Vol. 38 (Nº 35) Año 2017. Pág. 27
Daniel PERDIGÃO 1; Michelle ZAMPIERI Ipolito 2
Recibido: 25/04/2017 • Aprobado: 22/05/2017
RESUMO: A educação a distância (EaD) é particularmente suscetível à falta de diálogo e à massificação: daí deriva a necessidade de se estruturar cursos de formação de professores a distância com referenciais dialógicos. Analisamos como as ideias de Paulo Freire contribuem para essa construção, tomando como exemplo duas licenciaturas em Física e Química de universidades federais. Concluímos que a concepção dos projetos pedagógicos influenciou positivamente, ainda que timidamente, professores e materiais didáticos, espalhando valores dialógicos entre alunos e colaboradores. |
ABSTRACT: Distance education (EaD) is particularly susceptible to lack of dialogue and massification: from this derives the need to structure distance teacher training courses with dialogic references. We analyze how Paulo Freire's ideas contribute to this construction, taking as an example two undergraduate courses in Physics teaching and Chemistry teaching from Brazilian federal universities. We conclude that the concept of pedagogical projects positively influenced, albeit timidly, teachers and didactic resources, spreading dialogic values among students and collaborators. |
No conjunto da obra intelectual de Paulo Freire, encontram-se muitas abordagens que podem ser úteis, não somente à formação do professor, mas também à compreensão do docente em formação a respeito deste processo. Para Freire (2009), a formação do professor é essencial, podendo levar esse professor e a sua conduta profissional a possuir fundamentos problematizadores, libertadores ou, por outro lado, a ter fundamentação massificada, bancária. Para Freire (2007), o alicerce da educação consiste na reflexão do ser humano sobre si próprio em dada realidade, em uma constante procura pela autorreflexão, descobrindo-se, desta forma, como um ser inacabado. Em outras palavras, o sujeito acaba por se colocar em uma constante busca, por ver a educação como uma resposta da finitude da infinitude, por meio da qual chegaria à perfeição, ao perceber-se como um ser inacabado.
Por outro lado, uma situação como esta exigiria uma busca do homem pela sua própria educação, não sendo, desta forma, seu objeto. A conclusão que Freire (2007) extrai daí é a de que ninguém educa ninguém. Ao contrário: para Freire, todos se educam socialmente, no trato comum com outras consciências, com outros seres que também buscam ser mais e ir além, por meio de uma constante e ousada superação. A educação é possível com pessoas que não se colocam em uma posição superior, como se ensinando a ignorantes, mas na modesta posição de quem comunica um saber que é relativo.
Freire (2007; 2009) acredita que o educando não pode assumir um papel passivo no processo de sua própria formação, permitindo-se ser meramente um “depósito do educador”. Ao contrário, o educando deve se mostrar capaz de criar e de transformar o mundo, deve ser o sujeito da ação. Entretanto, isso é algo que exige liberdade, democracia e consciência, algo possível apenas por meio de atos de amor e de coragem, que partiriam do debate e da análise da realidade.
Freire (2007) afirma que o ser humano está “no mundo” e “com o mundo”. Esta seria a razão pela qual ele pode buscar distinguir-se entre um eu e um não eu; por isso, pode se relacionar, pode sair de si e se projetar nos outros, transcendendo, captando realidades e fazendo delas objetos de seus saberes. Na mesma obra, Freire afirma que é por esta razão que a consciência reflexiva deveria ser estimulada, afinal, quando o educando busca refletir e compreender sua realidade, precisa levantar hipóteses para desafiar essa realidade, buscar soluções, buscar possibilidades de transformá-la com seu trabalho, criando uma consciência de si próprio e de suas circunstâncias.
Desta forma, para Freire (2007), a educação se tornará cada vez mais autêntica quanto mais desenvolver a faceta criadora do ser humano: um ser que conhece a sua identidade, que atua com uma consciência crítica que lhe possibilita transformar a realidade, dar respostas aos desafios do mundo e fazer sua própria história criando e decidindo de forma autônoma. Em oposição a este sujeito crítico e consciente, Freire vê um ser alienado, que, para ele, é um ser inautêntico. Inautêntico não por causa da imitação em si, e sim pela passividade com que aceita prestar-se a esse papel de simulacro, ou pela falta de análise da realidade e de autocrítica.
Daí advém a necessidade de haver diálogo nas relações educacionais. Não se cria consciência sem o diálogo, sem a conexão com o mundo mediada pelo educador. Mas essa concepção traz implicações à interação entre educadores e educandos, especialmente na educação a distância. Neste caso, uma perspectiva dialógica e conscientizadora implica compreender o uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) na educação e se posicionar frente a esse uso de forma crítica, para que as concepções que se formem acerca desse tema sejam mais políticas e éticas. A educação a distância é especialmente suscetível à massificação, ao isolamento e ao silêncio; daí surge a necessidade de se apelar a referenciais dialógicos, como os freireanos, na estruturação de cursos de formação de professores a distância.
Diversos autores aproximam referenciais freireanos e educação a distância, não se limitando à dialogicidade. Para Motta e Angotti (2011), por exemplo, é preciso buscar um equilíbrio de forças entre professor e aluno na educação a distância, pois, se na educação presencial, caminhos para que o educando persiga a autonomia são mais evidentes, na educação não presencial, cabe ao professor implementar estratégias para que a autonomia seja um objetivo do aluno. Contudo, para Souza, Bastos e Angotti (2005), é fundamental que sejam respeitados o aluno e a sua palavra. Como reconhecem os autores, isso só pode acontecer quando o professor aguarda, comparte, abre-se para o necessário diálogo.
Uma vez que o diálogo toma posição central na concepção freireana de educação, vale tratar do conceito de comunicação na obra de Paulo Freire. Schneider (2008) entende que a concepção de comunicação está associada à coparticipação dos sujeitos no ato de pensar, de refletir, de educar, em uma relação de reciprocidade que precisa ser preservada. Assim, o que caracteriza a relação entre comunicação e educação é o diálogo, pois, para Paulo Freire, educação nunca é mera transferência de saber. Ao contrário: educação é comunicação, é diálogo, é um encontro de sujeitos interlocutores que buscam juntos significar significados.
A importância do diálogo na relação educativa também é tratada e aprofundada por Freire em seu livro “Pedagogia do Oprimido” (2005a). O educador brasileiro defende que a dialogicidade está na raiz de uma educação como prática da liberdade. O diálogo seria, da mesma forma, uma porta aberta para a libertação do oprimido. Trata-se do entendimento do ser humano como ser de relação, do amor como fundamento, da confiança recíproca como valor maior, da comunicação como diálogo, da autossuficiência como tabu. Na mesma obra, Freire mostra entender que o diálogo autêntico é uma demonstração de reconhecimento do outro, do reconhecimento de si próprio no outro. Entende-se isso como a expressão de uma decisão e de um compromisso de colaborar para a construção do mundo, em uma demonstração de humanização da consciência de seres que dialogam.
Na mesma obra, porém, Freire mostra os limites para que o diálogo possa acontecer. Entre tais limites, está a impossibilidade de diálogo entre oprimido e opressor, já que este último tem como objetivo impor ideias, mas não discuti-las. Outra situação em que não há diálogo é no embate entre pessoas que buscam uma única verdade ou, no extremo oposto, que se limitam a recitar ideias prontas para ser consumidas. Por fim, Freire vê como insustentável um diálogo que não seja permeado pelo amor, pela humildade e pela fé do ser humano no ser humano.
Freire propõe uma forma de abertura à conversação na mesma obra, “Pedagogia do Oprimido” (2005a), ao aprofundar a ideia de diálogo e tratar de sua experiência na alfabetização de adultos. Freire propôs e aplicou, com sucesso, um método de letramento baseado no conceito de palavras geradoras. Por meio do diálogo prévio com os educandos, o educador poderia compreender a realidade cotidiana vivida pelos educandos e, assim, escolher de forma adequada palavras que seriam motivadoras da aprendizagem. Inicialmente aplicado em Angicos, no Rio Grande do Norte, o método se espalhou rapidamente, havendo, assim, diversas outras experiências na sequência (Germano, 1997).
Freire (2005a) estende a ideia de palavras geradoras para situações educativas que não a alfabetização: o educador brasileiro sugere o levantamento de temas geradores para servirem de orientadores na ação formativa, visando a fomentar o diálogo. Muitos projetos fizeram e continuam fazendo uso de temas geradores, não somente em projetos alternativos de educação, mas também no sistema de educação formal. Como exemplos, temos a formação de professores na Guiné-Bissau (Delizoicov, 1982) e no município de São Paulo (Pernambuco, 1994), além de duas ações no Rio Grande do Norte, sendo uma dirigida à educação básica (Pernambuco, 1994) e outra, que subsidia o presente trabalho, voltada à formação inicial de professores a distância pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Assim, Freire (2005a) propõe uma nova concepção de programas de ensino. Com o uso de temas geradores, o intelectual brasileiro vislumbrava uma forma de devolver ao povo, aos educandos, os elementos de saber fornecidos aos educadores. No entanto, tal retorno passa a se dar em um formato organizado, sistematizado e ampliado, de forma a possibilitar a mudança social. Para Pernambuco (1994), buscar temas geradores, compreendendo o que é significativo ao educando e à população nas dimensões analítica e vivencial, e trabalhar a partir desse tema permite trazer à tona contradições, com o objetivo de superar essas mesmas contradições, buscando novos conhecimentos a todos os participantes, em uma construção coletiva.
A concepção de tema gerador inova ao introduzir o diálogo entre educadores e educandos ainda na fase de elaboração dos programas. Ou seja, não há uma predeterminação dos tópicos de estudo pelos educadores em função de suas percepções pessoais ou interesses. A educação por temas geradores exige uma interação prévia, plena, entre uma equipe interdisciplinar de educadores e a população onde se encontram os educandos, em busca de temas significativos e de interesse coletivo, que possam ser trabalhados de forma sequencial e articulada (Pernambuco, 1994).
O diálogo, entretanto, não supõe apenas aproximação, mas também afastamento, quando necessário. Entende Pernambuco (1994), fundamentada em Freire (2005a) e em Delizoicov (1982), que a compreensão da realidade, ainda que incompleta e provisória, requer a possibilidade do distanciamento. Ou seja, para que possamos repensar nossas ações visando a transformações sociais, além de haver um conflito real, é preciso que tenhamos consciência de nosso comportamento, sendo que esta consciência exige um olhar externo, distanciado. Para a autora, isto pode ocorrer na exploração das contradições do real, das diferentes vozes associadas ao real, das construções individuais e coletiva do real, do constante questionamento do real.
Neste processo, é necessário observar o mesmo contraste que Freire (2005b, 2011) enxerga entre tomada de consciência e conscientização. A tomada de consciência se limita a uma aproximação sem teor crítico, diferentemente da conscientização, mais plena e profunda, por pressupor, além da tomada de consciência, a apropriação de um tipo de conhecimento que desvela a realidade. Assim, o objetivo que o educador deveria ter é o de buscar a conscientização, não se satisfazendo com uma mera tomada de consciência dos educandos. Para Pernambuco (1994), mesmo que se considere que a educação não seja o elemento determinante da ocorrência de transformações sociais, pode servir de instrumento importante que possam acontecer. E, para isto, a educação precisa dar acesso efetivo ao conhecimento, algo que permita ao educando agir sobre o mundo em que vive, inserindo-se nesta sociedade tão inconstante e complexa.
Como já mencionamos anteriormente, diversos projetos de educação redimensionaram os ideais freireanos para uma prática escolar. Aqui estudamos mais um destes projetos: os casos de estruturação de projetos pedagógicos e de elaboração de materiais dos cursos de licenciatura em Física e em Química da UFRN e sua transposição para a Universidade Federal do Tocantins (UFT), com a formação de novos temas geradores. Assim, é objetivo deste trabalho analisar como o referencial freireano contribuiu para a construção dos referidos cursos de formação de professores a distância e avaliar como o diálogo foi percebido e conduzido entre educadores e educandos nesse processo de consolidação dos cursos.
Pernambuco (1994) é uma das autoras que realizou a elaboração e a implementação de um projeto freireano de educação. Mais especificamente, isso foi realizado nas escolas públicas municipais de São Paulo na gestão Luiza Erundina, entre 1989 e 1992. Durante o referido governo, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo foi conduzida por dois educadores: o próprio Paulo Freire, de janeiro de 1989 a maio de 1991, e por Mario Sergio Cortella, desde a saída de Freire até dezembro de 1992 (CORTELLA, 1992). Assim sendo, nossa análise dará ênfase à aplicação prática de ideais freireanos. Daí a nossa opção por adotarmos, para subsidiar nossos métodos de análise, relatos e concepções de quem, efetivamente, empregou ideais freireanos na prática educacional.
Na implantação de propostas como estas, Pernambuco (1994) entende ser inevitável repensar os conteúdos em duas dimensões: uma delas, em relação aos instrumentos que os referidos conteúdos são capazes de fornecer aos educandos; a outra, como estes conteúdos se integram às necessidades e às possibilidades de educandos e educadores, tanto no âmbito individual quanto no do coletivo. A autora concebe o currículo a partir de uma ideia muito mais ampla, que excede os limites da matriz curricular, avançando para consultar a comunidade; que ultrapassa a função de transmissor de conteúdo e coloca em pauta questionamentos sobre como, por quê, do quê e para quê. Nesta concepção ampla de currículo, exige-se atenção para aspectos antes deixados em planos secundários: o trabalho coletivo, a metodologia baseada no diálogo, a formação dos educadores e o programa escolar. Em suma, buscar temas geradores a partir da compreensão do que é verdadeiramente significativo para os educandos em suas dimensões analítica e vivencial, e trabalhar partindo desses temas seria trazer à tona contradições para poder superá-las, buscando novos conhecimentos não somente aos educandos, mas a todos os participantes do processo, em uma construção coletiva.
Pernambuco (1994) mostra que o maior fundamento da mudança no processo educativo é o diálogo, e não somente na relação entre educador e educando, mas também na gestão educacional. Desta forma, todos os envolvidos precisam ter autonomia e liberdade para trabalhar, conhecer, propor, sugerir, elaborar, avaliar, desencadear processos partilhados etc., articulando formação contínua com gestão democrática e participativa. Além disso, o grupo precisa de algum grau de autonomia, tanto financeira, para que as decisões coletivas possam ser efetivamente implantadas, quanto política, para que mudanças na gestão política não interfiram na continuidade dos processos e das ações iniciados pelo próprio grupo.
Por fim, dois aspectos recebem atenção especial ao longo da proposta de Pernambuco (1994): o compromisso com uma posição política e o compromisso com as relações afetivas presentes na relação educativa. Ao tratarmos anteriormente da obra de Paulo Freire, apresentamos formas de se lidar com estas duas questões, que estão ligadas de forma indissociável, mas com especial ênfase à segunda. Em relação à primeira, que é o compromisso político, Pernambuco lembra que assumir esta responsabilidade não é apenas emitir ideias políticas, mas agir de forma política, de forma a se conseguir atingir consequências na prática. No entanto, firmar posição política não deve travar a negociação, a transição, a mudança. Afinal, no diálogo político em que as relações afetivas positivas ganham relevo, estão presentes o “entusiasmo, o ‘elan’, o desafio, o apoio, ao lado da tolerância, da paciência, do respeito aos limites e às idiossincrasias alheias e institucionais” (p.145). É essa ação conjunta que cria espaços de solidariedade, e é neles que se podem firmar as relações de cooperação, superando as relações de subordinação.
O processo de criação dos cursos de formação inicial de professores em Física e em Química a distância na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) se iniciou por volta de 2003. Estes dois cursos são pioneiros na educação a distância brasileira: o curso de Física teria sido o terceiro a ser efetivamente implantado no Brasil, sucedendo apenas o curso do consórcio Cederj, de universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, e o curso da Universidade Federal de Santa Catarina; o curso de Química seria ainda mais inovador: o primeiro na modalidade a distância nesta área no Brasil. Na Universidade Federal do Tocantins (UFT), a criação dos cursos homólogos foi bem posterior, iniciando-se por volta de 2009. No processo da implantação de tais cursos, optou-se por adaptar os projetos pedagógicos e os materiais didáticos utilizados pela UFRN para a UFT. Não houve, contudo, um estudo prévio, nem mesmo uma discussão pedagógica, acerca da viabilidade desta ação, mas apenas uma decisão entre as coordenações de educação a distância das duas universidades.
Os cursos da UFRN, tais como estruturados à época, se baseavam no conceito de núcleo comum, ou seja, possuíam projetos e concepções pedagógicas comuns, com disciplinas e matrizes curriculares coincidentes pelo menos até o quarto semestre, ou seja, até a metade do curso, visando a fomentar a interdisciplinaridade e, também, a redução de custos com a racionalização de esforços. A definição de núcleo comum também visava a formar alunos com perfil compatível com o exigido de um professor que atua no interior, nas escolas de cidades pequenas, cuja maior necessidade é a de uma formação básica completa e sólida.
Esta preocupação com o campo de atuação do futuro professor também se mostra quando vemos que os cursos contemplavam conteúdos geralmente ausentes do currículo de ensino superior, por serem considerados já vistos de forma suficiente na educação básica. Ou seja, os projetos pedagógicos da UFRN reconheciam o fato de que a maioria dos egressos da educação básica brasileira ainda não têm domínio do conteúdo e, portanto, precisam conhecê-lo plenamente antes de atuar em sala de aula. Em consequência, também reconheciam a impertinência de conteúdos muito aprofundados, científicos, que não têm função pedagógica evidente na formação do licenciando, mas que persistem no currículo da formação de professores porque existem na formação do bacharel da área correspondente. Portanto, a prioridade dos projetos teria sido contextualizar os componentes curriculares à realidade dos professores da educação básica do interior nordestino.
Além da nítida inspiração e incorporação dos ideais freireanos, os projetos pedagógicos que orientaram a elaboração do material didático dos cursos previam a definição de um tema gerador. O diálogo foi estabelecido com a população, os educadores avaliaram os potenciais temas e, ao fim, optou-se pela seca nordestina como tema gerador dos materiais e da abordagem pedagógica. O objetivo de se eleger um tema gerado foi o de romper com o conceito implícito na matriz curricular tradicional dos cursos universitários, oferecendo um primeiro ciclo de conteúdos que integrassem teoria e prática. Embora a UFRN só tenha conseguido preservar unificadas as matrizes curriculares do primeiro semestre, devido a pressões conservadoras, foi possível examinar como a influência de referenciais freireanos atuou sobre os projetos de curso e sobre os materiais didáticos, de forma a podermos traçar um paralelo com os processos de construção e de adaptação dos projetos da UFRN ocorridos na UFT.
Pela leitura dos projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura em Química e em Física da UFT, percebe-se que seus elaboradores já identificavam a impossibilidade de se aplicar o tema gerador potiguar (ou seja, originário do Rio Grande do Norte) à realidade tocantinense. No mesmo documento, já havia uma sugestão de que o novo tema gerador poderia ter relação com os biomas característicos do Tocantins, e que ele seria tratado em um material didático complementar ao da UFRN.
Ainda analisando os projetos pedagógicos dos cursos tocantinenses, observamos que suas seções de diretrizes metodológicas são praticamente iguais às seções homólogas dos projetos da UFRN. A principal alteração é o tema gerador proposto, definido como sendo “biomas locais e energias alternativas”. Note-se, no entanto, que houve a definição de um tema gerador “de cima para baixo”, sem consulta à população, sem um levantamento apropriado sobre a pertinência do tema no contexto da realidade dos educandos. Em outras palavras, o tema foi definido pela exclusiva ação dos três educadores que assinaram os projetos de curso, uma vez que não houve discussão dos projetos e, em particular, dos temas geradores, para além do âmbito acadêmico. Com isto, foi perdida a motivação principal do uso do tema gerador, como defendia Paulo Freire: a busca de temas relevantes junto ao público educando.
O estudo da realidade para a qual o curso se destina deve ser, afinal, o ponto de partida da escolha de um tema gerador. Ele deve ser obtido a partir da problematização da prática cotidiana dos alunos e, a partir daí, é recriado e ressignificado por meio dos conhecimentos trazidos pela Ciência. No entanto, nos trechos dos projetos pedagógicos dos cursos da UFT em que se apresentam o conceito de tema gerador, há divergências. Enquanto o primeiro parágrafo afirma corretamente que o tema gerador precisa emergir da problemática dos educandos, nos demais parágrafos, observa-se um redirecionamento do foco a um interesse difuso (“cenário político, educacional e social”), à missão da própria universidade e, por fim, à mera existência do bioma local. Na única passagem em que se mencionam as “comunidades locais”, o documento manifesta a intenção de “atendê-las” com pesquisas, e não a de apresentar os conhecimentos dos educandos ressignificados pelo educador. É muito expressivo o contraste existente entre esta seção adaptada, criada pelos educadores da UFT, e a sua homóloga original, redigida no Rio Grande do Norte. O foco dos projetos pedagógicos originais é na população. É ela quem ganha voz na justificativa pela opção por referenciais freireanos.
Apesar de o tema gerador só ter se mantido nos materiais didáticos referentes ao primeiro semestre dos cursos de licenciatura aqui retratados, foi necessária uma adaptação dos mesmos, menor que a inicialmente prevista. Afinal, a seca nordestina não é tema que corresponda à realidade do Tocantins. Para realizar a nova redação dos materiais, foram designados os orientadores acadêmicos, que eram servidores contratados em caráter temporário pelo Ministério da Educação para atuar em polos de apoio presencial dos cursos. Tais profissionais atuaram em alguns estados do Norte e do Nordeste, incluindo o Tocantins. Por exigência do edital de sua seleção, todos tinham formação mínima de mestrado em Física (ou Química) ou em Ensino de Física (ou de Química).
A adaptação dos materiais à realidade tocantinense ocorreu ao longo do primeiro semestre de 2010. Esta fase não foi simples, pois muitos dos envolvidos, especialmente os gestores dos cursos, não eram da área pedagógica. Havia, até mesmo, gestores que sequer haviam ouvido falar de Paulo Freire até o início das discussões, ainda que a sua gestão fosse de um curso de formação de professores. Os orientadores acadêmicos partiram de alguns temas iniciais, baseados nas realidades que viviam nas cidades onde passaram a trabalhar. Avaliaram possíveis desdobramentos didáticos para cada tema e chegaram à conclusão de que eleger o cerrado como tema gerador seria o mais apropriado.
Entre as razões que justificaram a escolha estavam: a amplitude do tema cerrado e a sua inserção nas demais temáticas candidatas, o que facilitaria relacionar o tema eleito com os demais temas surgidos nas trocas de ideias; a homologia com a proposta didática potiguar, pois, embora esta última falasse de seca de maneira ampla, tinha especial apreço pela descrição do lugar em termos de fauna, flora, relevo, pluviosidade, entre outros aspectos, mais do que sobre a relação das pessoas com o lugar, o que criaria mais dificuldades na adaptação dos textos; o fato de que o cerrado ocupa quase 88% do território do estado do Tocantins (Nascimento, 2009), ao mesmo tempo em que exibe formas singulares nos ecótonos (áreas de transição ambiental), dependendo da região do estado: pântanos no sudoeste, florestas no norte, caatinga no sudeste. Ao fim, houve uma coincidência parcial entre o “tema gerador” proposto nos projetos pedagógicos, de biomas locais, com o que foi escolhido a partir de um estudo mais elaborado e fazendo uso efetivo dos referenciais freireanos.
A partir dessa decisão, os orientadores acadêmicos passaram a realizar as alterações. A alteração de alguns materiais ficou sob a responsabilidade dos orientadores acadêmicos de Física, enquanto a adaptação de outros ficou como incumbência dos orientadores de Química. Ao final, somente o material didático de uma disciplina foi extensivamente modificado e passou a contrastar significativamente com o material potiguar, pois passou a ter o cerrado em todas as suas lições. O referido material foi o de “Ciências da Natureza e Realidade”, reelaborado pelos orientadores acadêmicos de Química.
Consideramos ter sido bem-sucedida a busca por um tema gerador de relevância para a realidade do Tocantins. Os professores ministrantes das disciplinas relataram que os educandos viram importância em estudar o tema com que eles e seus futuros alunos convivem no cotidiano, na busca por plantas medicinais, na agropecuária ou na pesca, no estudo da fauna, da flora, do clima e de suas alterações, nas relações humanas com a natureza, na exploração econômica dos recursos do cerrado, entre muitas outras temáticas discutidas com interesse pelos alunos tanto nos encontros presenciais quanto nas atividades realizadas a distância.
O referencial freireano mostrou-se especialmente adequado para a educação a distância, à medida que enfatiza a abertura ao diálogo, normalmente difícil e reduzido em cursos que se baseiam, em geral, no estudo solitário. A abertura ao diálogo e a gestão participativa contribuem não somente nos processos administrativos e gerenciais, mas também tornam o curso mais democrático e mais coerente com o projeto pedagógico.
A falta de compreensão de muitos dos participantes quanto às ideias contidas nos projetos pedagógicos dos cursos do Rio Grande do Norte prejudicou, inicialmente, a implementação dos cursos tocantinenses de forma minimamente alinhada com o referencial que constava nos documentos oficiais. Contudo, ao longo do processo, observou-se lenta mudança de pensamento e de atitude nos próprios professores dos cursos no Tocantins, à medida que tiveram uma nova visão do projeto pedagógico do curso, e passaram a defendê-lo com mais ênfase do que inicialmente, especialmente durante a confecção do material didático complementar e depois, quando de sua aplicação. Passaram a ser discutidos temas educacionais com mais profundidade e solidez argumentativa em reuniões de colegiado de curso, a despeito de grande parte dos membros não serem pesquisadores da área de educação e de ensino de Ciências.
O sucesso na construção de um material baseado em referenciais freireanos, verificado pela qualidade do material e sua boa aceitação pelos educandos, sugere que universidades regionais podem, sim, propor a reelaboração de materiais didáticos, de forma a atender a suas particularidades e às demandas educacionais da população local. Não se trata, aqui, de dispensar repositórios de materiais já existentes, mas de criar ou adaptar materiais existentes à realidade local e às particularidades do projeto pedagógico. Além disso, esse intercâmbio de experiências e de produções pedagógicas, numa interação maior entre as universidades, é recomendável, mesmo a partir de contribuições bilaterais, como a promovida entre a UFRN e a UFT. São interações como estas que podem ampliar o alcance das boas práticas em educação a distância aplicada à formação de professores.
Por fim, concluímos que, ainda que de forma não linear e pouco articulada, os ideais freireanos de diálogo e de compreensão da realidade local para uma ação educativa mais efetiva que estavam presentes circunstancialmente nos projetos pedagógicos de curso do Tocantins acabaram influenciando positivamente, ainda que timidamente, ações como a confecção de materiais didáticos para os cursos, espalhando valores freireanos entre professores, tutores e alunos.
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1. Professor na Universidade de Brasília. Doutor em Ensino de Ciências pela Universidade de São Paulo. E-mail: perdigao@yahoo.com.br
2. Professora na Universidade de Brasília. Doutora em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo. E-mail: michellezampieri@yahoo.com.br