Vol. 39 (Nº 05) Ano 2018. Pág. 3
Jaime Farias DRESCH 1; Vanice dos SANTOS 2
Recibido: 17/09/2017 • Aprobado: 12/10/2017
2. A arena dos estabelecimentos de ensino
3. Cultura e desafios para a educação
RESUMO: Em 1872, Friedrich Nietzsche proferiu as conferências denominadas “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, quando apresentou uma análise radical e contundente sobre a educação de seu tempo. O presente artigo retoma conceitos como responsabilidade, autonomia, professor, apontados nas conferências, restaurando a noção de campo de batalha, a partir do qual se propõe uma espécie de genealogia do envenenamento educacional. Nesse sentido, aponta-se a permanência da atualidade como um valor responsável pelo processo de desertificação da educação. Palavras-chave: Friedrich Nietzsche. Educação. Atualidade. Campo de batalha. |
ABSTRACT: In 1872, Friedrich Nietzsche pronounced the conferences named “on the future of our educational establishments”, when he presented a radical and forceful analysis on the education of his time. The present article takes over concepts as responsibility, autonomy, teacher, pointed out in conferences, restoring the notion of battlefield, from which one proposes a kind of genealogy of educational poisoning. In this sense it is pointed out the permanence of the present time as a value responsible for the process of desertification of education. |
Friedrich Nietzsche viveu na Alemanha e produziu sua obra na segunda metade do século XIX. Foi contemporâneo de outros grandes pensadores como Marx e Freud. Para além do impacto que a obra de Nietzsche viria a ter sobre a filosofia da época, Paul Ricoeur (1978, p. 100) aponta uma linha convergente entre aqueles que ele denomina “protagonistas da suspeita”, os “descobridores de máscaras”. Neste sentido, tanto Nietzsche, quanto Marx e Freud apresentaram uma disposição de suspeita “à ilusão da consciência de si” (Ricoeur, 1978, p. 148). Os “filósofos da suspeita”, afirma Luc Ferry (2007, p. 180), buscam desconstruir certas ilusões estabelecidas. Estes pensadores compartilham o pressentimento de que existem outras leituras possíveis da realidade, eventualmente obliteradas por crenças e valores tradicionais.
Assim como os demais “mestres da suspeita”, Nietzsche suspeitou que houvesse algo a ser combatido no humanismo clássico, contudo sua radicalidade fez com que recusasse a racionalidade científica em sua obra. Ao contrário da teoria marxiana e da psicanálise, o pensamento nietzschiano não pretendeu substituir antigos ídolos por novas “ilusões”, como ocorrera no Iluminismo (Ferry, 2007, p. 182). Pode-se mesmo considerar um contrassenso tentar encontrar no pensamento de Nietzsche algo semelhante a uma teoria tradicional, justamente por ter sido ele um genealogista, um descontrutivista (Ferry, 2007, pp. 181-182).
Para Nietzsche, não existe uma argumentação que pretenda ser universalmente válida, uma vez que o idealismo por trás das teorias e mesmo da cultura universal só poderia conduzir à barbárie. Neste sentido, a verdade, a ciência, os valores morais, os ideais humanistas, enfim, todos os “ídolos” da humanidade, nada mais são do que prisões metafísicas (Nietzsche, 2011a, p. 74). Por isso, seu pensamento esteve voltado para a realidade, passível de ser interpretada – e criticada – por meio de múltiplas perspectivas. Num de seus trabalhos, intitulado “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, Nietzsche (2011a, pp. 49-160) analisou a situação dos estabelecimentos de ensino alemães em 1872, buscando predizer seu futuro, tal como um arúspice romano (sacerdote que previa o futuro por meio da análise das entranhas das vítimas de sacrificios), despojando-se de quaisquer generalizações metafísicas (Nietzsche, 2011a, p. 52). O texto é resultado de cinco “conferências” proferidas pelo filósofo na época em que era professor na Basiléia e nele existe uma nítida preocupação em apresentar com profundidade o problema educacional na Alemanha. Esta qualidade presente no pensamento nietzschiano nos instilou pouco a pouco o antídoto necessário para despertar do torpor e compreender o sentido de algo que poderíamos chamar a genealogia do envenenamento educacional. Tendo como base especialmente os textos das conferências, destacaremos alguns pontos do denso, vigoroso, contundente e, também, poético pensamento de Nietzsche.
Uma questão importante a ser destacada diz respeito ao perspectivismo nietzschiano, que representa uma disposição contrária ao estabelecimento de universais. Isto representa a destruição dos ídolos e dos ideais e resulta numa crítica que é realizada a partir da desconstrução da realidade. Em alguns momentos, seu pensamento pode parecer contraditório caso não lhe conceda a expressão do seu valor enfático, ou mesmo artístico e sarcástico. Em geral, suas críticas apresentavam cores fortes, pois ele considerava importante dar vestes adequadas aos contendores. O foco deste tipo de construção filosófica está na mobilização das energias do leitor. Assim, Nietzsche pretendia dar legitimidade a sua crítica, atrair aliados e justificar a movimentação dos legionários no campo de batalha. Para ele, não há sentido em lutar sozinho por uma causa, um ideal. A luta é, antes de tudo, uma arte bravamente e pacientemente burilada. Portanto, buscou aliar-se aos mais fortes, aos que aprenderam a manejar suas armas e reserva o uso do “chicote” para o “indivíduo autônomo supramoral”, isto é, aquele que possui o privilégio da “responsabilidade” (Nietzsche, 2010, p. 45). Aparentemente, há uma contradição neste trecho da Genealogia da moral: como poderia o indivíduo soberano ser qualificado como “autônomo”? Nietzsche não havia apontado suas armas, alguns anos antes, contra a educação para a autonomia? (Nietzsche, 2011a, p. 148).
Vejamos: o homem soberano, aquele que possui o instinto dominante da “responsabilidade”, este é o homem que Nietzsche quer mobilizar. O “indivíduo soberano” é capaz de fazer promessas, é tornado confiável e é livre ao ponto de ter sua “medida de valor em relação” aos outros. Distingue os demais olhando para si mesmo: honra seus iguais e repudia – a pontapés e chicotadas – os que prometem de forma irresponsável. Este instinto dominante é o que ele chama de “consciência”(Nietzsche, 2010, pp. 44-45).
Portanto, são perspectivas diferentes, não há contradição pois o filósofo não discute uma ideia universal de “autonomia”. Nas conferências, ele critica a “educação para a autonomia”, enquanto na Genealogia, defende a “autonomia supramoral”, o que significa que o homem soberano é livre, pois tem a posse de sua “medida de valor”. Em determinado ponto, as duas questões se aproximam. Quando Nietzsche ataca o modelo pedagógico que pretende formar o estudante para a “liberdade acadêmica”, ele não identifica neste estudante os traços do homem soberano. Ao contrário, a preparação deste jovem não foi profunda o suficiente, não serviu como experiência de imersão e busca de originalidade. E mesmo a Universidade, não é a instituição cultural que desejaria ser: nela, os estudantes formados para a autonomia não conseguem fortalecer seu espírito pois “vivem sem filosofia e sem arte” (Nietzsche, 2011a, p. 151).
As questões filosóficas, como a autonomia, não podem ser reduzidas a um binarismo ou maniqueísmo; as posições se alternam, mudam. Se uma determinada luta ocorre entre dois aspectos da realidade, num outro momento, o campo está completamente alterado e, então, ocorre outra luta entre aspectos que não são “essencialmente” opostos. Assim, quando Nietzsche faz sua crítica, não está “debruçado” sobre a realidade, mas inserido nela. Sua interpretação depende do ponto de vista e do momento histórico. Os problemas e as soluções apontados pelo filósofo têm apenas um ponto em comum: a barbárie e as formas de evitá-la. Entenda-se a barbárie do modo mais abrangente, como provavelmente Nietzsche a percebia: como toda e qualquer situação de opressão contra os “espíritos livres”, incluindo estratégias idealizadas para a salvação do homem. Assim, o único “sofrimento” justificável seria aquele que viesse fortalecer o espírito humano. E compreenda-se este “espírito” como expressão da “pulsão” que tenta sufocar o “ascetismo” e não como elevação ao suprassensível (Wotling, 2011, p. 33).
Nietzsche constrói uma verdadeira arena onde seu pensamento ganha a forma e a força para elevar-se do chão da cotidianidade. O sangue que eventualmente é derramado chama nossa atenção. Mas alguém na plateia já percebeu que a luta de gladiadores é a materialização da pulsão violenta do homem. Existe uma ligação estreita entre aqueles que desferem golpes contra o adversário na arena e nós mesmos. Portanto, nosso corpo participa do combate, integrando a cenografia bélica, fato, diga-se, menos angustiante ao homem moderno do que a evidência de compartilharmos o impulso à guerra, todavia dissimulado em milhares de movimentos osteomusculares e impulsos nervosos. Nosso desejo nos coloca próximo ao combate para fazer despertar a violência reprimida, mas queremos desenvolver ainda mais a habilidade de apaziguar os nossos instintos. Assim como na arena de gladiadores, tentamos controlar a luta, visto ser a arena um simulacro da guerra. Somente o campo de batalha legítimo, sem peripécias e artifícios de sedução do público, pode dar sentido à expressão da força. Do contrário, como tem acontecido, vemos a fraqueza conduzir os homens e os exércitos à indignidade, ao enfraquecimento do espírito. Nossa moral, como assevera Nietzsche (2010), conduz ao ressentimento e é este o instrumento de controle à nossa força interior. Nossos instintos estão circunscritos a esta arena moral, onde o sofrimento é onipresente e supostamente recompensado numa dimensão suprassensível. E o espetáculo permanece rendendo homenagens à figura central de Hades, o senhor do mundo dos mortos. Só é possível abandonar este reino da morte destronando os valores morais do ressentimento.
Esta visão da “arena” que propomos aqui é importante para entender a proposta nietzschiana de ultrapassar seus limites, para então atacar veementemente os postulados do racionalismo e do humanismo. Não há qualquer rede de proteção àqueles que pretendem superar o estado de mediocridade em que o homem se encontra. Embora Nietzsche esteja se referindo ao contexto do final do século XIX, compreendemos que, de modo geral, o desafio ainda está vigente. A guerra deve ocorrer em campo aberto, sem quaisquer garantias. Contudo, lançar-se à vida dessa forma é a única saída para vencer a batalha interior e domar a violência. É preciso abandonar a condição de espectador e rejeitar os movimentos ensaiados e a mimesis (imitação) da vida eternamente reencenada na arena do ressentimento.
Muitas arenas foram montadas no decorrer da história e a nossa volta. Podemos vê-las como metáforas da vida. A arena do nosso trabalho é um dos exemplos. O ambiente de trabalho, assim como o ringue, é um espaço delimitado, com regras próprias, mas principalmente, controlado por um juiz e direcionado a um público. O trabalho é um jogo, contudo, é uma violência tramada segundo os valores morais do ressentimento. Esse é o jogo de cartas marcadas jogado no capitalismo, onde a mediocridade liberal aparece estampada em uma aristocracia do lucro e do saber transitório: estes são os nobres que dançam nas cortes da atualidade desdenhando da nobreza de espírito. O triunfo do homem no capitalismo é o triunfo da ilusão que reverencia a renúncia, a privação, a negação da vida.
Concordamos com Luc Ferry quando menciona que o pensamento nietzschiano é abrasivo, mas também genial, porque deixou sua marca na forma como pensamos (Ferry, 2007, p. 181). Segundo Ferry, a tese central de Nietzsche é que a vida se constitui tão somente da “realidade”. Não há céu, nem inferno, nem religião, nem ídolos. Fora da realidade há apenas modos de fugir da vida (Ferry, 2007, p. 179).
A crítica de Nietzsche é radical, porém não é um maremoto que devasta totalmente o mundo e a humanidade. É uma característica sua, entretanto, atacar muito violentamente os valores e os pilares da realidade. De fato, o que ele quer é produzir uma “interpretação profunda”, capaz de desestabilizar as relações não apenas na superfície. O que importa é o movimento interno do oceano, a força capaz de empurrar os cadáveres para a areia, e não apenas as vagas na paisagem.
Um conceito bastante vigoroso e potencialmente avassalador no pensamento nietzschiano é o anti-igualitarismo, um componente que fascinou os nazistas. Contudo, o próprio filósofo, contestando o antissemitismo, defende a importância dos judeus na constituição de uma futura “raça européia mista”. Para ser forte, esta nova raça deveria contar com o judaísmo para superar a tendência medíocre instalada pelo cristianismo (Nietzsche, 2011b, § 475, pp. 233-234). Nisto sim podemos ver a marca de Nietzsche, expressa na “glorificação da força”, como bem destaca o tradutor Paulo César de Souza (Nietzsche, 2011b, p. 302).
Com respeito às conferências da Basiléia, Nietzsche faz uma avaliação dos problemas mais profundos dos estabelecimentos de ensino alemães. Segundo ele, há “duas correntes”, ambas nefastas em seus efeitos, que dominam os estabelecimentos de ensino alemães: 1) “tendência a estender a cultura o mais possível”: “a cultura deve ser levada a círculos cada vez mais amplos”; 2) “tendência a reduzir e enfraquecer a cultura”: “se exige da cultura que ela abandone suas mais elevadas pretensões de soberania e se submeta como uma serva de outra forma de vida, especialmente aquela do Estado”. Nietzsche denomina estas correntes como “extensão” e “redução”. Para vencer estas duas tendências, seria necessário haver duas tendências opostas: “a tendência ao estreitamento e à concentração da cultura, como réplica à extensão, e a tendência ao fortalecimento e à soberania da cultura, como réplica à redução” (Nietzsche, 2011a, p. 53).
O objetivo de Nietzsche é descrito neste trecho, onde menciona os dois problemas da educação institucionalizada: as tendências a atender mais pessoas e também a atender aos interesses do Estado e do mercado. Pelas características da cultura elevada, defendida pelo filósofo, supõe-se que não possa ser estendida a todos, por isso, deve ser concentrada. Pelo caráter não utilitarista da cultura superior, ela não pode ser direcionada às utilidades imediatas, a cultura deve ser soberana e não responder a interesses extrínsecos.
Nietzsche formula sua crítica à educação utilizando, basicamente, a contraposição, o combate entre duas figuras. De um lado, o “gênio grego”, a “cultura clássica”, de outro, a “pseudo cultura” ou a “barbárie do presente”(Nietzsche, 2011a, pp. 98-100). Para ele, os exercícios realizados no ginásio, por exemplo, estariam preparando os jovens dentro do “espírito jornalístico” que prevalecia à época, em detrimento da formação do espírito alemão.
Em relação à elaboração das políticas educacionais, Nietzsche nos leva a pensar que não adianta estabelecer metas e tentar alcançar resultados sem que primeiro ocorram mudanças profundas na formação do homem (alemão). A cultura superior deve ser valorizada e ensinada, evidenciando os guias intelectuais nos estabelecimentos, aqueles que saberão orientar os estudantes nos caminhos mais adequados, exigindo-lhes disciplina e dedicação. Esta cultura deve ser soberana, desvinculada do imediatismo, da atualidade, das necessidades do Estado e do mercado. Valorizar os grandes gênios da cultura alemã é algo primordial para construir o “espírito alemão”. Para Nietzsche, caberia à educação produzir o espírito da nação, de modo que os espíritos livres possam dispor de elementos para exercer sua força no mundo. Mais uma vez percebe-se uma oposição, uma luta entre os “espíritos cativos” e os “espíritos livres”, sendo que os segundos buscam libertar-se das opiniões do seu tempo, isto é, das opiniões que acorrentam os cativos à tradição (Nietzsche, 2011b, § 225, p. 143).
Opondo-se à tradição, os espíritos tornam-se fortes quando aplicam energia suficiente para se libertar. Assim como alguém que se perdeu numa floresta, engenhosamente, o gênio consegue encontrar uma saída que não era conhecida. Nietzsche combate a visão mitológica ou religiosa do gênio, enfatizando a “originalidade” com que algumas pessoas podem responder às contingências da vida (Nietzsche, 2011b, § 230-231, p. 147). Assim a natureza produz os gênios e esta é a lição que a escola deve aprender para fortalecer os espíritos livres.
Outra lição sobre a forma de pensar a escola fica implícita naquela imagem de alguém perdido na floresta, proposta pelo filósofo. Os ideais Iluministas são questionados quando o foco da educação deixa de ser a “iluminação”, a salvação da humanidade pelo conhecimento. Esta noção é desconstruída, junto com os ideais de redenção universal, permanecendo apenas a educação como processo de aprofundamento, de mergulho cultural, sem qualquer promessa, sem qualquer utilidade prática. A educação para Nietzsche é este salto no trampolim da vida, é este perder-se para depois encontrar-se, é este gozo de ter vencido as adversidades em direção ao prazer de estar vivo.
Em relação ao professor, não há propriamente qualidades específicas que não sejam uma boa formação e a experiência decorrente deste processo. Este, portanto, será não o “educador”, mas o “homem” capaz de ser guia e pensador. Nietzsche considerava o professor como um “mal necessário”, na medida em que a Alemanha os produzia em número excessivo, tal qual aos comerciantes. Em ambos os casos, a multiplicação dos “intermediários” resulta em inconvenientes: os comerciantes logram tirar proveito dos consumidores e dos produtores; e os professores são responsáveis pela miséria intelectual alemã; é por causa deles que se aprende tão pouco e tão mal (Nietzsche, 2011a, pp. 324-325).
Nietzsche reprova em absoluto o método socrático – a “maiêutica”. Isso porque a educação não está na reflexão em busca de verdades, tampouco pode eximir-se da disciplina, pois exige uma “alma belicosa”. O filósofo, o mestre deve exigir o máximo do seu discípulo, deve ser duro e saber dizer não. E quando Nietzsche menciona que o mestre deve ter “vontade de fazer sofrer” não significa que esteja exaltando o sadismo (Nietzsche, 2011a, p. 335). Não se trata do sofrimento ascético e sim do doloroso trabalho necessário à educação. Trata-se da coragem de ir ao campo de batalha, deixar o corpo vulnerável às feridas, todavia, lutando bravamente para permanecer ileso. Somente assim, aprende-se a lutar, aprende-se a desprezar o medo paralisante e a rejeitar a bajulação e a mediocridade.
Não há sentido em tentar compreender o presente aplicando uma suposta teoria nietzschiana: isso porque não há interpretações extemporâneas em sua obra. Mais de um século nos separam do momento em que o filósofo alemão pensou sobre os estabelecimentos de ensino que lhe eram contemporâneos. Desde então, a educação vem mudando, tendo em muitos países atingido níveis catastróficos em termos de “extensão” e de “redução”. Vivemos num cenário diferente e, certamente nosso “deserto” é outro, porém tão árido quanto aquele do século XIX. E é exatamente a insatisfação com tamanha aridez que nos motiva a permanecer no campo de batalha contra os valores da atualidade. Nietzsche nos desafia a renovar o espírito combativo. Ele nos dá disposição para prosseguir e desejar entusiasticamente viver. Não importa o quanto seja difícil, existe uma satisfação real em fortalecer o espírito contra os ideais hostis à vida (Nietzsche, 2010, p. 78). Se quisermos, podemos fazer de Nietzsche um poeta que nos move ao desconhecido com energia e com coragem. Ele nos mostra que a vida tem que superar o sofrimento. A ânsia do ser humano tem que ser em direção à vida e não à morte. Se há algum ensinamento que se repete sem constrangimento para a nossa época é esse: o valor da luta pela vida.
Em sua época, Nietzsche compreendeu o jornalismo como expressão do que era superficial, por isso uma atividade oposta à educação. O jornalismo, no final do século XIX não era, certamente, o mesmo de hoje. A cultura de massas estava apenas começando a se constituir e os jornais buscavam estabelecerem-se como empresas lucrativas, abandonando seu passado proeminentemente político-partidário. O jornalismo, então, apostou no interesse crescente do leitor por informações sobre a vida cotidiana. A atualidade ganhou destaque nas notícias que eram veiculadas numa velocidade crescente, graças às inovações tecnológicas surgidas no século XIX: a invenção do telégrafo, o aprimoramento das técnicas de impressão por meio de rotativas, a criação e expansão das agências de notícias (Traquina, 2005, pp. 38-39). Além disso, as relações comerciais em nível mundial, a complexificação de todo o setor produtivo e a expansão das cidades, a constituição e ampliação dos campos científicos, tudo isso colaborou para transformar a “atualidade” em algo extremamente lucrativo, uma vez que sua “necessidade” tornava-se cada vez maior para um número crescente de pessoas.
Hoje, talvez Nietzsche não criticasse o jornalismo em si, ao menos não de modo geral. Mas podemos utilizar seu arsenal bélico contra determinadas áreas da produção do conhecimento que possuem igualmente a pretensão de serem agentes da verdade, amparados por técnicas, procedimentos, metodologias que também não se aprofundam: permanecem na superfície dos fatos, das informações e do conhecimento. A crítica poderia ser, inclusive, contra a produção científica e tecnológica dos centros de pesquisa e das universidades. Seria quase um prolongamento da crítica feita no século XIX aos estabelecimentos de ensino superior. Isso porque, como mencionamos, os problemas daquela época não foram resolvidos. Ao contrário, a Universidade produz cada vez menos intelectuais e cada vez mais eruditos, especialistas em campos mais reduzidos do que nunca. Além disso, a carência de filosofia e de arte não é menor hoje do fora há um século.
A modernidade nos ensinou que as respostas da ciência têm mais valor do que as explicações cosmológicas sobre a realidade. No entanto, o cientificismo e os ideais humanistas constituem-se também como verdades que sujeitam o homem contemporâneo. Nietzsche não abandonou a dúvida, pois quis enxergar em profundidade e percebeu que novos ídolos passaram a substituir antigas imagens sagradas no templo consagrado à moral. Então, propôs a única libertação possível: a destruição de todos os templos, a desvalorização e superação dos valores morais. Para ele, o homem livre, capaz de colocar-se perante a vida no campo de batalha deve ser capaz de seguir em frente, de caminhar por si mesmo e abandonar a existência abjeta do ressentimento.
O abandono da educação como conflito, como experiência profunda de fortalecimento do espírito é decorrente da inversão moral que privilegia a “má consciência” do “homem do ressentimento” (Nietzsche, 2010, p. 58). Consequentemente, a educação adquire um caráter utilitarista, que se desdobra no pragmatismo de preparar o homem para as dificuldades da vida. Segundo Nietzsche, a cultura clássica foi destituída, uma vez que o objetivo da cultura seria a utilidade, o lucro, “o maior ganho de dinheiro possível” (Nietzsche, 2011a, p. 72-73). Este é o ideal do ressentimento: vingar-se da opressão extraindo o máximo possível do mundo em que se vive. A questão que surge é justamente sobre o lucro obtido por este homem reativo: o que o “deserto da atualidade” pode oferecer como recompensa àquele que glorificou a bestificação da humanidade e o enfraquecimento do espírito? Não surpreende o fato do homem, tornado “moeda corrente”, não ter percebido que sua luta pela sobrevivência neste deserto tornou-se uma disputa inglória na arena da mediocridade. Nietzsche nos adverte contra este vazio. Não é possível mergulhar na superficialidade do “mundo das necessidades” para vencer a “miséria” (Nietzsche, 2011a, p. 120). A superação do deserto do ressentimento está na destruição da atualidade como valor supremo de nossas vidas. Nietzsche nos mostra que o fortalecimento do espírito deve ser buscado na construção de nossa consciência, e indica ser este o caminho para gozar a vida sem medo, permitindo-nos uma constante metamorfose de nós mesmos.
Ferry, Luc. (2007). Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Tradução Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva.
Nietzsche, Friedrich. (2011a). Escritos sobre educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. 5. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola,
Nietzsche, Friedrich. (2011b). Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres. 6. reimp. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
Nietzsche, Friedrich. (2010). Genealogia da moral: uma polêmica. 2. reimp. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
Ricoeur, Paul. (1978). O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Porto: Rés.
Traquina, Nelson. (2005). Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. 2. ed. Florianópolis: Insular.
Wotling, Patrick. (2011). Vocabulário de Friedrich Nietzsche. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes.
1. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC). Doutor em Educação (UFSCar), Mestre em Educação (UNESP). E email: prof.jaime@uniplaclages.edu.br
2. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC). Doutora em Educação (UFRGS), Mestre em Filosofia (UNISINOS). E email: vanicedossantos@gmail.com