Vol. 38 (Nº 41) Año 2017. Pág. 13
Geusa da Purificação PEREIRA 1; Marcelo Leles Romarco de OLIVEIRA 2; Bianca Aparecida Lima COSTA 3
Recibido: 04/04/2017 • Aprobado: 30/04/2017
4. A Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras- BA
RESUMO: Este artigo apresenta o processo de mobilização e criação da Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras, Unidade de Conservação de Uso Sustentável localizada na Região Sul do Estado da Bahia/Brasil. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujos dados analisados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante. Concluiu-se que a mobilização comunitária e a atuação das populações tradicionais foram essenciais para a criação da Resex, para a proteção do território e garantia dos meios de vida da população tradicional. |
ABSTRACT: This article presents the process of mobilization and creation of the Maritime Extractivist Reservation in Canavieiras, Conservation Unit of Sustainable Usage located in the Southern Region of the State of Bahia / Brazil. This is a qualitative research, whose data were analyzed through semi-structured interviews and participant observation. It was concluded that community mobilization and the acting of traditional populations were essential for the creation of Resex, for the protection of the territory and guarantee of the livelihoods of the traditional population. |
A criação das Reservas Extrativistas no Brasil envolveu de forma significativa a mobilização social, que consistiu em um movimento de pressão frente ao Estado, com vistas a lograr êxito em relação aos objetivos pleiteados, quais sejam: garantir a preservação territorial e a manutenção dos meios de vida das populações tradicionais [4] residentes em espaços ameaçados, sobretudo na região amazônica. Local onde ocorreram as primeiras mobilizações como um dos principais líderes do movimento, o seringueiro Chico Mendes.
Ao longo dos anos, como resposta às pressões exercidas pelos movimentos sociais, criou-se em 1990 a primeira Reserva Extrativista do País, Resex do Alto Juruá no Estado do Acre. Dois anos após sua criação, essa modalidade de Unidade de Conservação estendeu-se para as áreas marinhas, com o surgimento em 1992 da primeira Reserva Extrativista Marinha Brasileira, a Resex Marinha de Pirajubaé no estado de Santa Catarina.
A criação das Reservas Extrativistas em áreas marinhas constitui-se uma ação importante para preservação das áreas e dos meios de vida das populações tradicionais, haja vista que os espaços marinhos, em virtude de sua localização privilegiada e dos diversos potenciais de exploração turística, tornam-se palco de distintos interesses e disputas com relação a forma de uso do território e dos recursos. Nesse sentido, a criação de uma Reserva Extrativista em tais espaços exige mobilização e envolvimento, sobretudo das populações tradicionais que os ocupam, no sentido de enfrentar e superar as adversidades encontradas.
Nesse contexto, a Resex Marinha de Canavieiras, Unidade de Conservação de Uso Sustentável localizada no Estado da Bahia/Brasil, criada no ano de 2006, em seu processo de constituição perpassou por uma diversidade de eventos, envolvendo distintos interesses pela forma de uso dos espaços em questão. Esse processo revelou então, a importância da organização comunitária e a força das populações tradicionais para a manutenção dos seus meios de vida e conservação do seu território [5]. Diante disso, esse artigo pretende evidenciar como se deu o processo de mobilização comunitária e de que forma as comunidades atuaram enquanto protagonistas principais no processo de criação dessa Resex.
Este artigo caracteriza-se uma pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio de um estudo de caso, cujo principal objetivo fora apresentar e analisar a trajetória de mobilização e criação da Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras, situada nos municípios de Canavieiras, Una e Belmonte no Estado da Bahia/Brasil.
Os dados analisados foram coletados a partir de pesquisa de campo, na qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observação participante, no período compreendido entre os meses de setembro e outubro de 2015. As entrevistas foram feitas com pessoas residentes em cinco das sete comunidades que compõe a Resex.
No total foram realizadas 30 (trinta) entrevistas, com beneficiários, ou seja, aqueles extrativistas que, com a criação da Resex, passaram a ter a garantia do direito de uso e exploração do território e dos recursos que o compõe. Esses entrevistados puderam relatar a trajetória de criação dessa unidade de conservação, fazendo um balanço de como era antes da existência da Resex, como se deu o processo constitutivo e como estava a situação nos dias atuais (período de realização as entrevistas). As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas por meio de análise de conteúdo que foram utilizados na elaboração desse artigo.
Além dos dados primários obtidos a partir das entrevistas, utilizou-se também fontes secundárias, pesquisa bibliográficas sobre temas referentes ao assunto, bem como consultas a materiais e pesquisas já realizadas na Resex e de dados de Instituições Públicas como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIo).
O meio ambiente constitui um espaço essencial à vida, no entanto, no decorrer do tempo tem sofrido diversas formas de agressões aos seus recursos, comprometendo, desse modo, sua sustentabilidade e biodiversidade. Em tese, a conservação ambiental configura-se um fator que integra há algum tempo a preocupação social, estando presente na Carta Magna Brasileira (1988), a qual expressa a necessidade tanto constitucional quanto social de cuidar do meio ambiente, visando à sobrevivência e à utilização desse espaço e dos seus recursos ao longo dos anos.
O Artigo 225 da Constituição Federal brasileira assegura que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo esse um bem de uso comum, essencial à sadia qualidade de vida das pessoas, cabendo tanto ao poder público quanto à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988). Tal preocupação, no entanto, passou a ser mais discutida nas últimas décadas em virtude das consequências sentidas por conta das mudanças climáticas e da atuação dos movimentos sociais, os quais contribuíram para o direcionamento de um olhar mais atento sobre assuntos referentes à conservação ambiental, por meio das pressões, mobilizações e demandas por eles realizadas, as quais foram importantes para que o Estado se posicionasse no sentido de conservar determinados espaços territoriais.
A criação das Unidades de Conservação (UC) caracteriza-se como uma forma pela qual o Estado tenta proteger determinadas áreas ambientais, aliando a preocupação ambiental com a utilização sustentável dos recursos naturais presentes. Todavia, por abranger áreas específicas, não garantem uma ampla proteção desses recursos.
As UCs são regulamentadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), criado pela Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, cuja principal finalidade é estabelecer as normas e os critérios de uso e preservação das Unidades de Conservação no Brasil. De acordo com o SNUC, as Unidades de Conservação abrangem um espaço territorial e seus recursos naturais, incluindo as águas jurisdicionais com características naturais relevantes, as quais são legalmente instituídas pelo poder público. Seu objetivo é a conservação dos limites definidos sob regime especial de administração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (BRASIL, 2000).
Conforme Artigo 7º do Capítulo 3 da Lei nº 9.985, as Unidades de Conservação dividem-se em dois grupos que possuem características e objetivos específicos: Unidades de Proteção Integral e Unidade de Uso Sustentável. As Unidades de Proteção Integral têm por objetivo preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais. Nessa categoria é muito comum encontrar as reservas da biosfera e os parques que servem como espaço de visitação e de apelo cênico da natureza.
Já as Unidades de Uso Sustentável procuram compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. Neste escopo, é possível citar as Florestas Nacionais (FLONAS), as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e as Reserva Extrativista (RESEX) que são definidas como:
Uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000).
A concepção de Reservas Extrativistas no Brasil tem início no final da década de 1980, em decorrência de violentos conflitos sobre legitimidade e regularização fundiária na Amazônia Brasileira das terras historicamente habitadas por populações tradicionais, por meio dos movimentos dos seringueiros que denunciaram muitas práticas predatórias do ambiente natural e de injustiça social (CHAMY, 2004).
Primeiramente, as Reservas Extrativistas compreendiam apenas áreas florestais; posteriormente, o modelo foi estendido para as áreas marinho costeiro, denominando-as de Reservas Marinhas, beneficiando assim comunidades pesqueiras (JÚNIOR et al, 2014).
Tanto as Resex Florestais quanto as Resex Marinhos Costeiros são utilizadas por populações extrativistas tradicionais que exploram os recursos extrativistas. Ambas têm como objetivos básicos proteger os meios de vida e cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000).
No entanto, essas subcategorias diferem uma da outra, sobretudo, no aspecto de espacialidade geográfica, pois as Resex Marinhos Costeiros compreendem o bioma marinho costeiro, uma transição entre os ecossistemas continentais e marinhos, e as Resex Florestais compreendem áreas terrestres, constituídos por seis diferentes biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampas (ICMBIO, 2015).
Outra característica que difere as duas subcategorias de Resex diz respeito a questões legais, uma vez que, segundo Santos e Schiavetty (2013), a Resex Marinho Costeiro lida com a gestão de um recurso que pertence à coletividade (o mar/rio), se apropriando desse modo de um recurso comum ao povo sob a tutela do Estado. Para os autores, o modelo de Reserva Extrativista que é transferido para o ambiente marinho encontra conflitos de ordem legal por conta da atual legislação brasileira: “o conflito se dá devido ao impedimento de acesso aos recursos nas áreas delimitadas como reserva pelos cidadãos não designados como população tradicional” (SANTOS e SCHIAVETTY, 2013, p. 479). Essa restrição de acesso pode gerar conflitos entre os beneficiários e aqueles que com a delimitação das Resex Marinhos Costeiros não se enquadram como tal.
No entanto, ao conceder o direito de uso às populações tradicionais, o Estado contribui para que as populações beneficiárias tenham a garantia de acesso e utilização sustentável dos recursos naturais dessas áreas. No caso da Resex Marinho Costeiro, a criação desse espaço contribui para beneficiar uma categoria que historicamente ficou à margem das políticas sociais: os pescadores artesanais, os ribeirinhos e as populações tradicionais residentes em áreas marinho costeiro (CHAMY, 2004).
Em muitos casos, estabelecer os limites costeiros e marinhos como uma Unidade de Conservação caracteriza-se como um grande desafio, uma vez que a forma de uso dessas áreas envolve uma diversidade de interesses, a exemplo dos interesses das populações tradicionais beneficiadas com a demarcação do território e os interesses daqueles que ficam alijados do direito de usufruir da forma como desejam determinadas áreas. Isso porque estas áreas passam a ser geridas por legislação específica que estabelece limites, punições e as formas como devem ser usados o território e os recursos nele presentes.
O Estado da Bahia possui quatro Resex Marinhas, dentre as quais a Resex Marinha de Canavieiras, localizada na região da Costa do Cacau, no Litoral Sul do Estado, compreendendo os municípios de Belmonte, Canavieiras e Una, sendo que a maior concentração, tanto populacional, quanto de extensão da área, concentra-se no município de Canavieiras.
Criada pelo Decreto sem número de 05 de junho de 2006, com área total de aproximadamente 100.645,85 ha (cem mil, seiscentos e quarenta e cinco hectares e oitenta e cinco centiares), a Resex Marinha de Canavieiras tem por objetivo, conforme parágrafo 2º do seu Decreto de criação, proteger os meios de vida e a cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2006).
Figura 1. Municípios que vão compor o Território da Resex Marinha de Canavieiras.
Fonte: ICMBIO/UFV, 2015.
De acordo com dados do levantamento realizado pelo ICMBIO/UFV (2015), a população estimada da Resex Marinha de Canavieiras em 2014 era de 1.995 famílias (equivalente a aproximadamente 12.035 pessoas), distribuídas entre as sete comunidades dos três municípios que compõem a Resex, cuja maior concentração encontra-se no município de Canavieiras (81,2%), o qual congrega a maior extensão da área e que também é palco dos diversos acontecimentos que perpassaram a criação da Resex. A distribuição desses beneficiários encontra-se tanto dentro da poligonal da Resex quanto em bairros dos próprios municípios.
O interesse inicial pela criação dessa Resex, segundo dados do estudo realizado por Aguiar (2011), esteve associado aos problemas da crise na cultura do cacau (matéria prima do chocolate) que afetou a região Sul do Estado da Bahia no final da década de 1980. Esses problemas relacionavam-se com alguns fatores tais como: a queda do preço do cacau no mercado internacional, as condições climáticas desfavoráveis à produção dessa cultura e uma praga que acometeu o cacau conhecida como vassoura de Bruxa (Crinipellis Perniciosa). Um dos fatores que contribuíram para essa conclusão está ligado ao fato de que o município de Canavieiras apresenta um forte nível de ocupação informal, o que teria dado margem à concepção de que muitos trabalhadores informais encontrariam nos recursos naturais a sua fonte de renda e sobrevivência (AGUIAR, 2011).
Desse modo, à medida que a crise do cacau se intensificou, aumentou também a quantidade de usuários dos recursos pesqueiros da região, uma vez que muitas pessoas que trabalhavam com o cacau encontraram na pesca sua nova fonte de renda e sobrevivência, aumentando assim o contingente de usuários desses recursos (pescadores tradicionais locais e ex-trabalhadores das lavouras de cacau). Essa crise causou alterações na dinâmica socioeconômica da região, intensificando o uso do recurso pesqueiro, uma vez que o cacau era o principal cultivo da Região Sul da Bahia.
Como consequência do declínio da produção cacaueira, os efeitos negativos foram sentidos pelas populações e pela economia local. Desse modo, como forma de tentar recuperar a economia e reerguer a produção do cacau, o Governo do Estado passou a intervir na região por meio dos incentivos à produção do cacau e ao desenvolvimento de diferentes tipos de atividades. Nesse contexto, o município de Canavieiras (espaço onde se deram as mobilizações pela criação da Resex), também foi afetado pelas consequências da crise na produção cacaueira, e como forma de tentar recuperar a economia, a partir do ano 2000 o município passou a receber a intervenção do Estado, que em parceria com o Poder Público Municipal, viabilizou investimentos de empresários na carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) e no setor hoteleiro para a construção de resorts (AGUIAR, 2011).
Cidade de grandes belezas naturais, Canavieiras possui uma paisagem agreste, com muitas ilhas, praias e rios, o que confere ao município grande potencial para a exploração turística. Considerando as belezas naturais e o potencial turístico e produtivo da região, a carcinicultura, e principalmente a construção de resorts representariam um bom negócio para os empresários.
No entanto, esses novos empreendimentos trariam consigo também diversas consequências socioambientais, uma vez que gerariam externalidades negativas que atingiriam, sobretudo, as populações que desenvolviam a pesca artesanal, atividade econômica de grande importância para as populações tradicionais distribuídas pela faixa litorânea do território municipal e também ao meio ambiente onde tais empreendimentos seriam implantados.
Tancredo et al (2011) apontam uma diversidade de problemas nas áreas biológicas, sociais e físicas, que podem ser gerados pelo desenvolvimento da atividade de carcinicultura, devido ao lançamento de seus efluentes em águas de uso público. Para os autores:
O surgimento e a rápida disseminação de doenças, ração de baixa qualidade com elevadas concentrações de fósforo, afluentes com alta concentração de matéria orgânica em suspensão e nutriente, entre outros fatores estão diretamente relacionados com a questão da degradação biológica realizadas pelas fazendas mal administradas. O cultivo de camarão é uma atividade que pode ser uma alternativa para o desenvolvimento social, entretanto, podem gerar impactos sociais, pois será um dos principais causadores da expulsão de marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo de suas áreas de trabalho, exclusão das comunidades tradicionais que dependem do manguezal. A degradação do ecossistema e da paisagem está relacionada com o impacto físico (TANCREDO et al, 2011, p. 3).
Sendo assim, a implantação da carcinicultura em Canavieiras colocaria em risco a atividade dos pescadores artesanais que, historicamente, utilizavam os recursos pesqueiros da área como forma de garantia do seu sustento e de suas famílias, além de causar pesados danos ao meio ambiente. Sobre os riscos do cultivo do camarão de forma comercial em piscinas de carcinicultura, Alier (2011) diz que:
A produção comercial do camarão pressupõe a perda do sustento das pessoas que vivem diretamente dos produtos do mangue. Para além do sustento humano direto, também se perde possivelmente de um modo irreversível, outras funções dos manguezais, tais como, a defesa costeira diante das tormentas e da elevação do nível do mar [...]. A contaminação provocada pelas piscinas da carcinicultura destrói a pesca local (ALIER, 2011, p. 120).
Já em relação à construção de empreendimentos turísticos (no caso de Canavieiras, os resorts), os principais problemas estariam associados ao fato de que as construções dessa natureza provocam diversos efeitos negativos sobre o meio ambiente, tais como: “devastação das florestas, a erosão das encostas, a destruição da cobertura vegetal do solo, a ameaça de extinção de várias espécies da fauna e da flora, a poluição sonora, a visual e atmosférica, além da contaminação das águas de lagos, rios e oceanos” (GUEDES et al, 2007, p. 1).
Além da carcinicultura e da criação dos resorts, segundo relatos de campo, a região de Canavieiras também sofria com o problema de grilagem de terras da União, fato que colocava em risco o território e as populações tradicionais. De acordo com um entrevistado “os grileiros de terra estavam tomando nosso território” (ENTREVISTADO E, 2015).
No contexto de luta pela proteção dos recursos naturais e do território, teve início em meados da década de 1990 um processo de mobilização por uma organização territorial que favorecesse as comunidades que utilizavam e dependiam tradicionalmente das áreas e dos recursos costeiros e marinhos da região de Canavieiras, o qual se intensificou após o início do incentivo a atividade de carcinicultura na região, principalmente por volta do ano de 2002.
A partir de então, emergiu uma série de acontecimentos com vistas à criação de uma UC nessa área, objetivando garantir o uso e a preservação dos ecossistemas ameaçados pelos interesses do setor imobiliário, da carcinicultura e dos grileiros. Nesse processo, as comunidades (aliadas ao setor público local, o qual esteve envolvido inicialmente), Organizações Não Governamentais (ONGs) dentre outras organizações se mobilizaram em busca da melhor forma para preservar e garantir o seu espaço em meio às constantes e crescentes ameaças desses diversos setores. Dando início ao processo de mobilização pela criação da Resex Marinha de Canavieiras.
4.1. Organização comunitária em meio aos conflitos de interesses: A força das populações tradicionais
Os conflitos ocasionados pelas diferentes formas de relação entre homens e os bens ambientais apresentam singularidades que permitem distinguir recursos legitimadores de ações e processos de mudança social (SANTOS, 2009). De acordo com Simmel (1983), o conflito é uma forma de sociação que pode produzir ou modificar grupos de interesse. Para o autor, o conflito está destinado à resolução de dualismos divergentes, sendo esse um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes.
Ainda segundo Simmel (1983, p. 124), “a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis”. Para o autor, sociedades definidas verdadeiramente não resultam apenas das forças sociais positivas, assim como o conflito por si mesmo não produz uma estrutura social, mas somente em cooperação com forças unificadoras.
Em um cenário de conflitos é que surgiu a Resex Marinha de Canavieiras, um processo lento que envolveu uma diversidade de acontecimentos, passando por várias etapas, evidenciando a persistência de alguns atores e o protagonismo das comunidades até chegar a publicação do Decreto de criação em 5 de junho de 2006. Conforme informações obtidas em campo, a criação da Resex configurou um processo de mudança social, contribuindo inclusive para aumentar o nível de organização das comunidades que pleiteavam a existência dessa Reserva, as quais objetivavam a garantia do seu território, protegendo-o dos grileiros, das especulações imobiliárias, do avanço da carcinicultura na região e, consequentemente, da degradação ambiental.
Para Fadigas e Garcia (2010), a fase da criação da Resex se caracteriza pelo conceito da legitimidade, uma vez que a Resex é demandada pela população extrativista ao poder público em decorrência de uma ameaça ao equilíbrio socioambiental, com a finalidade de garantir a sociobiodiversidade e a reprodução do modo de vida destes grupos. Portanto, a organização comunitária da comunidade é um requisito fundamental na sustentação de suas reivindicações nos espaços decisórios. Nesse processo de mobilização e organização, as comunidades e pessoas afetadas por determinados acontecimentos unem-se manifestando sua força e evidenciando seu interesse por meio dos movimentos sociais organizados.
De acordo com Gohn (2011), os movimentos sociais representam ações sociais coletivas que possuem caráter sociopolítico e cultural e que viabilizam formas distintas de organização da população para expressar suas demandas. Essas ações adotam diferentes estratégias, as quais variam desde simples denúncias até a pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.) e também pressões indiretas. Para a autora, os movimentos sociais representam “[...] forças sociais organizadas, aglutinam as pessoas não como força-tarefa de ordem numérica, mas como campo de atividades e experimentação social e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais” (GOHN, 2011, p. 336).
Conforme apontado anteriormente, as primeiras mobilizações pela criação da Resex Marinha de Canavieiras iniciaram-se em meados da década de 1990, através de uma associação informal de mulheres da comunidade de Birindiba em Canavieiras, intitulada Associação das Catadeiras de Caranguejo, a qual envolviam homens e mulheres que desenvolviam a captura do caranguejo e sentiram sua atividade ameaçada em virtude da escassez desse recurso na região.
Tal acontecimento, faz com que no período compreendido entre o final de 1999 e início de 2000, com apoio da Secretaria de Agricultura do município, a associação decidisse pela criação de uma Reserva Extrativista como forma de tentar solucionar o problema da escassez do caranguejo que vinha afetando a região e garantir a continuidade de suas atividades.
Após essa conclusão, teve início o processo de organização pela criação da Resex, o qual iniciou-se com o envio de uma carta ao então Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT), solicitando a visita do órgão à região. Em seguida, foi realizada a visita do CNPT ao município, o qual constatou que o ecossistema possuía as condições necessárias para que fosse criada uma Reserva Extrativista. Contudo, nessa época, os extrativistas ainda não tinham a clareza do que seria e como funcionaria de fato uma Resex.
À medida que se intensificavam as discussões em torno da criação da Resex, algumas comunidades que a integram foram sendo incorporadas ao processo, bem como algumas organizações públicas. Nessa época, estavam envolvidos alguns órgãos municipais (Prefeitura Municipal, Secretaria de Agricultura, Secretaria de Bem-Estar Social e Câmara de Vereadores). Além disso, estavam envolvidos também dois professores locais que apoiaram essa luta. Foram esses professores quem primeiro explicaram como funcionaria uma Reserva Extrativista, conhecimento adquirido a partir de uma visita à Resex da Baia do Iguape nos municípios de Maragojipe e Cachoeira também localizada no Estado da Bahia.
Com isso, após discussão entre as pessoas envolvidas no processo, foi confirmado que a configuração adotada para o território deveria ser mesmo a de uma Resex, tendo sido criado logo em seguida um grupo chamado “Grupo Pró Resex”. Nessa associação, participavam algumas comunidades do município de Canavieiras (Puxim do Sul, Oiticica, Campinhos e Sede do Município sob a representação da Colônia de Pescadores Z 20).
Em meio a este cenário, surgiu uma das principais organizações a se envolver nesse processo, o PANGEA – Centro de Estudos Socioambientais, uma Organização da Sociedade Civil para o Interesse Público (OSCIP) sediada no município de Salvador capital da Bahia. Essa OSCIP havia vencido um edital do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) para realizar o levantamento dos ecossistemas manguezais da região devido ao período de defasagem do caranguejo. A partir da realização desse trabalho com os manguezais da região, o PANGEA começou a se envolver também no processo de criação da Resex, conforme observado no relato a seguir:
Aí o PANGEA veio fazer esses estudos aqui, quando chegou encontrou esse pedido da criação da Resex, já com esse grupo Pró Resex, mas muito ainda naquela discussão de briga de cão e gato, né? Prefeitura e o povo. Aí o PANGEA veio para fazer esse levantamento com os manguezais, [...] então começou as discussões com as comunidades, e aí foi proliferando essa questão da Resex que estava sendo discutida aqui. Aí logo em seguida o IBAMA sabendo que o PANGEA estava aqui, convida o PANGEA para fazer o trabalho aqui. Aí nesse sentido começa uma nova era (ENTREVISTADO I, 2015).
Em 2002 o PANGEA iniciou um conjunto de ações na região, realizando um levantamento de espécies do manguezal e iniciando efetivamente as lutas pela criação da Resex. Foram realizadas diversas reuniões, iniciou-se o processo de criação do acordo de pesca e teve início um processo de reconfiguração social por meio, principalmente, da aproximação das comunidades que aos poucos foram sendo incorporadas à luta social. Nesse período, as sete comunidades que integram a Resex (Campinhos, Oiticica, Barra Velha, Puxim do Sul, Puxim da Praia, Atalaia e a Sede Municipal) começaram a participar das reuniões conjuntas, já que, até então não havia uma interação entre as mesmas.
A incorporação das comunidades extrativistas no processo de mobilização comunitária configurou-se uma importante etapa para o alcance dos objetivos pretendidos, ampliando e fortalecendo o movimento social em prol da criação da Resex. Essa incorporação aconteceu em 2002, quando as lideranças comunitárias se uniram e tomaram a frente na condução das discussões. Segundo informações de campo, no momento em que essas comunidades se juntaram teve início a luta política pela criação da Resex: “O que nos entendemos por início é o início da luta política que foi justamente quando as sete associações se juntaram no processo de criação da Reserva!” (ENTREVISTADO W, 2015).
Com a união das sete associações distribuídas nas comunidades de Campinhos, Puxim da Praia, Puxim do Sul, Oiticica, Atalaia, Barra Velha e Sede Municipal, sob representação da Colônia Z 20, criou-se um grupo denominado G7, que tomou a frente das ações. Com a criação desse grupo, os conflitos de interesses entre os que eram a favor e os que eram contrários à criação da Reserva começaram a se acentuar.
Esse contexto conflituoso serviu para incentivar a articulação social dos pescadores e pescadoras artesanais, permitindo maior engajamento e união das diferentes organizações presentes (associações e colônia) que se articularam para a defesa de seu território de uso tradicional da invasão de outros segmentos que os impediriam de exercer suas atividades (CURADO, 2014).
Diante disso, a luta iniciada pelos extrativistas ainda enfrentaria uma diversidade de barreiras, especialmente para as pessoas que lideravam o movimento, uma vez que estas passaram a sofrer ameaças e intimidações dentre outros acontecimentos. Contudo, a união e a tranquilidade dos extrativistas foram apontadas nas entrevistas como fator importante no processo de organização e de luta: “Deus ajudou que nós nunca entramos em confronto. A gente sempre tinha sabedoria. Quando tinha uma pessoa, alguns que no meio era mais [...]. Outros maneiravam: Ô deixa isso para lá! Não vamos agir dessa maneira, vamos na sabedoria!” (ENTREVISTADO E, 2015).
No processo de criação de todas as categorias de unidades de conservação, de acordo com o SNUC é obrigatória a realização de consulta prévia (BRASIL, 2000). Assim, em 2003 aconteceu a primeira Consulta Pública para a criação da Resex. No entanto, a participação nessa consulta não foi tão expressiva (levando em consideração a quantidade de extrativistas que existem nesse território). Além disso, grande parte do público presente era constituído de pessoas que não realizavam atividade extrativista e que, portanto, não era o público adequado para participar da consulta.
Assim, em 2005 constatou-se a necessidade de realização de uma nova Consulta Pública, a qual foi realizada em 4 de dezembro de 2005 na Comunidade de Barra Velha em Canavieiras, e contou com a participação de aproximadamente 600 pessoas – entre eles pescadores, líderes das comunidades, sociedade civil organizada, poder público municipal, empresários e outros.
Como as discussões em torno da criação da Resex estavam ganhando força, houve o início também de ações contrárias à sua criação, havendo, nessa época, tentativa de boicote para que a Consulta Pública não acontecesse, como pode ser percebido no relato a seguir:
Aí surrupiaram horário na rádio, a divulgação foi podada, né? Tentaram boicotar os carros que foi levar as pessoas, que foi pedido a secretaria de educação na época, a secretaria disse que podia. A gente já usou da espertice que podia ser boicote, aí já contrata a Rota (empresa de transporte) para trazer ônibus de Itabuna. Se os ônibus de Itabuna não chegassem a consulta não seria feita, porque boicotaram os ônibus (ENTREVISTADO I, 2015).
Segundo dados de campo, o Prefeito Municipal de Canavieiras que estava no poder nesse período (2005 a 2012) não queria a criação da Resex. Por isso, ao perceber a quantidade de pessoas presentes na consulta, tentou fazer com que os mesmos não assinassem a lista de presença; ainda assim foram obtidas 483 assinaturas e a consulta foi validada.
Após a última consulta pública, iniciaram-se as inquietações e os rumores de empresários que haviam comprado áreas na região, tendo início um movimento contrário à criação da Resex intitulado “Natureza sim, Resex não” constituído pelos empresários, carcinicultores, Prefeitura, setor hoteleiro, setor do comércio, entre outros. Com a criação desse movimento teve início no município de Canavieiras uma campanha cujo principal intuito era propagar a ideia de que a Resex seria um acontecimento que viria atrasar o desenvolvimento da cidade, além de colocar o pescador e as pessoas que faziam parte das comunidades na posição de subordinados do Estado.
Os dados de campo apontaram que esse movimento e as informações propagadas tinham o intuito de cooptar os pescadores para que se posicionassem contrariamente à criação da Resex, enfraquecendo as mobilizações dos que eram a favor. Para tanto, o movimento contrário utilizava-se de argumentos tais como: as pessoas não seriam mais proprietárias das terras; não poderiam mais pescar; não poderiam andar com motor de rabeta nos rios; metade do que produzissem deveria ser entregue ao governo, entre outros argumentos denominados como “boatos”.
Esse movimento também apontava as características positivas da construção dos hotéis que os grandes empresários trariam para a cidade, uma vez que esses empreendimentos gerariam diversos empregos e que a comunidade ganharia muito mais com isso do que com a criação de uma Reserva Extrativista, conforme pode ser observado no depoimento a seguir:
Eles tinham um discurso de que iam fazer inúmeros empreendimentos de hotelaria aqui e que ia mudar a cidade do dia para a noite. Aí as pessoas absorveram isso! Um discurso evasivo e deficitário, porque desde o início dos anos 80 que se fala em hotel aqui, nunca foi feito, o próprio Transamérica [hotel de grande porte localizado nas imediações da Resex na ilha de Comandatuba] era para ser no território de Canavieiras, não foi! Foi para a Una. A Barra do Albino um cara comprou uma área ali na década de 80 dizendo que ia fazer um hotel, cassino, um píer pra transatlântico, tudo conversa fiada. Comprou, fechou a área, ninguém passava. Nada! Ai agora na hora que chega para fazer a Reserva eles vêm dizer que vai fazer hotéis!! E aí, projetos faraônicos, megalomaníacos de fala, ninguém nunca viu isso em papel em canto nenhum, né! (ENTREVISTADO I, 2015. GRIFOS NOSSOS).
Nesse contexto de disputas por território, de promessas de desenvolvimento para a região e pela não criação da Resex, o movimento contrário ganhou também um número expressivo de adeptos no município de Canavieiras.
Dando continuidade às ações para a criação da Resex, em 2006, o grupo constituído pelas sete comunidades (G7) participou de uma reunião no município de Ilhéus- BA, na qual estava presente a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Nessa oportunidade, o grupo conversou com a ministra, falou sobre a criação da Resex e a mesma garantiu que seria criada. Assim, em 6 de junho de 2006, foi decretada a criação da Resex Marinha de Canavieiras, caracterizando-se assim como uma grande conquista para as populações locais, sobretudo aquelas envolvidas na luta e por outro lado, aumentando a insatisfação daqueles que não desejavam tal ação.
O processo de luta foi extenso, perpassando por muitos acontecimentos antes da criação da Resex. Diversas pessoas, sobretudo os líderes do movimento favorável à criação, sofriam intimidações e pressões para que desistissem. Houve relatos inclusive de que deveria morrer algum integrante do movimento para que o mesmo enfraquecesse. Não houve nenhuma morte de forma direta por conta dessas lutas, embora, segundo dados de campo, a morte da esposa de um dos líderes do movimento por um infarto fulminante seja atribuída a esse processo:
Minha companheira não suportou! Porque a gente já convivia há 32 anos, né? 4 filhos criados, ela nunca viu eu andar assombrado com medo de gente que ia me detonar, porque a minha maneira de ser não é essa! Tudo isso foi afetando ela, vendo eu ser condenado à morte, o cara me jurar, e ela já tinha também um problemazinho de saúde. [...] Ela já com aquele sofrimento, problema de saúde, remédio controlado e eu acompanhando ela direto, com essa pressão toda contra mim! (ENTREVISTADO V, 2015).
Todas essas lideranças que você está vendo aí. Todas foram ameaçadas. A gente não saía de noite. Quando entrava pela porta da sala saía pela da cozinha! Quando se saía na rua aqui de Canavieiras, eram todos juntos, mas quando chegava em um lugar para tomar um refrigerante ou um suco era com as costas virada para a parede (ENTREVISTADO C, 2015)
As falas dos entrevistados observadas destacam a pressão sofrida pelos líderes do movimento na época de constituição da Resex, o que, no entanto, não os desmotivou da luta, contribuindo inclusive para aumentar a união entre essas lideranças e a mobilização em prol da criação da Resex, protegendo com isso o território ameaçado.
Com isso, a Reserva surgiu no sentido de contribuir para a restauração do meio ambiente já degradado, preservar o meio ambiente ameaçado de degradação e inibir a inserção ou permanência de atividades econômicas não típicas do extrativismo em sua área de abrangência (AGUIAR, 2011).
A criação dessa Resex evidenciou também a importância e a força da mobilização comunitária, que, embora em meio a uma diversidade de acontecimentos contrários a sua criação, foram capazes de se unir, enfrentar e superar os fatores e as ações que visavam impedir a criação dessa Unidade de Conservação, garantindo com isso a proteção do território, a sua utilização pelas populações tradicionais residentes e a manutenção dos meios de vida dessa populações, as quais dependem do meio ambiente e do uso dos recursos nele presentes para adquirirem os meios necessários ao seu sustento e à geração de renda de suas famílias.
No entanto, é importante frisar que o fato de ter sido criado as Resex, não fez com que os problemas, as dificuldades e os enfrentamentos cessassem nesse território, uma vez que apenas a criação não garante a sua consolidação, já que para a manutenção da Resex, uma série de outros fatores também se fazem necessário, dentre os quais destacam-se a atuação do Estado, no sentido de dar condições para o melhor desenvolvimento do território, da organização das comunidades para enfrentar os problemas que surgem ao longo do tempo e do engajamento coletivo, pois a Resex é um território de uso comum.
Desse modo, um fator que precisa ser evidenciado é o fato de que a criação da Resex colocou em xeque uma diversidade de interesses de atores e instituições, os quais alegaram que a criação da Resex impediria o desenvolvimento do município de Canavieiras. Tal fato, desde as mobilizações pela sua criação até os dias atuais tem sido também um desafio, já que muitos dos que não queriam a criação da Resex, continuaram ao longo do tempo em busca de um mecanismo que pudesse invalidar o Decreto de criação. Um desses mecanismos, seria a transformação da Resex em uma Área de Proteção Ambiental (APA), ou seja, uma unidade de proteção com regras mais frágeis e flexíveis, que atenderiam aos interesses de fazendeiros, empresários dos mais variados setores, bem como, da política local.
Nesse sentido, em 07 dezembro de 2016 a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados Federal, aprovou o Projeto de Lei 3068/15 do deputado Sérgio Brito (PSD-BA), que cria a Área de Proteção Ambiental (APA) nas regiões de Canavieiras, Belmonte e Una, local onde fora criada a Resex em 2006. Segundo o relator do referido Projeto de Lei, a transformação da área em Resex imobilizou totalmente a economia da região, inviabilizando o turismo e a agricultura, voltada principalmente para a cacauicultura e a carcinicultura. Assim, segundo ele, a criação da APA possibilitaria a recuperação da economia na região (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016).
Atualmente, a proposição tramita nas comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e Constituição e Justiça e de Cidadania (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016). Tal fator, caracteriza-se mais um grande desafio a ser enfrentado pelos beneficiários da Resex, os quais precisarão lutar contra um retrocesso e a perda de direitos adquiridos ao longo dos anos por meio de muitas lutas.
O processo de mobilização social para a criação da Resex Marinha de Canavieiras se assemelha ao contexto de surgimento das Reservas Extrativistas no Brasil, no qual houve uma diversidade de lutas sociais envolvendo distintos povos e comunidades tradicionais, os quais, por conta da constante exploração madeireira e de outros recursos naturais, viam seu espaço e meios de vida e sobrevivência ameaçados.
Desse modo, a ameaça ao meio ambiente e ao território ocupado por tais populações constituiu a força motora que motivou a união em prol da luta pela demarcação do seu espaço, almejando com isso beneficiar a toda categoria de envolvidos (OLIVEIRA FILHO, 2012; CHAMY, 2004). Assim, as conquistas adquiridas a partir de tais lutas possuem uma importância histórica que ultrapassou as fronteiras do seu contexto de surgimento, contemplando ainda hoje diversos povos e comunidades tradicionais.
De forma similar, a Resex Marinha de Canavieiras e seu processo inicial de mobilização é motivado, sobretudo, a partir das ameaças aos recursos naturais, ao espaço e às atividades desenvolvidas pela população. Tais fatores constituíram a força impulsionadora para as mobilizações pela criação da Resex, visando à garantia territorial e manutenção dos meios de vida da população tradicional, as quais viram suas atividades ameaçadas em virtude da carcinicultura, especulação imobiliária e da grilagem na região.
Assim sendo, o processo de criação da Resex Marinha de Canavieiras esteve imerso em uma diversidade de conflitos, sendo que, para lograr êxito, foi necessário a união, envolvimento e participação dos extrativistas enquanto sujeitos sociais protagonistas dessas ações.
O estudo evidenciou a importância do conflito enquanto mecanismo que impulsionou os extrativistas favoráveis à criação da Resex a se organizarem em prol dos objetivos por eles pleiteados. Nesse caso, o conflito pode ser associado à perspectiva de Simmel (1983), que o caracteriza como sendo socialmente importante e capaz de produzir ou modificar grupos de interesses. Isso porque o conflito que emerge em meio ao processo de criação da Resex Marinha de Canavieiras, embora crie um cenário de distintas disputas e de interesses antagônicos e gere em determinados momentos ameaças, sensação de medo e desconfortos para os extrativistas, contribuiu também para que os mesmos se envolvessem e se unissem, com o intuito de superar as adversidades encontradas.
Nesse sentido, percebeu-se que organização comunitária caracteriza-se um fenômeno importante e necessário no contexto das lutas sociais, haja vista que por meio dela os sujeitos sociais, inclusive os menos desprovidos de capital financeiro, fortalecem-se mutuamente, aumentando suas capacidades e possibilidades de lutas, conquistas e ganhos coletivos. Assim, as ações para a criação da Resex Marinha de Canavieiras evidenciaram uma diversidade relações estabelecidas tanto entre os extrativistas quanto entre atores e instituições externos, mas sobretudo a ação e atuação das próprias comunidades afetadas pelas consequências do uso desordenado dos recursos territoriais, do desenvolvimento de atividades de grande impacto poluidor, da especulação imobiliária e ocupação das terras por grileiros e pessoas que ao adquirirem as áreas na região passavam a impedir o uso dos recursos presentes nessas áreas pela população tradicional residente.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de pesquisa. E, a todas as famílias da Resex Canavieiras, que gentilmente participaram da pesquisa
AGUIAR, Paulo César Bahia de. Transformações socioambientais do município de Canavieiras (Bahia): uma análise à influência da Resex. 2011. 130 f. Dissertação (Mestrado). Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2011.
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1. Doutoranda em Extensão Rural, Programa de Pós- Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa (UFV)- Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES). E-mail: geusapereira@hotmail.com.
2. Dr. em Ciências Sociais, professor Adjunto IV do Departamento de Economia Rural- Universidade Federal de Viçosa (UFV). E-mail: mlromarco@yahoo.com.br.
3. Drª em Ciências Sociais, professora adjunta do Departamento de Economia Rural. Universidade Federal de Viçosa- (UFV). E-mail: biancaitcpufv@gmail.com.
4. População tradicional caracteriza-se como grupos cultur lmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (DECRETO 6.040 DE 07 DE FEVEREIRO DE 2007).
5. Para esse trabalho, entende-se território na perspectiva de Haesbaert (2004), para quem o território em qualquer acepção, está relacionado com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”, uma vez que envolve o poder tanto no sentido mais concreto de dominação quanto no sentido mais simbólico, de apropriação.
6. Entende-se por recursos comuns os bens naturais disponíveis que, por não serem propriedade privada, podem ser usufruídos por qualquer sujeito.