ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 50) Año 2017. Pág. 33

A constituição do superego : Um enfoque na obra de Melanie Klein no período de 1921 até 1945

The constitution of the superego: An approach to the work of Melanie Klein in the period from 1921 to 1945

SCATOLIN, Henrique Guilherme 1; CINTRA, Elisa Maria de Ulhoa 2

Recibido:28/08/2017 • Aprobado: 25/09/2017


Conteúdo

Introdução

1. Década de 20: o início da construção de sua obra

2. As relações de objetos parciais e o superego primitivo

3. Década de 30 e a Posição Depressiva

4. A Posição Depressiva e suas Características

5. Conclusões

Referencias Bibliográficas


RESUMO:

Este artigo tem como objeto de estudo a constituição do superego na obra de Melanie Klein. A partir de uma pesquisa bibliográfica em sua obra, especificamente entre o período de 1921 até 1945, o autor propõe um estudo sobre a constituição desta instância psíquica a partir das relações objetais parciais. A problemática a que se propõe este estudo seria: como podemos compreender a constituição do superego primitivo a partir das relações objetais parciais na obra kleniana, neste primeiro momento da sua obra? Como resultado, o autor recorre à constituição das relações objetais parciais, recorrendo as heranças de Abraham e Ferenzci (a moralidade esfincteriana, que seria uma espécie de precursor fisiológico do superego) para a construção de sua obra. Os primórdios do superego estariam voltados as primeiras catexias de objeto e identificações, as primeiras introjeções orais. Neste meandro, os mecanismos de introjeção são de extrema relevância para a etiologia desta instância, uma vez que o superego passa a existir durante a fase oral. Como conclusão, o autor propõe que, com o desenvolvimento da sua teoria, a compreensão da formação desta instância foi complementando a visão freudiana, ressaltando o papel das primeiras introjeções (e suas conseqüências) para o psiquismo.
Palavras-chave: relações objetais parciais e totais, superego primitivo, técnica do brincar; posição depressiva; introjeção e projeção.

ABSTRACT:

This paper aims to study the constitution of the superego in the work of Melanie Klein. From a bibliographical search in her work, specifically from 1921 until 1945, the author proposes a study of the constitution of this psychic instance from part-object relations. The question posed in this study would be: how can we understand the constitution of the primitive superego from the part-object relations in Klein’s work, at this early point in her work? As a result, the author refers to the constitution of part-object relations, using the ideas of Abraham and Ferenzci (the sphincter morality, which would be a kind of physiological precursor of the superego) for the construction of her work. The origins of the superego would be oriented to the first cathexis of object and identifications, the first oral introjections. In this path, introjection mechanisms are of utmost relevance to the etiology of this instance, once the superego then exists during the oral stage. As a conclusion, the author proposes that, with the development of his theory, the understanding of the formation of this instance is complementary to the Freudian view, emphasizing the role of the first introjections (and their consequences) for the psychic life.
Keywords: part and whole-object relations, primitive superego, play technique; depressive position; introjection and projection.

Introdução

O superego, na obra freudiana, começa a ganhar destaque a partir da década de 20, quando Freud associa esta instância como o herdeiro do complexo de Édipo. O herdeiro dos valores morais dos pais, como também do contexto onde este sujeito estaria inserido, coincidiria com o início do período de latência. Assim, para os freudianos, o superego estaria associado à resolução edipiana.  

Se a Áustria, no início da década de 20, pulsava conhecimento sobre o Inconsciente, as pulsões e o superego neste primeiro momento, o cenário londrino dava os seus primeiros passos com Ernest Jones. Nesta mesma época, em pleno contexto de pós-guerra, uma autora, de origem judaica, começa a ganhar destaque, pela técnica do brincar, no cenário britânico: Melanie Klein, a grande pioneira da técnica infantil do brincar e da abertura da psicoterapia para psicóticos.

A partir da análise de crianças, Klein vai ganhando cada vez mais espaço na década de 20 e, a convite de Jones, vai até a Inglaterra. Aqui se inicia a jornada contextual deste artigo, a partir desta problemática: como podemos compreender a constituição do superego primitivo, a partir das relações objetais parciais, na obra kleniana, neste primeiro momento da sua obra? Quando este artigo menciona este primeiro momento, esta se referindo aos dois livros clássicos de Melanie Klein: Amor, Culpa e Reparação e A Psicanálise de Crianças.

A partir disso, como os conceitos de objetos parciais e da constituição do superego primitivo irão permear este estudo, gostaria de retomar, primeiramente, a concepção de objetos parciais, entrelaçando-o com a constituição do superego.  Para tal, este artigo irá realizar uma breve retomada destes conceitos na teoria postulada por Melanie Klein, trazendo as interpretações dos seus principais seguidores. Para esta retomada será respeitada a ordem cronológica da construção de sua teoria.

1. Década de 20: o início da construção de sua obra

Melanie Klein parte do pressuposto do objeto parcial de Abraham, decodificando-o. Abraham aponta que “enquanto que as observações que conduziram à descrição da organização sádico-oral encontraram uma consideração especial na literatura psicanalítica [...], o primeiro estágio do desenvolvimento da libido, a fase ‘oral’ aguardava novas investigações (1927/1970, p. 54). Foi neste contexto que, ao analisar uma paciente com demência precoce, Abraham ressaltou a questão da incorporação de objeto, apontando que o impulso canibalesco já se faz presente desde o início da vida. Para Abraham (1927/1970), os objetos parciais (como o pênis e o seio) estão associados a este estágio de ambivalência, bem anterior à conquista do amor objetal total (e que na teoria de Klein este amor será alcançado na posição depressiva).

Klein, ao beber na teoria de Karl Abraham, seu primeiro analista, elabora uma teoria única destes objetos, ressaltando “a importância dos estádios pré-genitais e das relações de objeto parcial no desenvolvimento tanto do complexo de Édipo quanto do superego” (SEGAL, 1964/1975, p. 19). As relações de objeto, na remota infância, remetem as relações de objetos parciais, precedendo a existência de objetos totais (já na posição depressiva) na existência do remoto ego. Neste contexto, na divisão do id, um ego ‘não coeso’ está presente e um superego primitivo, pulsional, tem início a partir das primeiras introjeções orais.

Isto significa que, em seus jogos pulsionais, na remota infância, qualquer objeto que traga gratificação para o bebê realça os movimentos de amor. Por outro lado, aquele que venha a frustrar, provoca movimentos de ódio e paranóia. Neste binômio mãe X bebê, Hinshelwood aponta que “essas concepções primitivas são indicadas pelas notações seio ‘bom’, seio ‘mau’; mãe ‘boa’, mãe ‘má’, e , de modo semelhante, pai [bom e mau], pênis [ bom e mau]” (1992, p. 383). 

2. As relações de objetos parciais e o superego primitivo

Na concepção da teoria kleniana, o objeto primeiro de todas as fantasias é o seio materno, momento este em que o bebê procura suas satisfações imediatas, ocasionando os primeiros movimentos de cisão (seio mau – mãe má/ seio bom – mãe boa). Neste contexto, a incorporação do seio é uma metáfora para a incorporação dos demais objetos, como o pênis. São estes objetos que servirão de pilares identificatórios para o bebê.  Assim, desde a remota infância, temos a equivalência simbólica entre seio, fezes, pênis e bebê. E como isso se traduz na linguagem kleniana?

Na linguagem kleniana, para o bebê, a mãe resguarda os demais objetos. Assim, o seio bom pode dar espaço ao pênis bom, como o seio mal pode dar espaço ao pênis mau, tornando indissociáveis. Neste contexto, ainda é necessário relevar que é na  ausência da mãe ( ou da sua equivalente) que um terceiro começa se fazer presente e dar inicio as relações edípicas precoce.

Em 1928, ao escrever o artigo Estágios Iniciais do Conflito Edipiano, Klein aponta que “as tendências edipianas são liberadas como conseqüências da frustração sentida pela criança com o desmame, e que se manifestam no final do primeiro e início do segundo ano de vida” (KLEIN, 1928/1996, p. 216) [3].  Estas seriam frutos das frustrações anais, momento este em que os impulsos pre-genitais estariam repletos de sentimentos de culpa. Neste momento, Klein recorre a Ferenzci, destacando a ‘moralidade esfincteriana’, ou seja, esta seria uma ‘espécie de precursor fisiológico do superego’  associado aos impulsos uretrais e anais.

Ferenzci, ao publicar o artigo Psicanálise dos Hábitos Sexuais em 1925, ressalta que “a identificação da criança com os seus pais passa, como se sabe, por uma primeira fase pré-genital” (1925/2011, p. 365).  Antes de alcançar o plano genital, o menino rivaliza, por meio da identificação pré-genital, com os seus pais por intermédio das “proezas anais e uretrais” (1925/2011, p. 365). Neste plano, “a identificação anal e uretral com os pais [...] parece constituir-se uma espécie de precursor fisiológico do ideal do ego ou do superego no psiquismo da criança” (1925/2011, p. 366).  Neste contexto, a criança pode estabelecer comparações entre elas e os adultos por intermédio de “moral dos esfíncteres muito severa, que não poderia transgredir sem remorsos e escrúpulos intensos”(1925/2011, p. 366). Antes de alcançar o complexo de Édipo, a educação esfincteriana é adotada moralmente pela criança. Essa educação ‘moralista’, de etiologia fisiológica, instintual, seria a mola propulsora da moral do adulto, precursora do superego. Assim, este superego kleniano, respaldado na teoria de Ferenzci, teria uma etiologia mais pulsional, instintiva, e não seria aquele herdeiro do complexo de Édipo, tal como descrito por Freud no início da década de 20.

Se Ferenzci escreve sobre a moralidade esfincteriana em 1925, Klein retoma este postulado em 1928, associando o sentimento de culpa a esta formação precoce, destacando a importância do superego neste contexto, como diz:

A conexão entre a formação do superego e as fases pré-genitais do desenvolvimento é muito importante a partir de dois pontos de vista. Por um lado, o sentimento de culpa se prende às fases sádico-oral e sádico-anal, que ainda são as predominantes; por outro, o superego se forma quando essas fases ainda estão em ascendência, o que explica o seu rigor sádico (1928, p. 217).

Neste contexto, um ego fraco tenta se defender, a custas da repressão, de um superego pulsional primitivo, momento este em que a criança, em sua pré-genitalidade, teme ser devorada pelo seu próprio superego. Por outro lado, as frustrações orais dão origem às ansiedades mais primitivas e ao conflito edipiano mais incipiente.

Neste meandro, a partir da identificação remota com a mãe, o corpo da mãe pode ser compreendido como um cenário de todos os processos de desenvolvimento sexual. Neste há os objetos parciais: o seio bom e mau, as fezes boa e má. A partir do conflito edipiano precoce, a criança quer ser apossar destes objetos devido a sua pulsão epistemofilica, gerando movimentos de agressividade e sentimentos de culpa precoce.

A mãe, que outrora frustrara seu filho oralmente, permite uma nova frustração, mas agora no âmbito da analidade mais remota.  Para Klein “a criança deseja tomar posse das fezes da mãe, penetrando em seu corpo, cortando-o, devorando-o em pedaços e destruindo-o” (1928/1996, p. 218). O grau de alcance para a genitalidade dependerá da intensidade da ansiedade gerada e elaborada neste momento, neste espaço da pré-genitalidade em que os conflitos edipianos já estão presentes. 

É necessário ressaltar que a intensidade das fixações libidinais mais remotas poderão gerar o movimento de ódio que o menino irá sentir em relação a sua mãe, dificultando a ascensão da posição depressiva. “As fixações sádicas também exercem forte influencia sobre a estruturação do superego, que está em processo de formação quando essas fases ainda estão em ascendência” (KLEIN, 1928/1996, p. 219).  Ou seja, quanto maior for a fixação na fase anal-sádica, maior será a intensidade do superego da criança, causando-o temor devido as tendências destrutivas.

O menino, durante a sua pré-genitalidade, também poderá desenvolver um intenso medo relacionado as figuras parentais devido a intensidade da agressividade destinado aos mesmos.  Para Klein, o medo da mãe, que precede o medo do pai, pode estar associado ao desejo “de roubar o pênis do pai (que estaria dentro do corpo materno), os filhos e os órgãos genitais femininos” (1928/1996, p. 220). Assim, a ansiedade seria fruto da tirania de um superego  que pode vir a devorar, mutilar e castrar os genitais do menino como punição, embora  as tendências sádico-anais de roubar, atacar e destruir a mãe  coincide com o processo identificatório mais remoto do menino. 

Segundo Klein:

O menino também deriva da fase feminina um superego materno que o impele, assim como a menina, a criar identificações cruéis primitivas, e ao mesmo tempo, bondosas. Contudo, depois de passar por esta fase, ele retoma [...] a identificação com o pai. Por mais que o lado materno se faça sentir na formação do superego, ainda é o superego paterno que desde o inicio exerce a influencia sobre o homem (1928/1996, p. 223).

Neste contexto, Klein ainda não tinha descrito a posição esquizo-paranoide, mas entendo que as cisões nesta remota fase remontam a esta posição, uma vez que tanto o menino como as meninas poderão criar identificações boas e más nesta fase. Além disso, ressalto a singular percepção de Klein neste momento de construção do superego: embora o superego da mãe tenha o seu devido valor, é o superego paterno que irá exercer a sua influencia nos casos masculinos.

Como o superego apresenta uma condição especial neste artigo, não podemos nos esquecer que Klein já destacava a sua intima relação com a neurose obsessiva. Em sua clínica, vários casos de análise infantil despojaram a sua sensatez e tenuidade desta instância psíquica em suas observações sobre a neurose obsessiva. Ao publicar a Personificação do Brincar das Crianças, Klein (1929/1996) traz o caso Erna, ressaltando sua “grave neurose obsessiva” (1929/1996, p. 229) que ocultava um quadro de paranóia. Em seu brincar, Erna demonstrava um sadismo excessivo do id e do superego, rodeada por perseguidores em suas fantasias lúdicas. Neste mesmo artigo, Klein (1929/1996) ressalta a brincadeira  da pequena Rita, de quase três anos, uma vez que o seu rigor superegoico impedia toda fantasia. Sobre este último caso, diz: “foi só quando o rigor excessivo do superego se tornou menos severo que Rita começou a desenvolver jogos de fantasia”. Assim, o superego de Rita, que anteriormente lhe causava certa inibição, agora, mais brando, possibilitou um avanço na psicoterapia.

Na observação dos casos de Erna e Rita, há dois pilares que precisa ser mencionado: a neurose obsessiva resguardando o quadro de paranóia e o papel do superego sádico, especialmente no caso de Rita que, segundo a nota de rodapé acrescida a este texto, dizia que ela “sofria de uma neurose obsessiva pouco comum a sua idade” (1929/1996, p. 232). Assim, o papel do superego tirânico se constitui com base nas organizações pré-genitais que estão em constituição. Sobre isso, Klein aponta:

Quanto mais o desenvolvimento do superego e o desenvolvimento libidinal avançam em direção ao nível genital, deixando para trás os níveis pré-genitais, mais as identificações fantásticas e realizadoras de desejos (cuja fonte é a imagem de uma mãe que oferece gratificação oral) se aproximam dos pais reais (KLEIN, 1929/1996, p. 233).

 

Neste contexto, Klein ressalta que o abandono da mãe é resultante das frustrações orais que esta impõe ao bebê, propiciando uma cisão entre uma mãe boa, bondosa (que dá atenção, amparo) e uma mãe má, ameaçadora (que frustra) [4], estimulando o sadismo na criança e gerando ansiedade. Aqui a ambivalência, entre amor e ódio, conduziria a uma síntese do superego de suas naturezas contraditórias. Tal fato é ilustrado pela personificação das imagos ameaçadoras paternas de Erna e de Rita em suas brincadeiras [5]. Assim, neste contexto,  a técnica analítica do brincar possibilitava a analise das camadas mais primárias do superego, rodeadas por situações de ansiedade que poderiam gerar ataques ao corpo materno, momento este em que a criança “espera encontrar dentro da mãe o pênis do pai, excrementos e crianças” (1930/1996, p. 251).

São estes ataques que darão alimento as ansiedades mais arcaicas, destinados ao corpo materno. Entretanto, a criança teme receber ataques do objeto atacado. Assim, “é a ansiedade [...] que põe em movimento o mecanismo da identificação” (1930/1996, p. 253), momento este em que o desenvolvimento do ego está diretamente relacionado a sua capacidade  de tolerar as primeiras situações de ansiedade. Neste momento, a criança é rodeada de objetos bons e maus, como os excrementos bons e maus, o seio bom e mau e o pênis bom e mau.

3. Década de 30 e a Posição Depressiva

Como a etiologia do superego é de extrema relevância para a problemática desta pesquisa, gostaria de ressaltar que os textos de Klein escritos na década de 30 apresentam uma singularidade para a compreensão da formação desta instância psíquica.  Em 1933, ao redigir O Desenvolvimento Inicial da Consciência na Criança, Klein destaca que o “superego primitivo é muito mais rigoroso e cruel do que o da criança mais velha ou do adulto, literalmente esmagando o frágil ego da criança pequena” (1933/1996, p. 286). O medo de ser devorado, cortado, está associado às ansiedades mais primitivas, cuja instância psíquica se faz presente. Assim, o superego é formado a partir das imagos paternas e maternas que se voltam contra a própria criança, norteados pelos impulsos agressivos recalcados.

Ressalto que este texto de 1933 traz um avanço, uma vez que Klein traz as questões das pulsões auto-destrutivas para a etiologia desta instância.  Assim, ao se voltar contra o próprio ego, a pulsão de morte cria uma tensão que é deflagrada pela ansiedade, ocasionando a violência excessiva do superego devido as pulsões agressivas que se voltam contra o ego. Aqui o superego teria um componente pulsional, agressivo, que se voltaria contra o ego indefeso da criança, alimentando as fantasias monstruosas das crianças e suas ansiedades ‘persecutórias’, deslocando esta ansiedade para os objetos externos. Assim, o medo, tão freqüente nas obsessões, será proporcional aos seus impulsos sádicos, mediante o deslocamento para o ambiente externo.

Klein aponta que “a formação do superego se inicia ao mesmo tempo em que a criança faz a primeira introjeção oral de seus objetos” (1933/1996, p. 289).  Neste momento da sua obra, o superego começaria a se desenvolver durante o estágio sádico-oral, em íntima ligação com os impulsos edipianos. Entretanto, à medida que a ansiedade vai diminuindo, o sadismo vai sendo amenizado  e as imagos terroríficas vão dando espaço para as imagos  benignas e prestativas. “O superego, que antes era a força despótica e ameaçadora [...] começa a exercer um domínio mais suave e persuasivo, fazendo exigências que podem ser cumpridas” (KLEIN, 1933/1996, p. 289). O superego começa a se transformar na consciência propriamente dita, perdendo seu caráter tirânico e gerando mais sentimento de culpa e valores de sentimento social.

Entretanto, na tirania desta instancia, a fixação da fase sádico-anal é de extrema relevância para a neurose obsessiva. “Nas fantasias uretrais e anais, ela [a criança] procura destruir o interior do corpo materno, empregando as fezes e a urina para atingir esse propósito” (KLEIN, 1933/1996, p. 291).  Os excrementos seriam como substâncias que queimam e corroem, também poderiam simbolizar armas de fogo e etc. Já o sadismo estaria voltado à destruição do corpo da mãe e de todo o conteúdo que estaria ai dentro, como os bebês e o pênis do pai. 

Ao atacar o corpo da mãe, a criança estaria inserida em um mundo hostil, persecutório, mas quando o superego é amenizado, suavizado, um possível ataque poderia desencadear o movimento de reparação que estaria associado ao movimento do desenvolvimento do sentimento de culpa e dos sentimentos morais.

Com base na análise de crianças muito pequenas, Klein (1933) ressalta:

 [...] a análise das camadas mais profundas do superego sempre leva à melhora considerável das relações de objeto da criança, da sua capacidade de sublimação e do seu poder de adaptação social – ela não só deixa a criança mais feliz e saudável, mas a torna mais capaz de sentimentos sociais e éticos (1933, p. 293).

A análise nunca poderia eliminar o núcleo sádico do superego, núcleo este constituído sob a primazia dos níveis pré-genitais, mas poderia suavizá-lo, fortalecendo o seu ego, penetrando  nas camadas mais profundas do superego, alcançando os níveis de ansiedade mais profunda.

Neste contexto, Klein ainda não tinha abordado especificamente a fase esquizo-paranóide, porém, em seus textos, as menções as ansiedades persecutórias começa a criar uma intensidade muito forte. Este contexto é de extrema relevância para este artigo. Por quê? O leitor deve estar se indagando qual seria a relevância destas menções, uma vez que este artigo trata da constituição do superego, tendo como pano de fundo a neurose obsessiva. Ressalto que  as ansiedades mais primitivas formam a base pela qual a neurose obsessiva se apóia, tornando o sintoma obsessivo uma defesa contra os núcleos paranoides, segundo a concepção kleniana.

Assim, a década de 30 e 40 precisa de uma leitura minuciosa, uma vez que, após 1946, segundo Hinshelwood (1992, p. 291). “[...] embora as defesas obsessivas fossem de grande interesse para Klein em seus trabalhos iniciais, como defesas específicas contra sentimentos persecutórios, após a influencia de Fairbain em 1946, elas saem da literatura kleniana”. Assim, vamos ao contexto da posição depressiva.

4. A Posição Depressiva e suas Características

Antes de escrever Uma Contribuição à Psicogênese dos Estados Maníaco-Depressivos em 1935, onde ressalta a posição depressiva pela primeira vez, Klein (1934) destaca a questão das fantasias persecutórias associadas as ansiedades mais primitivas, focando a ambivalência do amor e do ódio, como diz: “através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de onde surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor” ( KLEIN, 1934/1997, p. 299). Ao analisar a criminalidade, ela aponta que o amor (representante da pulsão de vida) estaria ‘enterrado’ ao lado do ódio (representante da pulsão de morte), sendo a análise a mola propulsora para o seu surgimento.

Essa ambivalência já preparava o terreno para o conceito de posição depressiva, que iria aparecer no ano subseqüente. Assim, os postulados sobre a ansiedade arcaica, a ambivalência, a constituição do superego e as relações objetais parciais são retomados no artigo Uma Contribuição à Psicogênese dos Estados Maníaco-Depressivos, escrito por Klein em 1935.

Neste artigo, clássico de sua obra, pela primeira vez ela traz o termo posição (como já descrito na nota de rodapé da página anterior) [6]. Klein não descarta os princípios das fases descritas por Freud, mas introduz essa concepção, retomando os mecanismos da introjeção e projeção, ressaltando: “desde o início, o ego introjeta objetos ‘bons’ e ‘maus’, sendo que o seio da mãe serve de protótipo para ambos (1935/1996, p. 304). Caso a criança venha possuí-lo, este torna-se um objeto bom; caso venha a perdê-lo, a criança poderá projetar toda a sua agressividade neste objeto, tornando-se um objeto mau, voraz, perigoso, esvaziando o seu mundo interno e ocasionando a destruição promovida pelo seu sadismo. Essa ansiedade, que neste momento ela define como paranóide, pode “ser presa e modificada pelos mecanismos obsessivos, que aparecem muito cedo” (1935/1997, p.304) Assim, as defesas obsessivas recaem no resguardo destes núcleos paranóides.

Com o desenrolar do desenvolvimento do ego, este se torna mais coeso e a ansiedade muda sua intensidade. Ocorre a passagem dos objetos parciais para o objeto total, propiciando o medo da perda como um todo. A identificação com o objeto bom, integral, possibilita  o desenvolvimento do amor e o desejo voraz de devorar o objeto identificado, reforçando a introjeção ( incorporação) do objeto total. A criança poderá preservar o objeto bom em seu interior devido ao medo, a destrutividade, que fora projetada para o exterior e que poderia vir a danificar este objeto.  Caso a criança venha a atacá-lo sadicamente em suas fantasias, este movimento poderá ocasionar a reparação do objeto devido a identificação com o mesmo.

Assim, por intermédio desta identificação com o objeto bom, o ego tem uma noção mais completa da realidade psíquica. Os movimentos reparatórios estão associados ao amor, a pulsão de vida enquanto que os movimentos de ódio estão associados a pulsão de morte, tornando o sadismo e a manifestação da ansiedade arcaica ‘lombadas’ no desenvolvimento mental da criança. Mas como que fica a constituição do superego durante esta posição depressiva?

Para Klein “no que diz respeito à natureza do superego e à história do desenvolvimento individual, minhas conclusões divergem das de Freud” (1940, p. 405). Os mecanismos de projeção e introjeção são fundamentais na constituição desta instância, pois conduzem  ao estabelecimento de objetos amados e odiados dentro de nós mesmos, que se organizam na constituição do ego no decorrer do mundo interior da criança.

Segundo Klein “esse mundo interior é formado por inúmeros objetos absorvidos pelo ego, que correspondem em parte à profusão de aspectos, bons e maus [...]” (1940/1996, p. 405). Na constituição do superego, temos a introjeção das figuras parentais, como também das pessoas reais internalizadas nas diversas situações oferecidas pelas experiências externas.

A constituição do superego é retomada em 1945, quando escreve O Complexo de Édipo à luz das Ansiedades Arcaicas. Neste contexto, segundo a nota do editorial inglês, Klein não associa a frustração oral do desmame como o ponto central da liberação dos impulsos edipianos e “nem que o complexo de Édipo começa principalmente sob o impulso do ódio” (1945/1996, p. 414). Ao contrário dos postulados anteriores, o complexo de Édipo coincide com o começo da posição depressiva, momento este em que ocorre uma diminuição das ansiedades persecutórias  e as tendências amorosas vem a um primeiro plano, norteados pela culpa e pelas reparações.  E como que Klein compreende a constituição do superego neste momento de sua obra?  Ela ainda associa a constituição desta instância a remota infância, associada a presença dos objetos parciais – ao seio, primordialmente.

Para Klein, “em ambos os sexos, o superego passa a existir durante a fase oral. Sob o domínio da vida de fantasia e de emoções conflitantes, a criança introjeta seus objetos - antes de mais nada, os pais -  em cada estágio de sua organização libidinal [...]” (1945/1996, p. 461). O superego é construído a partir destas introjeções que irão alimentar as fantasias primárias das crianças. Estas fantasias, devido a estas incorporações, nem sempre correspondem as pessoas reais no mundo da criança, conduzindo o superego a refletir os vários componentes e características das imagens introjetadas. Assim, todos os fatores que exercem uma influência sobre as relações de objeto da criança estão presentes deste o início da construção do superego.

Segundo Klein “o primeiro objeto introjetado, o seio da mãe, forma a base do superego” (1945, p. 461) Como a relação com o seio da mãe precede a relação como pênis do pai, a relação com a mãe introjetada vem a afetar todo o curso do desenvolvimento do superego.  Muitas das características mais importantes do superego, como as características amorosas ou destrutivas, são frutos dos componentes maternos iniciais do superego.

Em minha compreensão, no deslize do seio para o pênis, podemos encontrar as características sádicas projetadas no seio materno sendo deslocadas para o pênis, interferindo diretamente na problemática identificatória. Para me aprofundar nesta questão da problemática identificatória, especificamente da incorporação do pênis sádico, gostaria de recorrer a compreensão de Hanna Segal sobre os estádios primitivos do complexo de Édipo.

Na compreensão de Hanna Segal:

Tanto o menino quanto para a menina, o primeiro objeto de desejo é o seio da mãe, sendo o pai percebido inicialmente como rival. Contudo, em vista das ansiedades persecutórias e depressivas experimentadas pela criança em relação à mãe e seu seio, o pênis do pai se torna rapidamente, tanto para o menino quanto para a menina, um objeto alternativo de desejo oral, para o qual se pode voltar, afastando-se do seio (1964/1975, p. 124).

Na compreensão desta psicanalista sobre a obra kleniana, para o menino, a aproximação do pênis de seu pai como uma alternativa para o seio da mãe é primariamente um movimento para a homossexualidade passiva, ao mesmo tempo em que a incorporação do pênis paterno, via oralidade, permite a identificação com este, fortalecendo o caminho rumo à heterossexualidade. O desejo oral de incorporação logo dá espaço para a situação genital, em um desejo de cópula e de receber bebês dele.

Entretanto, a relação com o seio materno denota uma outra relação com a agressividade e com o sentimento de culpa. Na compreensão de Klein, os primeiros sentimentos de culpa, tanto nos meninos quanto nas meninas, tem a sua origem nos desejos sádico-orais de devorar a mãe, tendo origem no início da infância. A culpa seria a mola  que propicia o desenvolvimento e afeta o seu resultado.  Isto significa que ansiedade, culpa e sentimentos depressivos são pilares intrínsecos  do desenvolvimento emocional da criança e que estão presentes nas relações de objetos iniciais, que “consistem da relação com pessoais reais e com seus representantes no mundo interior “ (1945/1996, p. 463).

5. Conclusões

Primeiramente, gostaria de retomar a proposta deste artigo que versava sobre a constituição do superego primitivo, a partir das relações objetais parciais, na obra kleniana. A partir desta problemática, podemos trazer algumas características das três décadas estudadas.

Na década de 20, a técnica analítica do brincar possibilitava a análise das camadas mais primárias do superego, rodeadas por situações de ansiedade que poderiam gerar ataques ao corpo materno. Nos casos masculinos, o superego da mãe teria o seu devido valor, mas é o superego paterno que irá exercer a sua devida influencia. 

Nesta conjuntura, a ansiedade seria fruto da tirania de um superego, momento este em que a gênese deste superego primitivo seria um fator de extrema relevância para a compreensão das psicoses. Isto significa que o superego teria um componente pulsional, agressivo, que se voltaria contra o ego indefeso da criança, reforçando as fantasias monstruosas das crianças e suas ansiedades ‘persecutórias’, sendo esta deslocadas para os objetos externos.

Na década de 30, Klein dá um passo a mais, ressaltando a introjeção. Para esta autora, a formação do superego se inicia ao mesmo tempo em que a criança faz a primeira introjeção oral de seus objetos. Se a intensidade da ansiedade ganhou destaque na década de 20, na década de 30 é a sua amenização que chama a atenção de Klein. Ou seja, com a diminuição da ansiedade, as imagos terroríficas vão dando espaço para as imagos benignas e prestativas. O superego começa a se transformar na consciência propriamente dita, perdendo seu caráter tirânico e gerando mais sentimento de culpa e valores de sentimento social. Assim, quando o superego é amenizado, suavizado, um possível ataque poderia desencadear o movimento de reparação que estaria associado ao movimento do desenvolvimento do sentimento de culpa e dos sentimentos morais.

Ainda nesta mesma década, o fato de introjetar imagos mais amistosas, e não tão cindidas, possibilita observar uma mudança no caráter do superego. Isso se deve a superação da ansiedade primitiva, graças ao desenvolvimento da criança em direção ao estágio genital. Assim, as ameaças do superego tornam-se abrandadas por médio de advertências e censuras. Se, de um lado, temos a introjeção, e o papel da projeção na constituição do superego?

A projeção possibilita dissipar a ansiedade arcaica, propiciando a internalização de um objeto bom que vem a fortalecer o superego infantil. Tais mecanismos são retomados no início da década de 40, na constituição do superego, momento este em que temos a introjeção das figuras parentais, como também das pessoas reais internalizadas nas diversas situações oferecidas pelas experiências externas. O primeiro objeto introjetado, o seio da mãe, forma a base do superego. Assim, todo o desenvolvimento do superego vem a ser afetado pela relação com mãe. Como conseqüência, muitas das características mais importantes do superego, como as características amorosas ou destrutivas, são frutos dos componentes maternos iniciais do superego.

Por último, este artigo ressalta que os postulados mencionados acima tecem um olhar impar sobre a formação e a etiologia do superego a partir da visão desta psicanalista, uma vez que a compreensão da formação desta instância foi complementando a visão freudiana, ressaltando o papel das primeiras introjeções (e suas conseqüências) para a formação do psiquismo.

Referencias Bibliográficas

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1. Pós doutorando pelo Núcleo de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba, mestrado e doutorado pela PUC-SP. email: henriquescatolin@hotmail.com

2. Supervisora do estágio pos-doutoral. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Apresenta mestrado e doutorado em Psicologia Clínica por esta mesma instituição.

3. Esta concepção será alterada ao longo da sua obra, associando o início do complexo de Édipo a posição depressiva.

4. Entretanto, na origem do conflito edipiano, o superego teria um caráter tirânico

5. Klein (1929)  destaca que a gênese deste superego primitivo seria um fator de extrema relevância para a compreensão das psicoses.

6. Em 1952, ao final do seu artigo Algumas Conclusões Teóricas Relativas à Vida Emocional do Bebê, Klein afirma: “Escolhi o termo posição em relação às fases paranoide e depressiva porque esse agrupamento de ansiedades e defesas, embora surjam primeiramente durante os estágios iniciais, não se restringem a eles, mas ocorrem e recorrem durante os primeiros anos de infância e, em certas circunstancias, posteriormente na vida” (1952, p. 118).


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 50) Año 2017

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