Vol. 38 (Nº 11) Año 2017. Pág. 23
Clarissa Flávia Santos ARAÚJO 1; Alyne Maria Sousa OLIVEIRA 2; Maria do Socorro Lira MONTEIRO 3
Recibido: 13/09/16 • Aprobado: 24/10/2016
2. Panorama do agronegócio brasileiro
3. O setor sucroenergético brasileiro
4. A Usina Comvap e as mudanças no campo piauiense
RESUMO: A expansão dos monocultivos de cana-de-açúcar, acentuado durante os anos 2000, sobretudo em função do aumento da demanda global por etanol, devido à busca por novas fontes de energias limpas e renováveis, tem reconfigurado as formas de apropriação territorial em diversas regiões brasileiras. Assim, o objetivo deste trabalho é discutir o processo de expansão do agronegócio sucroenergético nos municípios piauienses, a partir da instalação da Usina Comvap. Como recursos metodológicos, realizou-se pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas, com o fito de compreender o histórico de instalação da empresa e a dinâmica da mesma no contexto atual. Conclui-se que, a expansão do agronegócio interfere diretamente na existência da diversidade de sujeitos do campo, sendo necessário o estabelecimento de políticas públicas mais amplas de justiça social, como a reforma agrária. |
ABSTRACT: The expansion of monocultures of sugarcane, accentuated during the 2000 years, mainly due to the increase in global demand for ethanol due to the search for new sources of clean and renewable energy, has reconfigured forms of land ownership in different regions Brazilian. The objective of this paper is to discuss the process of expansion of sugar-energy agribusiness in Piaui municipalities, from the installation of the Comvap industry. As methodological resources, there was documentary research and semi-structured interviews, with the aim of understanding the history of the installation company and the dynamics of it in the current context. In conclusion, the expansion of agribusiness directly affects the existence of the diversity of subject field, requiring the establishment of broader public policy of social justice, such as agrarian reform. |
O setor agropecuário se configura como um setor importante da economia brasileira, sendo responsável pelos superávits na balança comercial, com a exportação de produtos primários. Nesse sentido, o governo brasileiro tem fortalecido o modelo de desenvolvimento representado pelo agronegócio, baseado na grande propriedade para a produção de commodities, na mecanização intensiva, na utilização de agrotóxicos e na produção para o mercado externo.
Nesse modelo, o meio rural é compreendido como espaço de produção, submetido aos interesses das grandes empresas nacionais e estrangeiras, o que implica em prejuízos à existência de territórios de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas e a diversidade de sujeitos do campo, que tem na terra e na mão de obra familiar a base de suas atividades produtivas.
Neste contexto, Santos (2002) alerta para a “modernização” do mundo rural e das relações entre campo e cidade, dominada pela racionalidade empresarial, cujas consequências principais são a alteração das estruturas sociais de poder e a apropriação dos espaços de vida, trabalho e produção das unidades camponesas.
Desde as duas últimas décadas, o agronegócio canavieiro no Brasil teve um novo surto de expansão, devido à busca por novas fontes de energias “limpas e renováveis” que possam substituir o petróleo; e ao desenvolvimento de motores flex-fuel, criados em 2003, os quais utilizam o álcool como combustível automotor. Nesse contexto, a cana-de-açúcar se consolida como solução para a crise energética e para os desafios ambientais expressos no aquecimento global (COSTA et al., 2014).
Deste modo, o Brasil se configura como o maior produtor dessa cultura e dos seus derivados, açúcar e etanol, sendo responsável por mais de 50% do açúcar comercializado no mundo (CONAB, 2014). Assim, a cadeia tem exigindo cada vez mais altos índices de produtividade, bem como a utilização intensiva de fertilizantes, adubos químicos e agrotóxicos, o que acarretado em maiores níveis de degradação ambiental.
A expansão dos monocultivos de cana de açúcar tem se acentuado em todo o país e reconfigurado as formas de apropriação territorial em diversas regiões brasileiras, o que implica em prejuízos à existência de territórios de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas e a diversidade de sujeitos do campo, que tem na terra e na mão de obra familiar a base de suas atividades produtivas.
Com base nesse panorama, o propósito deste trabalho é discutir o processo de expansão do agronegócio sucroenergético nos municípios piauienses, a partir da instalação da Usina Comvap – Açúcar e Álcool Ltda.
Como recursos metodológicos da pesquisa, realizou-se pesquisa documental em documentos sobre a instalação da Comvap e aplicou-se entrevistas semiestruturadas com ex-trabalhadores da Usina, com o fito de compreender o histórico de instalação e a situação atual da empresa
O presente trabalho está estruturado da seguinte forma: no primeiro item, seguido da introdução, apresenta-se discussões sobre o papel do agronegócio na economia brasileira, em seguida o panorama do setor sucroenergético no cenário nacional e, por fim, o texto traz a discussão da expansão do agronegócio sucroenergético no estado do Piauí, além da conclusão.
Segundo Delgado (2012), se observa no Brasil na última década uma acelerada expansão agrícola, devido as cadeias agroindustriais envolvidas com o comércio mundial de commodities, em função de um projeto de inserção primária no comércio exterior. Ressalta que, esse crescimento pressupõe a intensa utilização de agrotóxicos e a ampliação de áreas cultivadas do tipo monocultura, principalmente com as culturas, soja, milho e cana-de-açúcar.
O modelo desenvolvimentista brasileiro foi impulsionado pela Revolução Verde, que promoveu, por um lado, a modernização agrícola, através da elevação da produtividade agrícola, alicerçada em tecnologia de controle da natureza de base científico-industrial, com o objetivo de intensificar a oferta de alimentos, por meio da internalização de um pacote tecnológico – insumos químicos, sementes de laboratório, irrigação, mecanização e grandes extensões de terra – conjugado ao difusionismo tecnológico e a uma base ideológica de valorização do progresso (PEREIRA, 2012); por outro lado, provocou o desaparecimento de unidades familiares e a grande desigualdade social no campo.
Nos anos 1950, os norte-americanos John Davis e Ray Goldberg criaram o termo agribusiness, para expressar as relações econômicas (mercantis, financeiras e tecnológicas) entre o setor agropecuário e os situados na esfera industrial, comercial e de serviços. Em 1993, o termo agronegócio, que corresponde à noção de agribusiness, se materializou com a fundação da Associação Brasileira de Agribusiness, atualmente denominada de Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) (LEITE; MEDEIROS, 2012).
Para Sauer (2008), o agronegócio se refere, por um lado, a uma associação de diferentes etapas da produção, ou seja, a um processo de integração horizontal; e por outro lado, foi apropriado por determinado segmento no Brasil para designar tecnificação e escala na agropecuária, que gera aumento de produção e produtividade. Portanto, há uma estreita relação entre a noção e a construção do termo agronegócio e a incorporação de tecnologia, através de grandes investimentos na aquisição e uso de tecnologia, na lógica da modernização, com a adoção do aparato tecnológico da Revolução Verde.
Nesse contexto, no território brasileiro tem ocorrido nos últimos anos um (re)florescimento de grandes empreendimentos empresariais, sustentado por processos políticos e econômicos que transcendem a esfera nacional, muitas vezes financiados por recursos públicos, permitindo taxas de crescimento significativas ao agronegócio (COSTA et al., 2014).
Segundo dados do Cepea-USP (2015), a renda do agronegócio estimada para 2015 é de R$ 1,212 trilhão; desse total, R$ 819,16 bilhões, ou 67,6%, resultam do ramo da agricultura e R$ 393,1 bilhões, ou 32,4%, da pecuária (a preços de 2015); assim, o Produto Interno Bruto (PIB) do Agronegócio, representa 23% do PIB do Brasil. Diante disso, conforme cálculos do Cepea, para financiar os investimentos do agronegócio seria necessário cerca de 95% do PIB da agropecuária, sendo que, para a safra 2014/2015, o governo federal alocou o equivalente a cerca de 50% desse montante (R$ 156,1 bilhões), e o complemento deriva de recursos próprios e de outras fontes não oficiais.
De acordo com o MDA (2014), para o Plano Safra da Agricultura Familiar 2014/2015 o governo federal liberou R$ 24,1 bilhões, portanto, um montante muito inferior aos recursos liberados para o agronegócio; assim, esses dados confirmam o fornecimento desigual de recursos e políticas públicas em favor do agronegócio e em detrimento da agricultura familiar/camponesa.
Diante desse panorama, observa-se que o agronegócio tem se caracterizado por uma crescente institucionalização, ampliação dos espaços de organização, e defesa de um discurso baseado na competitividade e na utilização de tecnologia como paradigma da modernidade e de desenvolvimento. Deste modo, o crescimento do PIB se torna mais importante que as bases que o sustentam, buscando continuamente o crescimento econômico, devido à necessidade estrutural do modo de produção capitalista por expansão e acumulação, através do aumento de produção de mercadorias agrícolas para garantir a apropriação da renda da terra no campo (LEITE; MEDEIROS, 2012).
Outra questão ligada ao discurso do agronegócio se constitui na dicotomia entre urbano e rural, sendo o primeiro sinônimo de progresso, moderno e desenvolvido, e o segundo classificado como atrasado, arcaico, e que precisa de incorporação de tecnologia, de tal modo, essa posição negligencia o conhecimento tradicional dos agricultores. Com o advento da modernidade, ocorre um enfraquecimento da tradição como mediadora das relações dos seres humanos com a natureza, havendo, portanto, a negação da tradição e dos modos de vida camponeses, sendo o conhecimento técnico cientifico responsável por mediar essa relação.
Destarte, o modelo do agronegócio passa a ser contraposto ao modelo defendido pelos camponeses, assentado na agroecologia, na valorização da agricultura camponesa e nos princípios da policultura, da preservação do meio ambiente e do controle dos agricultores sobre a produção de suas sementes (LEITE; MEDEIROS, 2012).
Deste modo, entende-se que o desenvolvimento agrícola não implica, necessariamente, em desenvolvimento rural; assim, “um meio rural dinâmico supõe a existência de uma população que faça dele um lugar de vida e de trabalho e não apenas um campo de investimento ou uma reserva de valor” (WANDERLEY, 2001, p.36). Assim, o modelo de modernização da agricultura brasileira, baseado em grandes extensões de terra, não modernizou as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores rurais. Pelo contrário, o processo de modernização resultou em: concentração fundiária, provocando uma intensificação de conflitos agrários; migração da população do campo para a cidade; aumento da concentração da pobreza nas periferias urbanas; desmatamento; degradação dos recursos hídricos e degradação dos solos, devido à utilização de maquinário pesado e agroquímicos, dentre outros.
Nesse sentido, o agronegócio associa-se cada vez mais ao desempenho econômico, do que ao seu próprio cerne, pois opera com processos não necessariamente modernos nos diferentes territórios em que avança a monocultura. Assim, a agricultura familiar/camponesa tem sido identificada pelo agronegócio como portadora de experiências arcaicas, num meio rural que se torna cada vez mais industrializado. Portanto, à medida que o agronegócio se impõe como símbolo da modernidade, é colocado como o solucionador dos problemas do campo e agente para o desenvolvimento do país.
Segundo Andrade (2007), a colonização do território brasileiro foi iniciada com a implantação e o desenvolvimento da cultura da cana-de-açúcar, voltada para a exportação. Ressalta que, esse produto era originário da Índia, mas expandiu-se pelas ilhas do Mediterrâneo, pelo sul da Península Ibérica e foi transferido pelos portugueses para as ilhas do Atlântico, sendo de grande aceitação no mercado europeu, por isso o interesse do rei de Portugal, o qual mandou trazer para o Brasil mudas de cana-de-açúcar e incentivou a instalação de engenhos de açúcar, que se tornou a base da Economia Colonial.
De acordo com Coelho (2001), até meados da década de 1970, a atuação do Estado centrou-se no açúcar, pois somente com o Decreto nº 19.717/1931, o governo iniciou o processo de intervenção com o álcool, que obrigava os importadores de gasolina a adquirirem álcool anidro na proporção de 5% do volume de gasolina internada. Destaca outrossim, que essas ações foram suficientes para enfrentar a crise do setor e em fins de 1931, o governo criou a Comissão de Defesa da Produção de Açúcar e em 1933 o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que até sua extinção, em 1990, foi o órgão formulador e executor da política açucareira do país.
A partir da década de 1970, a política agrícola nacional orientou-se para o setor externo, estimulada por uma política cambial agressiva, o que estimulou a transferência de recursos alocados na produção doméstica para investimento em produtos exportáveis, o que levou grandes produtores paulistas a se dedicarem a monocultura canavieira, fortemente amparada pelo Proálcool (SILVA; MARTINS, 2010).
O Programa Nacional do Álcool (PNA) ou Proálcool, lançado em 1975 pelo governo de Ernesto Geisel (1974 a 1979), se constituiu no principal projeto de industrialização da agricultura promovido pela Ditadura Militar, ao conceder créditos subsidiados ao setor sucroalcooleiro, para a mecanização e a industrialização do refino de cana-de-açúcar, com a finalidade de ampliar a produção de álcool. Esse programa incentivou a expansão dos monocultivos para a produção de agrocombustíveis, principalmente do etanol gerado a partir da cana-de-açúcar (MENDONÇA; PITTA; XAVIER, 2012).
Nos anos 1980, o Proálcool teve seu declínio em decorrência da queda do preço do petróleo, da alta do preço do açúcar no mercado internacional e da retirada dos financiamentos e subsídios por parte do governo (MICHELLON; SANTOS; RODRIGUES, 2008).
Desde as duas últimas décadas, o agronegócio canavieiro no Brasil teve um novo surto de expansão, devido à busca por novas fontes de energias “limpas e renováveis” que possam substituir o petróleo; e ao desenvolvimento de motores flex-fuel, criados em 2003, os quais utilizam o álcool como combustível automotor. Nesse contexto, a cana-de-açúcar se consolida como solução para a crise energética e para os desafios ambientais expressos no aquecimento global (COSTA et al, 2014).
Nesse sentido, o ciclo de crescimento da indústria canavieira durou de 2003 até a crise financeira de 2008. Neste período, as empresas contaram com créditos privados e principalmente, com empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entretanto, com a crise de 2008/2009 e com a diminuição do acesso a créditos, muitas usinas faliram, o que aprofundou o processo de aquisições e fusões com empresas multinacionais, refletindo uma queda da produção de cana-de-açúcar na safra 2011/2012 (MENDONÇA; PITTA; XAVIER, 2012).
Em relação ao desempenho mais recente das safras, conforme a CONAB (2014), a produção total de cana-de-açúcar na safra de 2013/2014 teve um acréscimo de 11,9% em relação à safra 2012/2013, equivalente a 588,9 milhões de toneladas. Já na safra 2014/2015 a produção total do país foi de 634,8 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, 3,7% menor que a produção da safra 2013/2014 (658,8 milhões de toneladas), apesar do aumento de 2,2% na área plantada (CONAB, 2015).
Segundo dados da CONAB (2014), a previsão da área cultivada com cana-de-açúcar para a safra de 2014/2015 é de aproximadamente 9 milhões de hectares e a produção de açúcar está estimada em 36,36 milhões de toneladas. A produção total de etanol para a safra 2014/2015 está estimada em 28,66 bilhões de litros e também está concentrada na Região Sudeste, com 59,84% do total produzido no país.
Deste modo, o Brasil se configura como o maior produtor da cultura, como também o maior produtor de açúcar e etanol de cana-de-açúcar, sendo responsável por mais de 50% do açúcar comercializado no mundo. Assim, esses dados confirmam a expansão da monocultura canavieira no país, exigindo cada vez mais altos índices de produção e produtividade, bem como a utilização intensiva de fertilizantes, adubos químicos e agrotóxicos, o que implica em maiores níveis de degradação ambiental.
Por conseguinte, em virtude desse panorama, a monocultura canavieira gera a redução de área de outros cultivos, como também desloca as populações rurais, e provoca desemprego devido à mecanização da colheita. Em termos de impactos ambientais, o uso intensivo do solo e de insumos químicos (agrotóxicos) tem ocasionado compactação, erosão e contaminação dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos.
Acrescenta-se a esses fatores, a queimada da cana-de-açúcar para a colheita, que provoca periodicamente impactos sobre a biodiversidade, comprometendo o desempenho dos ecossistemas e a estabilidade da paisagem, além da intensa geração de poluição atmosférica, que afeta a saúde dos trabalhadores e da população residente nas áreas rurais e urbanas mais próximas (SILVA; MARTINS, 2010).
A Usina COMVAP se instalou em 1979, no município de União-PI, como uma empresa de produção de álcool, implantada no âmbito do Proálcool. O governo do Estado apoiou amplamente as iniciativas da empresa, através da construção de estradas vicinais para facilitar o escoamento da produção e da ampliação da rede elétrica (ALMEIDA; GONÇALVES, 1991).
Segundo os referidos autores, com a instalação muitos trabalhadores foram expulsos de suas terras, provocando a migração para outras localidades, regiões e periferias urbanas; ou ainda, tiveram que se subordinar às novas regras impostas pela empresa. Entre 1979 e 1986 cerca de 800 famílias foram expulsas das regiões Melancias, Centro do Sítio, localizadas no município de União; São Domingos, Havre de Graça e Três Irmãos, município de Teresina; e Meruoca, município de José de Freitas, sem indenização ou outros direitos, inclusive as moradias, roças e quintais foram destruídos e substituídos por plantio de cana-de-açúcar. Acrescentam que, antes da instalação da Comvap, essas regiões eram bastante habitadas e a população vivia do cultivo de produtos agrícolas, como arroz (Oriza sativa), milho (Zea mays), feijão (Vigna unguiculata) e mandioca (Manihot esculenta) para subsistência, da criação de aves e caprinos, e da pesca, pois as regiões encontram-se próximas ao rio Parnaíba.
Os trabalhadores que trabalhavam na Comvap eram submetidos a precárias condições de trabalho, longas jornadas de trabalho e baixa remuneração, como relata um assentado, ex-funcionário da Comvap, “[...] naquela época era escravidão. Além do emprego de mão de obra infantil, a empresa também foi responsável por vários acidentes de trabalho, sendo que no ano de 1991 ocorreu um de maior proporção, quando “[...] um caminhão da COMVAP – próprio para o transporte de cana – que conduzia cerca de 70 trabalhadores, chocou-se com outro caminhão da mesma Empresa resultando em 10 mortos, 15 pessoas multiladas e 46 feridas gravemente” (ALMEIDA; GONÇALVES, 1991, p. 7).
Alicerçado nesse panorama, reconhece-se que, inseridos em um contexto marcado pela vulnerabilidade, dificuldade de acesso a terra e poucas opções de emprego, muitos trabalhadores tiveram que se subordinar às regras da Comvap, mediante as estratégias de assalariamento, buscando trabalho e renda, com vistas à satisfação das necessidades e reprodução do grupo familiar, transformando-se em mão de obra barata para a empresa. Dessa maneira, algumas famílias passaram a arrendar terras de outros proprietários para continuar a realizar a prática da agricultura e da pecuária.
Portanto, a implantação da Comvap provocou a expropriação de populações rurais, perda de autonomia, liberdade e controle sobre o espaço, tempo, território e processo produtivo, mediante estratégias de assalariamento, com consequente destruição de modos de vida, que passam a ser ditados pela vida moderna, voltada para rotinas desumanas, produção e usufruto de bens e serviços em turnos estabelecidos pelo processo produtivo do grande capital agroindustrial.
Nessa perspectiva, o modelo de desenvolvimento agrícola implementado nos municípios de União, José de Freitas e Teresina, sobretudo, a partir da década de 1980, com a instituição do Proálcool, apresenta-se como exemplo latente das transformações ocorridas no campo piauiense com o processo de modernização da agricultura, pois ao mesmo tempo que comporta uma agricultura moderna, produziu graves problemas sociais.
Todavia, em 2002, o Grupo Olho D´água, de Recife-PE, adquiriu a Usina Comvap mudando completamente o perfil de atuação da empresa, particularmente, no que diz respeito à regularização do trabalho, aumento da área de plantio de cana, incremento de produção e produtividade, e aquisição de matéria-prima de fornecedores.
De acordo com a COMVAP (2013), em dezembro de 2002 (ano de compra), o total de cana moída era 284.180 toneladas, sendo 275.926 e 8.254 toneladas de cana própria e de fornecedores, respectivamente, as quais eram destinadas somente para a produção de álcool, cujo total foi de 22.832 litros. Em função desse cenário, em 2003, a empresa apresentou projetos ao governo do Estado para ampliação da destilaria e implantação da Usina de Açúcar, por meio dos Decretos nº 11.063/2003 e nº 11.156/2003.
Na fase de instalação, a área ocupada com o plantio de cana-de-açúcar pela Comvap era de mais de 6.500 mil hectares de terras e se estendia pelos municípios de União, José de Freitas e Teresina (ALMEIDA; GONÇALVES, 1991). Todavia, atualmente, a Usina possui mais de 12.000 ha de cana plantada, nos municípios de União (maior concentração de monocultivos), José de Freitas, Teresina, e mais recentemente, em Caxias e Timon, ambos municípios do estado do Maranhão.
Com base na entrevista realizada com os funcionários da Usina, no período de entressafra a Comvap emprega em torno de 1.260 trabalhadores e no período de safra cerca de 2.360 trabalhadores, sendo 1.100 trabalhadores temporários contratados, em virtude da colheita e moagem de cana-de-açúcar.
Referente à quantidade de cana-de-açúcar destinada à produção da Comvap, segundo dados da Comvap, em 2014 a Usina atingiu um total de 948.653,94 toneladas cana-de-açúcar processada, sendo de 772.447,14 toneladas (81,4%) de cana própria, e os 50 fornecedores da região chegaram a fornecer 176.206,80 toneladas, representando 18,6% da cana moída pela empresa. Acrescenta-se que, antes da colheita da cana todo o canavial é queimado, sendo parte da colheita realizada de forma manual e a outra mediante duas máquinas cortadeiras, no período de junho a dezembro.
No que concerne à produção da Comvap, o processamento de cana-de-açúcar é destinado para a fabricação de açúcar (1.241,493 sacos), que se configura no produto de maior expressão na empresa; para produção de álcool hidratado (530,337 m3) e anidrido (31.976.589 m3). E o bagaço é utilizado para gerar energia, sendo o total em 2014 foi de 10.814,6 Megawatt-hora (MWh), para o funcionamento da indústria e irrigação, vendem, ainda, para a concessória de energia do estado, a Eletrobrás Distribuição Piauí. A empresa atua, principalmente, no mercado interno do estado do Piauí, mas, também fornecem para os estados do Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Nesse sentido, a discussão da expansão da cultura canavieira no território piauiense relaciona-se com o processo de expansão do setor sucroenergético no Estado, considerando ser esta uma das forças hegemônicas da reorganização produtiva em uma região marcada pela presença da cana-de-açúcar.
O agronegócio se consolidou no Brasil como símbolo de modernidade e progresso, produtividade e competitividade, como solução para aumentar a oferta de alimentos e desenvolver os territórios, portanto, como solução para o desenvolvimento do país. Entretanto, o avanço do agronegócio demonstra o protagonismo do conflito e da contradição na expansão do capital no campo, modificando a configuração dos territórios rurais.
Nessa perspectiva, o modelo de desenvolvimento agrícola implementado nos municípios de União, José de Freitas e Teresina, principalmente a partir da década de 1980, com a instituição do Proálcool, apresenta-se como exemplo latente das transformações ocorridas no campo brasileiro com o processo de modernização da agricultura; pois, ao mesmo tempo que comporta uma agricultura moderna, produz graves problemas sociais e ambientais.
Portanto, a expansão deste modelo interfere diretamente na existência da diversidade de sujeitos do campo, como agricultores familiares, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, dentro outros, sendo necessário o estabelecimento de políticas públicas mais amplas de justiça social, como a reforma agrária. Ressalta-se que o acirramento da disputa entre o agronegócio e a agricultura familiar/camponesa pela legitimação e consolidação de modelos de desenvolvimento, portadores de orientações produtivas distintas, confere ao território papel fundamental na configuração das relações de poder, capazes de modificar o direcionamento das políticas públicas e da apropriação da renda da terra.
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1. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (MDMA) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Email: cla.flavia@hotmail.com
2. Professora do ensino básico, técnico e tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI). Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFPI. Email: alyne.maria@gmail.com
3. Professora Associada do Departamento de Ciências Econômicas da UFPI. Professora e orientadora no Programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFPI. Email: socorrolira@uol.com.br