Vol. 38 (Nº 38) Año 2017. Pág. 7
Fernanda Machado FERREIRA 1; Almiro ALVES JÚNIOR 2; Alair Ferreira de FREITAS 3
Recibido: 17/03/2017 • Aprobado: 15/04/2017
2. Contribuições de Polanyi e Granovetter para análise de fenômenos econômicos
RESUMO: O presente artigo se propõe a apresentar uma análise acerca das relações socioprodutivas entre os moradores da Resex Baixo Juruá, no estado do Amazonas, Brasil, sob a ótica da Sociologia Econômica. Pretende-se identificar como os arranjos produtivos e econômicos se apresentam em relação à organização social a partir dos conceitos de reciprocidade, redistribuição e domesticidade, bem como do conceito de imersão social, tendo como base autores como Karl Polanyi e Mark Granovetter. |
ABSTRACT: This article aims to present an analysis about the socio - productive relations from the residents of Resex Baixo Juruá, in the state of Amazonas, Brazil, through the perspective of the Economic Sociology. The purpose is to identify how the productive and economic arrangements are presented in relation to social organization from the concepts of reciprocity, redistribution and domesticity, as well as the concept of embeddedness, based on authors such as Karl Polanyi and Mark Granovetter. |
Refletir acerca dos fenômenos econômicos é transitar por um campo conflituoso entre a Economia e a Sociologia. Como aponta Steiner (2006), embora ambas as áreas do conhecimento tomem os fenômenos econômicos como objeto de estudo, a diferença essencial está na abordagem e na metodologia utilizada pelas mesmas. Isto é, segundo o autor, enquanto na Economia verifica-se uma análise abstrata formal de tais fenômenos, na Sociologia predominam as abordagens histórica, empíricas e o método indutivo.
Entretanto, como mostra Dequech (2010), esse distanciamento entre a Economia e a Sociologia nem sempre existiu. Segundo o autor, até o final do século XIX, elas não existiam enquanto disciplinas separadas, ambas eram englobadas pelas “ciências morais”. Foi, sobretudo com a ascensão da economia neoclássica, em aproximadamente 1870, que a Economia passou a se aproximar da física, da matemática, das ciências exatas de maneira geral, se afastando, portanto, das ciências sociais.
A hegemonia teórica do modelo standard de equilíbrio geral da economia compreende o mercado como única instituição econômica, reduzindo-o ao mecanismo de preços, isto é, à relação oferta-demanda (DEQUECH, 2010). As relações econômicas são entendidas, nesse contexto, como a busca da maximização dos interesses materiais dos indivíduos.
As relações simétricas de troca manteriam, portanto, o equilíbrio do mercado, por meio da autorregulação da “mão invisível” de Adam Smith (1996). A busca do indivíduo por seus ganhos individuais acabaria por promover um ganho coletivo, que não se intencionava. A esse movimento não intencional, se denomina o poder de uma “mão invisível”. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando intenciona realmente promovê-lo (SMITH, 1996).
De forma distinta, a Sociologia compreende o mercado como estruturas sociais, como produtos históricos, localizados no tempo e no espaço, ressaltando que a economia nem sempre se organiza por meio de relações mercantis (STEINER, 2006). Segundo o autor, a “propensão à barganha”, apontada por Adam Smith (1996), não é um traço natural do homem e válido em qualquer contexto. Para Swedberg (2004), os economistas falharam em apreender a importância da estrutura social na economia.
A Sociologia Econômica emerge neste cenário como uma crítica à ortodoxia do pensamento econômico neoclássico, buscando, portanto, compreender as ações econômicas por meio de variáveis sociológicas (CRISTINA BRAGA MARTES et al, 2007). Autores como o filósofo austríaco, Karl Polanyi, e o sociólogo americano, Mark Granovetter, são referências nesta área do conhecimento.
Karl Polanyi incide sua crítica à teoria econômica mainstream, bem como às instituições da sociedade que possui economia regulada por um sistema globalizado de mercados. No cerne de sua obra encontra-se uma crítica consistente ao fundamentalismo de mercado que é capaz de subordinar e alienar a sociedade humana a tal lógica (POLANYI, 2000). Para o autor, a esfera econômica nada mais é que parte integrante da totalidade social, política e cultural, contextualizada historicamente; a mentalidade humana, assim como sua própria racionalidade, são formadas por instituições vigentes e os mercados são complexos institucionais historicamente construídos, e não construções teóricas abstratas, como pretende a teoria econômica neoclássica.
Mark Granovetter foi um dos pioneiros da Nova Sociologia Econômica – NSE, focando seu trabalho nas formas de inserção social das ações econômicas, bem como na influência das relações sociais nos resultados econômicos, a partir de um olhar estrutural do mercado, entendido pelo autor como constituído de redes interpessoais (GRANOVETTER, 2005).
O autor incide sua crítica às visões sub e supersocializadas da ação humana, afirmando que ambas compartilham de uma mesma visão atomizada dos atores sociais. Deste modo, uma das principais contribuições de Granovetter para a NSE encontra-se em seu pressuposto de que as ações humanas são condicionadas pelo seu pertencimento a redes de relações interpessoais. Assim sendo, o mercado não consistiria em um jogo de forças abstratas entre atores atomizados e anônimos, mas sim em um conjunto de ações imersas ou imbricadas em redes concretas de relações sociais (GRANOVETTER, 1985).
Em síntese, a introdução e reintrodução do escopo sociológico como um dos elementos primordiais para se estudar e entender a economia, em seus momentos distintos (Sociologia Econômica Clássica e a Nova Sociologia Econômica), é visto como parte integrante dos estudos econômicos, pois ele incorpora ao entendimento econômico, questões que a matemática, a física e a os estudos econômicos clássicos não conseguem alcançar plenamente em suas linhas de pensamento. A sociologia econômica não deve ser observada como rival dos estudos econômicos clássicos, mas, sim, como ferramenta para obtenção de uma visão ampla de um quadro econômico, de mercado ou mesmo de políticas econômicas de Estado. Alguns aspectos como as redes de relações interpessoais, crenças religiosas e aspectos culturais, são ingredientes primários para a formação econômica de uma sociedade. A partir dessa perspectiva, os fenômenos econômicos são antes fenômenos sociais.
Pautado nos pressupostos da Sociologia Econômica, mais especificamente, nas teorias de Karl Polanyi e Mark Granovetter, este artigo tem como objetivo analisar as relações socioprodutivas existentes na Reserva Extrativista Baixo Juruá - Resex, de forma a identificar como se manifestam os fenômenos econômicos entre os comunitários da Resex. Esta experiência singular será a base empírica para operacionalização teórica da nova sociologia econômica. Tal análise terá como base os resultados dos Diagnósticos Rápidos Participativos [4] realizados com moradores representantes de dez comunidades da Resex, em abril de 2013, bem como a “observação participante” [5] deste trabalho na referida Unidade de Conservação. Além disso, são utilizados dados secundários e outros estudos referentes à Resex para complementação da análise, a qual será guiada pela lente dos conceitos de reciprocidade, redistribuição e domesticidade de Polanyi, e imersão, de Granovetter.
Karl Polanyi apresenta uma análise acerca dos fenômenos econômicos a partir da noção de economia substantiva, em contraposição à economia formal. A economia substantiva se fundamenta nos fatos sociais e naturais empíricos, derivados da dependência do homem em relação à natureza para a satisfação de suas necessidades materiais. Dentro da perspectiva da economia substantiva, o processo econômico é entendido a partir da atividade interativa entre os seres humanos e seu entorno, bem como por meio da institucionalização de tal processo. Sendo assim, os modos de organização social e suas formas de integração com o processo econômico se dão a partir de três formas empíricas assim identificadas por Polanyi, em sua obra A Grande Transformação: reciprocidade e simetria; redistribuição e centralidade; intercâmbio e mercado. Essas formas são institucionalizadas por meio da socialização de práticas baseadas em dispositivos de ação coletiva e em sistemas de regras, como parte reguladora do ordenamento da vida social, política e econômica dos indivíduos.
Para Polanyi (2000), na reciprocidade observa-se que a organização dos grupos se define por relações não econômicas, tais como amizade, parentesco e ou de necessidade de simbiose entre os grupos para subsistir. Há o princípio da simetria nas trocas, sempre existirá um parceiro. Cada indivíduo exerce papel similar na relação de troca. Não existe dominação patrimonial. Os movimentos de troca são correspondentes, e se observa a inexistência de relação de exploração sistêmica. A economia social, o envolvimento de cada membro da sociedade na atividade econômica de produção e consumo é crucial. O que regula essa situação são as normas sociais vigentes na sociedade.
A redistribuição caracteriza-se, para Polanyi (2000), pela ausência de um concentrador de renda. O processo é regido pelo princípio da centralidade, caracterizado por uma hierarquia socialmente definida e não pela propriedade individual dos meios de produção. Os recursos são centralizados, ordenados e redistribuídos por mecanismos e regras de controle na realocação dos recursos, definidos coletivamente e implementado pela figura da autoridade central, figura esta que é socialmente construída.
Na domesticidade, a produção se destina ao uso próprio, pode-se aceitar a comercialização do excedente, desde que a natureza da produção seja para consumo próprio. A natureza do núcleo institucional é indiferente: pode ser sexo, como na família patriarcal; localidade, como nas aldeias; ou poder político, como no castelo senhorial. É uma forma organizacional regida pelo princípio da autarquia (POLANYI, 2000).
Nessa linha de pensamento, Polanyi procura enfatizar que "enquanto os mercados e o dinheiro fossem meros acessórios de uma situação doméstica autossuficiente, o princípio da produção para uso próprio poderia funcionar" (POLANYI, 2000, p. 74). A presença do mercado e do dinheiro por si só não representa uma ruptura com o status de autossuficiência, uma vez que se preserve o papel principal da produção para uso próprio, ou seja, que a produção tenha como principal função a autopreservação e não a busca por ganho.
Enquanto a motivação econômica estiver subordinada às relações sociais, os princípios da reciprocidade, da redistribuição e da domesticidade neste processo serão preponderantes. A economia é tida como um apêndice da sociedade, ela está imersa e enredada (embeddedness) em instituições não econômicas (como parentesco, política e religião), ilustrando assim as motivações não econômicas e ausência de competitividade nos sistemas econômicos pré-capitalistas, pois “o sistema econômico estava submerso em relações sociais gerais; os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e regulada, mais do que nunca, pela autoridade social” (POLANYI, 2000, p. 88).
Polanyi contribui com uma importante análise institucional que colabora significamente para a compreensão dos processos de mudanças socioeconômicas que ocorrem no desenvolvimento da sociedade contemporânea. A partir do momento em que a reciprocidade, redistribuição e domesticidade são gradativamente substituídas pela permuta, barganha e troca, ocorre a grande transformação; o processo econômico deixa de ser um apêndice social e passa ao status de sociedade de mercado.
Para o autor em questão, os economistas clássicos se equivocam ao disseminarem que a condição natural do ser humano é a barganha, o trabalho e a negociação para proveito próprio. Esta era a ideia do homo economicus, em que o homem vivia para o mercado, e para o mesmo esse movimento de desenraizamento e sobreposição do econômico no social não seria um processo natural, pois como regra, o progresso é feito às custas da desarticulação social. Há uma inversão de papéis, se antes as relações sociais definiam o padrão econômico, agora o sistema econômico é que passa a ser dominante e a interferir na ordem social.
Se antes a economia estava imersa no social, agora o social estaria imerso no econômico e este gozaria de autonomia em relação ao social. Essa inversão é, portanto, derivada do estabelecimento da economia de mercado, realizado a partir da mudança institucional decorrente do processo de mercantilização da terra, do trabalho e do dinheiro.
Ao resgatar o papel da estrutura social na economia, Granovetter se apropria da noção de imersão (embeddedness) de Polanyi, reformulando o mesmo em uma das obras mais expoentes da NSE, intitulada Economic action and social structure: the problem of embeddedness. A noção de embeddednes desenvolvida por Granovetter revela que a ação econômica está imersa em redes de relações sociais que influenciam no comportamento humano na construção dos mercados (GRANOVETTER, 2005).
Nesse sentido, o conceito de embeddednes de Granovetter é muito caro a esse trabalho, pois instrumentaliza a análise de processos econômicos por meio das relações sociais em sociedades modernas, avançando nos pressupostos de Polanyi. Como salienta Raud-Mattedi (2003), apesar de Granovetter “tomar emprestado” a noção de embeddedness de Polanyi, ele recusa a separação estabelecida por este entre sociedades tradicionais (pré-capitalistas) e moderna (capitalistas), sendo que aquelas teriam economia embutida (enraizada) e estas, economia autônoma (desenraizada).
Para Granovetter (1985), as economias clássica e neoclássica baseiam-se em uma concepção subsocializada da ação humana, a partir da qual o indivíduo age unicamente pela busca de seu interesse próprio. Além disso, como afirma o autor: “mesmo quando os economistas levam as relações sociais a sério (...) os laços interpessoais descritos em seus argumentos são extremamente estilizados, convencionais, “típicos” – desprovidos de conteúdo, história ou posicionamento estrutural específicos” (s. p.). Por outro lado, em contraste à concepção subsocializada, o autor se refere também à concepção supersocializada da ação humana, mais comum nas teorias sociológicas, concepção esta que compreende a ação humana como condicionada por um sistema de normas e valores estabelecidos, interiorizados a partir da socialização.
Entretanto, conforme aponta o autor, embora haja um aparente contraste entre as concepções sub e supersocializadas da ação humana, ambas compartilham de uma mesma visão atomizada dos atores sociais. Isto é, enquanto na abordagem subsocializada a atomização resultaria da busca utilitarista dos interesses próprios, na abordagem supersocializada tal atomização derivaria da concepção de que os padrões de comportamento são internalizados, o que faz com que as relações sociais possuam um papel secundário sobre o comportamento humano. Assim, para Granovetter, esta concepção atomizada da ação humana a partir das abordagens da sub e supersocialização deve ser evitada e, ao invés disso, as ações destes atores devem ser entendidas como estando imersas em sistemas concretos e contínuos de relações sociais ou de redes sociais, o que poderá ser observado no contexto das relações sociais estabelecidas na Resex Baixo Juruá.
O foco deste estudo é a Reserva Extrativista Baixo Juruá, localizada no estado do Amazonas, compreendendo parte dos municípios de Juruá e Uarini, na mesorregião Sudoeste Amazonense, com área aproximada de cento e oitenta mil hectares (Figura 01). As Reservas Extrativistas – Resex, enquadram-se como uma categoria de unidade de conservação (UC) da natureza de uso sustentável, explorada por populações que se organizam historicamente nos pilares da agricultura de subsistência, no extrativismo e na criação de animais de pequeno porte (BRASIL, 2000).
As UCs são definidas em dois grupos: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. Nas Unidades de Proteção Integral, não é permitido o uso direto dos recursos naturais, podendo ser utilizado para fins de pesquisa e visitação, e é composta pelas seguintes categorias: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre. As Unidades de Uso Sustentável têm por objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais, e é composta pelas seguintes categorias; Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural (BRASIL, Lei nº 9.985, de 18 de junho de 2000).
Figura 01. Localização da Resex Baixo Juruá, AM.
Fonte: ICMBIO, 2009.
A origem das Resex se remonta à década de 1970, sobretudo à luta dos seringueiros ameaçados pela crescente expansão da fronteira agrícola na Amazônia brasileira, expansão esta que forçou inúmeras famílias extrativistas, muitas vezes de forma violenta, a procurarem novas áreas para se instalarem. Diante deste cenário, os seringueiros passam a se unir em um movimento social de luta contra as ameaças às atividades extrativistas, movimento este que culminou no Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, ocorrido em 1985, em Brasília, sob liderança de Chico Mendes, considerado o marco histórico para a oficialização das reservas extrativistas (RUEDA & MURRIETA, 1995).
O processo de criação da Resex Baixo Juruá foi fortemente marcado pela influência da Igreja Católica, por meio da Prelazia [6] de Tefé, a qual participou ativamente do avanço de diversos setores sociais e ambientais da região Centro-Oeste do Amazonas. Entre as décadas de 1940 e 1980, a constituição de paróquias pela Prelazia de Tefé na região possibilitou maior proximidade entre sacerdotes e ribeirinhos por meio de uma ação política evangelizadora que pregava uma visão de comunidade, bem como de preservação da natureza (ICMBio & UFV, 2013).
A criação da Resex está tão intimamente ligada à Prelazia de Tefé, que a mesma prestou toda a assistência jurídica necessária para sua implantação, ocorreu através da Assessoria Jurídica da Prelazia de Tefé (LENER, 2008). Nesse sentido, a mobilização da Igreja junto aos ribeirinhos da região do Baixo Juruá coloca em evidência a questão da preservação ambiental, tendo em vista a percepção dos comunitários acerca da escassez de espécies de peixes de elevado valor comercial e cultural, como o pirarucu, compulsoriamente explorados por invasores, o que instigou a mobilização da população local em defesa do manejo coletivo dos lagos, que passam a ser fiscalizados pelos próprios ribeirinhos (ICMBIO & UFV, 2013).
É a partir, portanto, deste processo de preservação de lagos, apoiado pela Igreja Católica, bem como por instituições ambientais como o Ibama/AM, e a organização de sua sociedade civil, que surge a iniciativa da criação da Reserva Extrativista Baixo Juruá. A abertura do processo para a criação da referida UC se deu em 1997, mas o decreto de criação só foi publicado em 01/08/2001 (ICMBIO & UFV, 2013).
Portanto, sua construção foi fruto de um senso de comunidade e cooperação da população local, fruto da influência marcante da Igreja Católica, da necessidade de se proteger os recursos naturais da região de um processo de exploração econômico sistêmico, agressivo e destrutivo, e a busca por se preservar o modo de vida de sua população, que com o declínio da indústria da borracha na região, nos anos de 1940-1960, acabou por se adaptar e se identificar com um estilo de vida de maior sinergia e simbiose com o a floresta. Esse caráter preservacionista deste processo fica evidenciado por estudos sobre a disponibilidade de biodiversidade na região, pois de acordo com Rebelo e Braga (2015), passados alguns anos da criação da Resex Baixo Juruá, a quantidade de animais silvestres, disponíveis para alimentação da população local, cresceu em quantidade.
Conforme apontado no Plano de Manejo da referida UC (ICMBio, 2009), bem como no Relatório de Campo produzido com base nas oficinas de DRP (ICMBio & UFV, 2013), a população da Resex Baixo Juruá é formada por remanescentes de antigos seringais existentes na região, sendo caracterizada pelo resultado da miscigenação de nordestinos e indígenas. Sobre tal questão, Souza (2009) afirma que durante o processo de substituição dos patrões seringalistas por novos donos da terra (pecuaristas), muitos seringueiros imigraram paras as cidades, outra parcela emigrou para Bolívia, e dentre os que decidiram por permanecer na floresta e viver da prática extrativista, destacam-se os seringueiros da região do Juruá, local onde a escolha por esse caminho foi mais recorrente.
O ciclo da borracha demandou grandes fluxos migratórios para a região amazônica brasileira, no início do século 1900, e com o advento da Segunda Grande Guerra, a demanda da borracha aumentou drasticamente e a necessidade de aumentar o volume de mão de obra disponível para a extração da borracha se tornou estratégia de guerra. Parte dessa população voltou a migrar após o declínio da demanda da borracha nos anos 1950, porém muitos dos seringueiros fixaram residência na região e dentre esse grupo, uma parcela optou por acolher a vida ribeirinha de autossuficiência e a buscar na floresta sua subsistência (SILVA, 1998).
A população da Resex encontra-se distribuída em dezesseis comunidades, localizadas, predominantemente, às margens do rio Juruá (10 comunidades), bem como às margens do rio Andirá (05 comunidades) e do Igarapé do Branco (01 comunidade). A maioria das famílias estão concentradas em quatro comunidades, quais sejam Forte das Graças I e II, Cumaru e Antonina. O último levantamento realizado na Resex Baixo Juruá aponta uma população de 697 pessoas, dentre usuários e beneficiários (ICMBIO & UFV, 2013).
A Reserva Extrativista do Baixo Juruá é quase totalmente coberta por floresta, apresentando apenas cerca de 0,6% de áreas destinadas às roças das comunidades (LEDUC, 2007, apud ICMBIO, 2009), fator que sinaliza a vocação extrativista, de agricultura de subsistência e da criação de animais de pequeno porte, como base da economia local. Outro fator que corrobora com essa organização econômica é a localização geográfica, uma vez que a forma de locomoção ocorre fundamentalmente por hidrovia e em alguns casos, por via aérea, não sendo possível a existência de rodovias. É valido reforçar que na época da seca o deslocamento fica severamente limitado.
A utilização de mecanização agrícola é inexistente, e as tecnologias utilizadas nos arranjos produtivos locais limitam-se quase que exclusivamente a técnicas de cultivo e manejo introduzidas por assessoria técnica especializada ou mesmo equipamento cultural da própria comunidade. O acesso à energia elétrica é limitado e o uso de geradores para produção de energia baseada em combustíveis fósseis é restrita a poucas horas, geralmente das 18:30 as 21:30 horas (ICMBIO, 2009; ICMBIO & UFV, 2013). Essa falta de infraestrutura corrobora com a escassez de uso de equipamentos tecnológicos nos modos de produção da Resex Baixo Juruá.
O arranjo produtivo da Resex se caracteriza, basicamente, como uma economia de autossuficiência, tendo na agricultura sua principal atividade. Os principais alimentos cultivados são a mandioca, milho, feijão, melancia, batata, jerimum, arroz, pupunha. Dentre esses, destaca-se a mandioca, que possui como principal subproduto a farinha, sendo que seu excedente de produção é a principal fonte de renda proveniente das lavouras. Destaca-se a existência de casas de farinha em algumas comunidades da Resex, onde a produção é realizada de forma coletiva, desde o plantio da mandioca à colheita e processamento do produto. Assim, “além de ser uma fonte de renda e alimentação a cadeia produtiva da farinha reforça os laços sociais desta comunidade” (ICMBIO & UFV, 2013, p. 23).
O extrativismo está intrinsecamente ligado à história dessas comunidades e continua a ser uma prática econômica e de identidade cultural importante de sua população, e tem como principais produtos o pescado, a madeira, a castanha, o cupuaçu, o açaí, o caju, o tucumã e a pupunha (ICMBIO & UFV, 2013).
A criação de animais é uma prática usual das comunidades, tendo o foco em animais de pequeno porte, como galinhas, patos, porcos e carneiros. Sua produção é voltada para consumo próprio. A criação de gado ocorre dentro da Resex, apesar do esforço empenhado pelas autoridades competentes que a administram, tendo por objetivo, em médio prazo, extinguir tal prática, dando suporte aos atuais criadores de gado, de forma que tal prática seja substituída por outras atividades compatíveis com a Resex. Ressalta-se que a criação de gado é concebida, por muitos dos criadores, como uma espécie de poupança, visto que em casos de necessidade eles negociam o animal com muita facilidade e a um bom valor, e o mesmo tem um baixo custo de engorda (ICMBIO, 2009).
A produção de artesanato é difundida nas comunidades como subproduto, principalmente, das atividades extrativistas e envolve técnicas e modos de produção que são passados de geração em geração. Há também a prestação de serviços para órgãos governamentais e instituições de pesquisa, tais como o serviço de guia, piloto de embarcações, cozinheiras, entre outras ocupações necessárias para o desenvolvimento das atividades destes grupos. O comércio local também é uma fonte de renda de alguns membros da comunidade (ICMBIO, 2009).
Além das atividades econômicas relatadas, destaca-se também o manejo dos lagos, que tem contribuição importante no complemento de renda das comunidades da Resex Baixo Juruá, alcançando, no ano de 2012, uma cota de 19.000 quilos de pescado manejado, gerando uma renda de cerca de R$ 3.000,00 anuais para cada manejador, por poucos dias de trabalho continuado, além do processo permanente de proteção dos lagos, contra invasão de pescadores externos à comunidade (PINHEIRO et al, 2013). Segundo o mesmo autor “O sucesso do manejo depende do esforço conjunto na vigilância de lagos, fiscalização e organização da atividade” (IDEM, p. 241).
Ao analisar o processo histórico de formação das comunidades do Baixo Juruá até a implementação da Reserva Extrativista, observa-se que apesar das origens das comunidades estarem atreladas a um grande ciclo econômico brasileiro (o ciclo da borracha), sua evolução organizacional, após o declínio desse ciclo, pode ser entendida como um contramovimento à grande monocultura de exportação e à expansão das extensas áreas destinadas à pecuária e agricultura. Isto é, a partir do momento em que o território, bem como os meios de vida destas famílias passam a ser ameaçados por uma exploração desordenada e predatória, as comunidades se uniram e buscaram, por meio da organização associativa, meios legais para interromper esse processo depredatório.
Tal processo corrobora com a tese de Granovetter de que existe imersão social dentro de uma sociedade moderna, bem como que a estruturação de conceitos como reciprocidade e redistribuição, dentro de um contexto de domesticidade, podem criar condições sociais de mobilização da sociedade civil para o uso de instrumentos como a cooperação e até de instituições formais e seus aparatos jurídicos para a proteção de seu modo de vida e da preservação das condições do ambiente natural necessários a ele.
Um fator importante demonstrado pelo estudo da Resex Baixo Juruá é que este processo de imersão social pode estar intimamente relacionado a limitações geográficas. O isolamento geográfico e a restrição quanto às formas de locomoção tornaram essas comunidades propensas à formação de uma rede social complexa, institucionalizada por meio da socialização de práticas baseadas em dispositivos de ação coletiva e em sistemas de regras, como parte reguladora do ordenamento da vida social, política e econômica dos indivíduos (POLANYI, 2000).
No manejo do pirarucu verifica-se a operacionalização do conceito de redistribuição apresentado por Polanyi, à medida que para o projeto de manejo funcionar, todos os envolvidos deveriam dispor de tempo e de sua força de trabalho em um esforço produtivo coletivo. O total coletado do pescado é repassado para a Associação dos Trabalhadores Rurais de Juruá - ASTRUJ, que exerce uma centralidade no recolhimento e comercialização da produção, além de ser responsável pela organização das escalas de vigília dos lagos de pesca, bem como pela infraestrutura necessária para o armazenamento do pescado. A ASTRUJ exerce, portanto, um papel de centralidade na Resex Baixo Juruá, sendo responsável pela redistribuição dos recursos financeiros advindos do manejo do pirarucu.
O uso comunitário de meios de produção está presente também nas casas de farinha, onde as famílias organizam sua força de trabalho e seus roçados de mandioca para a produção da farinha para uso próprio e a comercialização do excedente. A organização comunitária da mão de obra para a produção de alimentos demonstra o caráter simétrico e simbiótico dessas comunidades não só com a natureza, mas entre os indivíduos que a compõem. Em muitos casos, as relações não são pautadas apenas pela necessidade, mas também por parentesco, amizade e crenças religiosas, sendo a reciprocidade um caráter marcante em sua organização socioeconômica.
Ao estudar a formatação socioeconômica das comunidades da Resex Baixo Juruá, percebe-se que o modo como estas comunidades fomentam suas atividades econômicas e sociais em sintonia com o ambiente no qual se encontram - respeitando suas limitações, explorando suas potencialidades naturais e preservando sua integridade estrutural - corroboram e exemplificam a instrumentalização acerca da tese de Polanyi (2000) sobre seus conceitos de reciprocidade, redistribuição e domesticidade, bem como de Granovetter, para o qual as ações dos atores devem ser entendidas como estando imersas em sistemas concretos e contínuos de relações sociais ou de redes sociais.
O processo de formação da Resex Baixo Juruá pode ser considerado como um contramovimento ao modelo hegemônico de produção, pelo mesmo ter proporcionado instrumentação administrativo/jurídico às comunidades locais para o combate da pesca em escala industrial e a preservação das matas nativas frente à crescente expansão de áreas agrícolas e de pastagens rumo às florestas locais. Esse processo, portanto, configura um movimento de proteção ao ambiente natural e à organização social que se define em seu processo de simbiose com a floresta.
A análise socioprodutiva da Resex aponta que a esfera econômica nada mais é que parte integrante da totalidade social, política e cultural da Resex e que características peculiares no processo histórico de formação das comunidades demonstram que o mercado não consiste em um jogo de forças abstratas entre atores atomizados e anônimos, mas sim em um conjunto de ações imersas ou imbricadas em redes concretas de relações sociais estabelecidas entre os comunitários da Resex.
Nesse sentido, verifica-se que os princípios da reciprocidade, redistribuição e domesticidade, embora sejam restritos, por Polanyi, ao contexto das sociedades primitivas, podem ser observados também nas sociedades modernas, assim como aponta Granovetter. Logo, constata-se a partir deste trabalho que a localização geográfica pode ser determinante na configuração das relações sociais, econômicas e culturais de um determinado grupo social. No caso específico da Resex Baixo Juruá, o acesso à mesma depende sobremaneira da época do ano, isto é, da cheia e da vazante, uma vez que no período de seca os leitos dos rios são reduzidos à sua calha principal, resultando no afloramento de bancos de areia e outros obstáculos que dificultam a navegação. Nesse sentido, o transporte, tanto interno (dentro da própria Resex), como externo (para se chegar até à mesma), fica bastante comprometido no período da vazante dos rios, dificultando, portanto, o deslocamento de pessoas e mercadorias.
Em suma, a Sociologia Econômica parece uma via interessante para colaborar de forma contundente nos estudos acerca do desenvolvimento e organização do campo rural no Brasil, permitindo analisar a organização socioprodutiva na Resex Baixo Juruá a partir de uma perspectiva não restrita apenas à dimensão econômica que, no caso em questão, se demonstrou imersa nas relações sociais das comunidades.
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1. Geógrafa, Doutoranda em Extensão Rural, Universidade Federal de Viçosa, Brasil. E-mail: fernandamachado_geo@hotmail.com
2. Licenciado em História, Especialista em Gestão de Empresas, Mestrando em Extensão Rural, Universidade Federal de Viçosa, Brasil. E-mail: almiroalves@gmail.com
3. Gestor de Cooperativas, Professor Adjunto do Departamento de Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa, Brasil. E-mail: alairufv@yahoo.com.br
4. O Diagnóstico Rápido Participativo se caracteriza como um conjunto de ferramentas e técnicas que permitem a coleta de informações sobre uma determinada realidade de forma interativa e dialógica.
5. A observação participante é uma técnica de pesquisa que tem suas origens na etnografia, a qual busca abarcar a totalidade de todos os aspectos da sociedade estudada, quais sejam aspectos sociais, culturais e psicológicos, os quais só podem ser apreendidos pelo pesquisador através da observação direta, do estudo intensivo de uma sociedade que nos é estranha, ou seja, através da pesquisa de campo (MALINOWSKI, 1978). Nesse sentido, ressalta-se que a primeira autora deste trabalho passou uma semana na Resex Baixo Juruá, buscando compreender tais aspectos.
6. A definição de prelazia de acordo com o Código de Direito Canônico, artigo Cân. 370: “A prelatura territorial ou a abadia territorial é uma porção do povo de Deus, circunscrita territorialmente, cujo cuidado pastoral, em virtude de circunstâncias especiais, é cometido a um Prelado ou Abade, que a governa como seu pastor próprio, à maneira de Bispo diocesano”.