada àquilo que constitui o núcleo de valores fundamentais do ser humano, que existe antes do próprio Estado, entendido como aquele que garante esse direito natural e fundamental, a educação.
Urge-nos implicar a ética e os direitos humanos porque muitos pensam em uma ciência neutra, à margem da vida, do direito, da ética, por isso, a solução seria uma reflexão sobre quais as prioridade e urgências éticas que globalizassem a solidariedade planetária neste início do século XXI. Nesta linha de reflexão é importante o que assevera Balduíno Andreola:
O progresso científico, fruto das magníficas descobertas e criações da inteligência humana, em si mesmo, está destinado a melhorar as condições de vida dos seres humanos, individualmente, e da humanidade no seu conjunto. Mas isso não acontece automaticamente. Os avanços da ciência levantam numerosas e graves questões éticas. Como tais questões serão respondidas, no nível da reflexão teórica e no nível da ação, é uma pergunta cuja resposta não pode ser dada pela própria ciência (Andreola, 2001, p.30).
Ao nosso modo de ver, é na confluência e nas imbricações entre a educação e a ética, que surgirá uma ciência comprometida com a vida, capaz de articular um discurso embasado numa práxis solidária planetária, globalizante, que subtraia as abismais diferenças e, que resgate a dignidade humana ferida nos seus direitos fundamentais. São fundamentais, pois pertencem à essência mesma da pessoa humana. Nesta esteira é importante o que pondera Dalmo de Abreu Dallari:
Ao falar de Direitos Humanos, refiro-me aos direitos fundamentais da pessoa humana. Eles são ditos fundamentais porque é necessário reconhece-los, protege-los e promove-los quando se pretende preservar a dignidade humana e oferecer possibilidades de desenvolvimento. Eles equivalem às necessidades humanas fundamentais (Dallari, 2004, p.25).
Pensar a educação nesta perspectiva torna-se uma tarefa ética, pois envolve nossa liberdade de escolhas e a discussão acerca de todas as nossas práticas e valores. Esse é o fio condutor da prática educativa de Paulo Freire, não se pode pensar o ser humano distante da ética, menos ainda, fora dela.
Nesta articulação entre ética e educação, como propõe Paulo Freire; poderemos, além de conhecer, debater e levar à aplicabilidade dos direitos humanos, edificarmos um novo paradigma ético, fundado na liberdade, na democracia, na cidadania, que combata toda desigualdade e injustiça social, bem como, toda espécie de exclusão. Como já afirmamos, anteriormente, as lições de Paulo Freire, no que tangem ao campo ético e educativo, ou da eticidade da educação são apreendidas e ensinadas, quando nos indignamos diante das injustiças que ocorrem em nosso meio. É aqui que se encontra o início da atitude ética e do paradigma ético, a capacidade de indignar-se. Essa capacidade pode ser verificada nas ações e protestos contra toda forma de injustiça. Ela nasce de um processo de conscientização e da reconstrução da consciência crítica, advinda do ato de educar (Cf. Borges, 2013, p.161). Tal afirmação encontra eco no Dicionário Paulo Freire, expressa de modo enfático por Danilo Streck: “a ética para Paulo Freire, não é algo abstrato, coisa de escrivaninha. O início da ética está na capacidade de indignar-se com as injustiças que ocorrem” (Streck, 2008, p.11).
Um novo paradigma ético a ser pautado e tecido no encontro entre o ato de educar e a atitude ética, em Paulo Freire, é o de um autêntico biófilo, amante da vida, centrada na dignidade da pessoa humana e na busca constante do bem comum. É o que esclarecerá a professora Maria Luiza Marcílio da Universidade de São Paulo:
O princípio do Bem Comum deriva dos princípios da dignidade, da unidade e da igualdade de todas as pessoas, princípios estes que se integram e compõem o princípio da solidariedade ou fraternidade entre os homens. Por Bem Comum se pode entender o favorecimento do conjunto das condições sociais que permitem aos grupos e às pessoas procurar atingir da forma mais completa possível a própria perfeição. A meta prioritária de uma sociedade deve ser o Bem Comum, a fim de estar a serviço do ser humano. Suas exigências estão estreitamente relacionadas ao respeito e à promoção da pessoa em sua integralidade e com seus direitos fundamentais de alimentação, habitação, trabalho, educação, acesso à saúde, à cultura, ao transporte, à livre circulação da informação. A responsabilidade de promover o bem comum compete não apenas às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, sendo o Bem Comum a razão de ser da autoridade pública (Marcílio, 2012, p. 71).
O bem comum, além de ser uma tarefa cada indivíduo na sua singularidade, instituição pública ou privada, é prioridade e razão de ser do Estado. Desta forma, estaremos juntos, cuidando uns dos outros, proporcionando a dignidade e construindo um novo paradigma ético alicerçado nos direitos humanos.
Propusemo-nos a investigar as relações entre direitos humanos, educação e ética na era da globalização impulsionados pelos pressupostos histórico-filosóficos do educador brasileiro, Paulo Freire, que visa a justiça social como finalidade do processo educativo, ententidido como atitude ética. Além disso, compreendemos a atualidade e a reinvenção de Paulo Freire neste início de milênio e do século XXI, como um autêntico biófilo, amante da vida e, por suposto, da sua dignidade, pautada nos direitos humanos, nos ideais da dialogicidade, liberdade, cidadania, autonomia, igualdade, participação e da democracia. A educação implica, também, a amplitude da compreensão do que é a cidadania, participação social e política, bem como o exercício dos direitos e deveres políticos e sociais. É a cidadnia que provocará atitudes solidárias, cooperação, posicionamento crítico face à realidade, auxiliando na promoção da justiça social. Isso é ética, segundo Paulo Freire, é a ética no seu sentido amplo, capacidade de indignação diante das injustiças sociais.
A partir de um trabalho docente focado na transformação e justiça social, bem como no respeito aos direitos humanos, é possível construirmos um novo paradigma ético, capaz de afrontar as vergonhas globalizadas a que nos referimos. Paulo Freire, na confluência entre o ato de educar, que implica uma atitude ética, nos mostra que a ética brota da capacidade de indignar-se diante das injustiças e do desrespeito aos direitos fundamentais. E, nos dias hodiernos o maior e o mais urgente problema ético, que afronta os direitos humanos é a pobreza extrema, a fome e a miséria, produzidas pela exclusão da economia de mercado globalizante. A pobreza extrema está tornado-se a maior arma de destruição em massa, ela é geradora de exclusão e de ignorância, privação do acesso ao conhecimento, será amenizada, diminuida ou erradicada se a combatermos com uma educação pautada nos direitos humanos, cuja finalidade seja a justiça social, a libertação integral do ser humano. Cremos ser esta a melhor maneira de reinventar, atualiazar e recriar Paulo Freire, uma memória viva, presença atuante e atual neste início de milênio e século.
Após introduzirmos a temática, alicerçamos nossa discussão nos pressupostos histórico-filosóficos Freireanos, buscando os fundamentos éticos dos direitos humanos; idealizando a proposta de um novo pardigma ético nascido da confluência entre o ato de educar e da atitude ética na relação educandos-educadores. Este novo paradigma ético é alavancar, a partir da educação, a globalização da solidariedade planetária, que vise o bem comum, derivado da dignidade do ser humano, ser histórico, necessitado, constante e integralmente, de libertação de toda espécie de exclusão. Esta é a tarefa de cada indivíduo, de cada instituição, porém prioridade, responsabilidade e razão de ser do Estado. Este deveria ser o grande fomentador do bem comum e consolidador da cidadania, protetor e garantidor dos direitos humanos e dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM) tão vulneráveis na era da globalização.
A base ética da vida social deveria ser conformada e configurada pelos Direitos Humanos, do contrário, é pura erudição e vacuidade. Os Direitos Humanos consagrados nas lutas constantes pela igualdade, liberdade e solidariedade estão implicados naquilo que é mais nuclaear ao conceito de direito da pessoa. A questão dos valores, da ética, não pode estar assentada em eloquentes discursos, mas em uma práxis, que transforma o contexto histórico-social, que denominamos realidade, ultrapassando todos os limites de uma razão alijada do sentido último do ser humano, que é a sua felicidade, a busca do ‘ser-mais’ na hermêutica Freireana. É responsabilidade do Estado, a promoção, aplicação e o respeito aos Direitos Humanos. Espera-se do Estado, proteção à pessoa humana contra todo tipo de discriminação, violência, marginalização, exclusão e desprezo. Desta forma, o Estado cumpre a sua fução de garantidor do Bem Comum e implementador de políticas públicas orientadas a colocar em prática os objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM), propostos pela Organização das Nações Unidas no início deste terceiro milênio. A concretização dos direitos fundamentais é o papel fundamental do Estado, para que surja uma nova sociedade solidária, participativa, democrática, pautada nos trilhos de uma educação entendida como atitude ética, em que a dignidade humana, nos seus direitos fundamentais, seja respeitada e preservada como queria Paulo Freire e como, todo defensor, ativista e propagador dos direitos humanos almeja.
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1. Professor da Escola de Educação e Humanidades, atuando na área de Filosofia e Educação da PUCPR. Mestre em Filosofia e Doutor em Educação. Curitiba-Paraná. Contato valdirb@hotmail.com
2. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCPR. Membro do Projeto de Pesquisa Formação dos Gestores das Instituições de Educação no Paraná. PUCPR. Contato: luizalbertodealcantara@gmail.com