Espacios. Vol. 37 (Nº 33) Año 2016. Pág. 7
Rodrigo KUYUMJIAN 1; Elizeu MARIA JUNIOR 2; José Mário Bispo SANT’ANNA 3; Ralf Luis de MOURA 4
Recibido: 02/07/16 • Aprobado: 25/08/2016
2. Contabilidade, atualização e competências
4. Discussão e análise dos resultados
5. Considerações finais e sugestões de pesquisas futuras
RESUMO: O cenário da contabilidade mundial atravessa sua maior modificação histórica: a convergência internacional de normas contábeis. Assim, a pesquisa teve como objetivo analisar percepções de alunos de Ciências Contábeis da UFES acerca da aderência entre a matriz curricular do curso e as competências exigidas pelo mercado de trabalho. Utilizou-se pesquisa de ordem qualitativa, com questionário semiestruturado, para se identificar confluências ou incongruências entre a formação acadêmica e demandas profissionais. O estudo, ao final, sugere construções coletivas, não somente na esfera da contabilidade, mas sim, entre as distintas áreas de formação superior e seus correspondentes setores do mercado profissional. |
ABSTRACT: The global accounting scenery undergoes through its most significant change in history: the international convergence of accounting standards. Thus, the research aimed to analyze the perceptions of Accounting Course students, at UFES, about the adhesion between the course curriculum and the skills required by the labor market. A qualitative research, guided by a semi-structured questionnaire, was used to identify confluences or inconsistencies between the academic contents and the professional demands. The study suggests collective constructions, not only in what concerns the accounting spheres, but also among the different areas of higher education and their corresponding sectors of the professional market. |
Estudos com foco na descrição e análise do processo de educação e formação de profissionais, com a finalidade de compará-los aos perfis demandados pelo mercado, vêm sendo desenvolvidos em distintas áreas. Borba, Silveira e Faggion (2005) discutem sobre a necessidade de uma reformulação do processo de ensino-aprendizagem de forma que cursos de graduação em administração tenham condições para se adaptar às requisições do mercado com maior rapidez e precisão. Já Souza et al. (2011), por exemplo, verificam a percepção dos egressos do curso de enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) quanto a sua atuação no mercado, tomando como referência o currículo proposto pelo curso. Os autores sugerem um acompanhamento contínuo por meio de avaliações e investigações que permitam aos gestores curriculares identificarem as exigências profissionais vigentes e em seguida realizarem os reajustes nas propostas curriculares.
No caso específico dos estudantes e profissionais contabilistas há que se destacar a existência de um conjunto de oportunidades diversificadas em sua área de mercado. A globalização e o caráter de país emergente faz com que novos conhecimentos sejam internalizados no setor contábil brasileiro. O setor passa, portanto por relevantes transformações, levando-se em consideração, sobretudo a convergência do modelo de contabilidade brasileiro aos padrões internacionais, o qual teve inicio em 2007. Neste ano, esta alteração ainda ostentava um caráter optativo somente às empresas brasileiras de capital aberto. Passou a ser obrigatório para estas mesmas empresas a partir de 2010, conforme legislação contábil federal. Tais mudanças, como destacam Santos e Cavalcante (2014), geraram impacto tanto nas práticas cotidianas como nos resultados diretos das empresas.
Nos últimos anos, há evidentes indícios do crescimento do mercado contábil no país. Conforme dados do CFC, o número de profissionais de Contabilidade no Brasil aumentou de 166.670, em 2004, para 317.288 contadores com registros ativos em 2014. Ou seja, quase dobrou. O número de profissionais com nível superior se elevou em aproximadamente 90% em 10 anos. Já o total de escritórios de contabilidade passou de 68.000, em 2004, para aproximadamente 80.000, em 2014, um crescimento de aproximadamente 40%. O estado do Espírito Santo, com 7.569 contadores e em torno 1.300 organizações contábeis registradas no CRC-ES, pode ser considerado um mercado ainda em crescimento, frente às demandas impostas pelas recentes modificações.
A Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) é a única universidade pública no estado. O curso de bacharelado em Ciências Contábeis teve seu início em 1970, contando com uma turma entrante de 50 alunos. Entre 1970 e 2007, foram efetuadas revisões e alterações na estrutura do curso e em sua matriz curricular. No entanto, desde 2007 não ocorrem novas modificações nesta matriz. A hipótese da presente pesquisa, aqui atestada, é a ocorrência de um distanciamento significativo entre os conteúdos ministrados na matriz curricular do Curso de Ciências Contábeis da UFES e as demandas do mercado profissional local, agravadas, sobretudo pela não atualização completa aos padrões internacionais contábeis, adotados no Brasil partir de 2007. Assim sendo, o estudo objetivou analisar as percepções de alunos de Ciências Contábeis da UFES acerca da aderência entre a matriz curricular do curso e as competências exigidas pelo mercado de trabalho. Espera-se que os resultados encontrados possam ser parte integrante de futuros debates dentro do contexto universitário, tanto em âmbito estadual quanto nacional. Tais resultados podem igualmente contribuir para o estreitamento de vínculos entre a academia e o universo profissional no país, não apenas na esfera da contabilidade, mas, também, em outras áreas do conhecimento, culminando na elevação dos padrões de qualidade dos estabelecimentos privados e públicos do país.
O trabalho, portanto, está divido da seguinte forma: no primeiro bloco, apresenta-se um panorama sobre “Contabilidade, Atualização e Competências”; no segundo bloco está descrita a Metodologia de Pesquisa; na sequência, demonstra-se a Discussão e Análise dos Resultados; por fim, discorre-se sobre as Considerações Finais e Sugestões de Pesquisas Futuras.
O profissional contabilista adquire relevância em um cenário onde ocorre rompimento de fronteiras transacionais. Ele pode atuar como autônomo, empregado em regime celetista do setor privado, concursado ou terceirizado pelo setor público, civil e militar, funcionário do Terceiro Setor, integrante de sociedades, diretor ou conselheiro de instituições ou mesmo quaisquer outras situações jurídicas chanceladas pela legislação nacional (FREZATTI, MARTINS, LEITE FILHO, 2006; LOUSADA, MARTINS, 2005). Conforme a Resolução n° 560/1983, o contabilista tem prerrogativa para exercer as seguintes funções:
(...) analista, assessor, assistente, auditor interno e externo, conselheiro, consultor, controlador de arrecadação, controller, educador, escritor ou articulista técnico, escriturador contábil ou fiscal, executor subordinado, fiscal de tributos, legislador, organizador, perito, pesquisador, planejador, professor ou conferencista, redator, revisor. (RESOLUÇÃO CFC, 560/83. Artigo 2°).
Todavia, para Frezatti, Martins e Leite Filho (2006), a amplitude de atuação, além dos avanços tecnológicos e da normatização legal sobre o exercício da profissão, deve fazer com que se elevem os níveis de preparação multidisciplinar graduada nos cursos de contabilidade. O mercado, por sua vez, tende a procurar profissionais que atendam minimamente estas demandas de competências, de modo que sejam mitigados os períodos e custos com treinamento e capacitações. Para os autores, o ensinamento sobre contabilidade deve adotar um modelo interativo, em que professores e alunos, respectivamente, atuem como membros de um processo maior de ensino e aprendizagem, onde aconteça de fato uma produção real acerca dos conhecimentos práticos sobre a contabilidade. Afirmam ainda que o ensino da contabilidade necessita sofrer atualizações periódicas, de modo que egressos sejam capazes de lidar com as renovações nas informações contábeis produzidas e demandadas, sobretudo frente às tecnologias inerentes desta profissão.
As instituições brasileiras possuem autonomia para desenvolver e determinar seus próprios currículos de graduação. Destaca-se, no entanto, que estas instituições necessitam atender as exigências preconizadas pela Resolução nº 10/2004 do CES/MEC – Câmara de Educação Superior do Ministério da Educação – a qual determina as diretrizes curriculares nacionais de graduação do Curso de Ciências Contábeis. Em paralelo, deve ocorrer o atendimento da Proposta Nacional de Conteúdo para o Curso de Graduação em Ciências Contábeis, de acordo com a Fundação Brasileira de Contabilidade (2009), divulgado pelo Conselho Federal de Contabilidade.
Tais procedimentos, em conjunto com a Lei 6.404/76, artigo 177, ratificam a necessidade do cumprimento às normas de contabilidade aceitas, levando-se em consideração o cenário internacional, além do processo de globalização. Desta forma, o currículo adotado pelas Instituições de Ensino Superior adquirem relevância considerável durante o período de formação dos futuros profissionais de contabilidade. Cavalcante et al. (2011) reforçam a importância de os cursos de graduação em Ciências Contábeis apresentarem currículos adaptáveis às eventuais mudanças, bem como de oferecerem condições aos alunos para prosseguirem nas áreas de ensino e pesquisa.
Segundo Araújo et al. (2015), outro fator que deve ser colocado em ênfase na estrutura do currículo dos cursos de graduação em Ciências Contábeis é a abordagem relacionada à tecnologia. O conteúdo deve ser adequado aos novos conhecimentos da Tecnologia da Informação (TI), adotados globalmente. Moreira (2005) destaca que o mercado apresenta evidências dos impactos da tecnologia sobre a gestão das empresas. Neste sentido, o autor entende que os profissionais mais buscados são aqueles que não somente produzem e controlam escriturações e relatórios, com débitos e créditos. Mas, sim, aqueles capazes de atender às novas e recorrentes exigências de gestão e geração de informações contábeis, por meio de competências e habilidades adquiridas frente aos sistemas utilizados nesta área de atuação.
A Resolução nº 10/2004 do CES/MEC exibe uma série de competências a serem trabalhadas junto aos alunos de graduação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do país. Observa-se, contudo, que no cenário norte-americano, como aponta Ott et al. (2011), a entidade American Institute of Certified Public Accountants (AICPA, 2010), por meio do Core Competency Framework, propõe um modelo de competências que devam ser desenvolvidas pelos profissionais em sua inserção no mercado de trabalho. Em primeira análise, este modelo não apresenta divergências relevantes quando comparado ao modelo brasileiro. No contexto da convergência aos padrões internacionais, o International Education Standard 3 (IFAC, 2010) também relaciona as habilidades necessárias ao profissional contábil (Ott et al., 2011). Abaixo, está apontada a relação adaptada de habilidades e competências apresentadas pela AICPA e IFAC, de acordo com Reis et al. (2014):
- American Institute of Certified Public Accountants (AICPA, 2010):
Competências funcionais: Corresponde às competências técnicas, capacidade de executar análise crítica, avaliar e fornecer dados, desenvolver, analisar e implementar sistemas de informação contábil e de controle gerencial.
- International Education Standard - IES 3 (IFAC, 2010):
Técnicas e Funcionais: Compreendem as habilidades gerais e específicas de contabilidade, assim como a matemática, estatística e conhecimento em tecnologia da informação.
Conhecimentos: São as habilidades relacionadas aos conhecimentos específicos da contabilidade, como finanças e áreas afins, acerca dos negócios e das organizações e sobre a tecnologia da informação.
Como já mencionado anteriormente, instituições de ensino desfrutam de autonomia para estabelecer o currículo de seus cursos, desde que estejam em conformidade com a Resolução nº 10/2004 do CES/MEC. No entanto, o que pode ser observado é que mesmo perante as incessantes demandas do mercado de trabalho, pautadas por fatores como a concorrência e redução de custos, as alterações no currículo do curso de determinadas IES brasileiras não sofreram alterações. Cavalcante et al. (2011) mostrou em sua pesquisa um elevado nível de inadequação entre a proposta de currículo global da UNCTAD [5] e as vinte e sete IES pesquisadas.
De acordo com Oliveira, Maçada e Oliveira (2014), outro fator relevante a ser considerado na elaboração de currículos de cursos de ciências contábeis são os aspectos relacionados à tecnologia da informação. Todo processo de geração de informação pelos profissionais da contabilidade passa por sistemas informatizados e redes de controle de informação. Desde a utilização de ERP's (Enterprise Resource Planning) – sistemas integrados de informação – a programas públicos de prestação de informações aos diversos órgãos estatais, o profissional contabilista necessita conhecer para além da geração de informações verídicas e em tempo hábil. Utilizar softwares e plataformas informatizadas é condição sine qua non em seu trabalho cotidiano. Da abertura de um MEI (microempreendedor individual), forma mais simples de constituição de uma pessoa jurídica, à contabilização de empresas com consistentes e complexos investimentos no exterior, o profissional contabilista necessita ter competência teórica e conhecimento prático dos recursos tecnológicos necessários, durante a execução de suas tarefas. Os autores destacam em sua pesquisa que os recursos tecnológicos disponíveis em uma empresa, associados às habilidades e competências dos profissionais que utilizam tais ferramentas, podem impactar na imagem e até mesmo no desempenho da instituição. Estas informações corroboram com a relevância da estruturação de currículos dos cursos de contabilidade, no sentido de inserirem suas matrizes disciplinas ou conteúdos relacionados ao uso de sistemas informatizados atualizados.
Desta forma, como destaca Mulatinho (2007), há que se considerar certos aspectos específicos na formação de um profissional contabilista. São eles: a suficiência (termo utilizado para avaliar conhecimento teórico do concluinte dos cursos de contabilidade - estabelecido por lei federal), a flexibilidade curricular, alteração ou atualização curricular, educação continuada, carga horária prática e carga horária. Tais itens abrangem questões específicas como avaliação de conhecimentos, atualização do currículo por necessidade legal ou de mercado e a integração entre os conhecimentos específicos de contabilidade e áreas práticas de sistemas informatizados.
Isto posto, demonstra-se a seguir quais foram os caminhos percorridos e os procedimentos metodológicos utilizados pelos pesquisadores para a construção empírica deste presente estudo.
Não há uma delimitação ou mecanismo único para a construção de uma pesquisa qualitativa. Ela pode ser composta por um amplo leque de métodos, os quais percorrem muitas vezes caminhos distintos rumo à obtenção dos resultados. Caminhos estes que são moldados por perspectivas teóricas e ontológicas, a exemplo da sociologia, antropologia, economia, entre outras (DUNDON, T; RYAN, 2010). A pesquisa qualitativa intenta identificar conexões a partir da realidade na qual contextos ou sujeitos alvo da investigação encontram-se imersos. Neste sentido, há uma carga de subjetividade presente na condução da coleta, uma vez que as percepções e sensibilidades ao tema são, comumente, pautadas pelas próprias construções de vida dos pesquisadores (SILVERMAN, 2006).
Dentre as distintas formas de se coletar as informações necessárias ao estudo de pesquisa, Dundon e Ryan (2010) destacam as entrevistas desestruturadas, semiestruturadas e/ou entrevistas com questões fechadas. No caso do presente estudo, a coleta ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas. Ou seja, um roteiro de questões abertas e fechadas não previamente codificadas, onde o entrevistado dispôs de certa liberdade para discorrer a respeito dos assuntos abordados. Neste formato, inesperadas indagações dos pesquisadores puderam surgir mediante as respostas que foram concedidas durante os diálogos. Assim, o escopo de perguntas antecipadamente estabelecidas permitiram uma margem de flexibilidade ao respondente, o qual pôde transitar por cenários que lhe são peculiares ou específicos.
Quanto ao processo de escolha dos entrevistados, no intuito se compreender com profundidade o cenário vigente e avançar em direção ao objetivo de pesquisa aqui proposto, foram identificados oito respondentes, os quais são egressos do Curso de Contabilidade da UFES que concluíram há no máximo um ano e estão no mercado de trabalho pelo mesmo tempo ou alunos que já integralizaram pelo menos metade do curso e estão inseridos no mercado de trabalho há também pelo menos um ano. A escolha se deu, justamente, em virtude deste conjunto de sujeitos pesquisados ter vivência recente nas duas áreas de interesse deste estudo: a academia e o ingresso no mercado profissional. As entrevistas aconteceram praticamente em sua totalidade no período noturno, entre os dias 08 e 28 de outubro de 2015. Todas elas tiveram tempo mínimo de duração de trinta minutos.
O tratamento e análise dos dados ocorreram após a transcrição de todas as entrevistas. Dentre um vasto conjunto de possibilidades de interpretações do que se foi coletado, adotou-se a técnica da repetição, como sugerem, por exemplo, Ryan e Bernard (2003). Técnica esta de leitura efetuada “linha a linha”, pelos próprios pesquisadores. Ou seja, um trabalho de avaliação humana, diferentemente, da contagem de “repetição de palavras”, a qual é comumente efetuada por softwares específicos (RYAN e BERNARD, 2003). Os autores acreditam que a técnica aqui adotada seja um dos meios mais fáceis para se conseguir identificar temas. Para Bodgan e Taylor (1975) os temas considerados óbvios acabam por emergir ao longo das explanações dos entrevistados por meio da recorrência em suas falas. É como se, ao ouvir longas considerações dos respondentes, pudesse perceber que as mesmas ideias são “circuladas” naturalmente por aqueles que falam, até mesmo em suas entonações de vozes e expressões corporais.
Os dados foram, então, lançados em documento “Word” sob a forma de texto, onde os pesquisadores, após compreensão das transcrições, efetuaram anotações e atribuíram destaques às “falas” dos respondentes. Deste ponto em diante, a partir do entendimento da literatura compilada e estudada, realizou-se o cruzamento de ambos. Ou seja, o processo de decodificação e análise deste conjunto de informações se deu por meio empírico, resultando, assim, nos temas ou classes que agruparam elementos análogos entre si (BARDIN, 1977). Temas estes que estão detalhados no bloco a seguir.
A sociedade brasileira busca meios mais adequados, às suas peculiares realidades, para se compreender as conduções dos processos educacionais nos três âmbitos do ensino formal, em especial o terceiro grau. As faculdades e universidades representam expectativas reais de uma parcela da população, a qual aguarda benefícios e retornos sociais, sobretudo aquelas instituições públicas, depositárias de recursos advindos de tributos arrecadados pelo Estado (LOUSADA, MARTINS, 2005). Logo, espera-se um direcionamento eficaz dos setores responsáveis quanto às suas delimitações e, sobretudo, potencialidades capazes de interceder nos patamares de desenvolvimento de uma localidade.
Neste sentido, apresenta-se a análise dos resultados a partir das falas dos entrevistados, os quais transitaram e/ou transitam pelos dois cenários aqui em destaque: universidade e setor privado. Dois relevantes temas ganharam centralidade nas colocações dos respondentes:
Em alguns pontos, os temas acabam por se sobrepor. De qualquer forma, coube aqui posicionar, de modo individual, questões relevantes observadas nas percepções do grupo respondente.
Pires, Ott and Damacena (2010) destacam a importância de se pensar o processo de formação do contabilista com a composição de uma grade curricular que leve em consideração o ambiente de trabalho que este sujeito irá encontrar em sua vida profissional. Para eles, empresas anseiam que o período de formação universitária seja capaz de contemplar questões normativas da carreira, com margens mínimas de confiabilidade no que diz respeito a realidades vigentes do mercado.
Em termos gerais, o que se pôde compreender das percepções dos entrevistados é o fato de que o curso de Ciências Contábeis da UFES apresenta uma relevante distância entre o que se aprende em sala de aula e aquilo que se pratica no mercado. Naturalmente, não é possível inferir que isto ocorre em sua plenitude. Todavia, houve explícita recorrência nos posicionamentos dos respondentes ao discorrer a respeito do impacto sofrido durante o ingresso em ambientes profissionais de trabalho.
(...) você não aprofunda em nada, você sai daqui e não consegue fazer um cálculo de substituição tributária, você não consegue. Muito difícil, viu? A gente aprende de forma muito teórica, a gente não vê de forma tão prática como que vai ser a aplicação, a gente vê o teórico e o básico, agora, a coisa mais prática, a situação que a gente enfrenta no dia a dia, raramente a gente vê a situação semelhante dentro da faculdade. (...) Você não consegue fazer uma folha de pagamento. Eu te falo porque eu já tive experiência no Departamento Pessoal, entendeu? Mas, se a pessoa não tiver visto, não faz. Igual, uma rescisão, eu sei fazer, entendeu? Por exemplo, mas, porque eu já vi, já busquei saber como é que faz o cálculo, não aqui dentro da faculdade (RESPONDENTE 2).
Espera que, de fato, a universidade apresente embasamento teórico que dê sustentação aos alunos, ao longo de suas etapas futuras, quando estiverem distantes da academia, uma vez que a instituição é ainda considerada, por muitos, como o “templo do saber”. A articulação entre conteúdos teóricos e realidades práticas aplicadas não é tarefa simplista. Entretanto, não se pode categorizá-las, apesar das distintas naturezas, como elementos antagônicos, sem pontos de intersecção (MOREIRA; VIEIRA; SILVA, 2015).
(...) eu vou até citar um exemplo que aconteceu há pouco tempo com a gente, que foi uma menina que começou comigo (...) ela falou: “meu pai pediu pra eu fazer o Imposto de Renda dele e eu não sei, não sei nem por onde começa. Ele me indagou, você faz contabilidade e não sabe fazer um IR?” (...) ela está no mesmo período que eu, o sexto, (...) aí eu falei “É! Eu também nem imagino como seja o sistema” (...) eu vou ter que fazer um curso, porque mesmo que a gente tenha capacidade teórica, a gente tem insegurança de ir lá baixar o programa no site da receita federal e meter as caras de fazer sozinha (...) coisa que a gente vê no mercado e as pessoas cobram a gente por estar fazendo o curso de contabilidade e a gente não vê muito. Vai chegar o oitavo período e a gente não vai ver a plataforma SPED, plataforma e-SOCIAL, IR (...) (RESPONDENTE 3).
O que se nota, conforme apontado acima, é certo inconformismo de quem está passando ou já passou pelas cadeiras do curso de Ciências Contábeis e vive atualmente realidades discrepantes daquilo que se viu ao longo do período de graduação. Obviamente, é de se esperar que no caso de pessoas sem experiências profissionais ocorram processos de insegurança e acúmulo de dúvidas. Todavia, cabe aqui assinalar que ao enfrentar dificuldades de execução desta ou daquela atividade profissional, a maior parte dos entrevistados afirma recorrer a colegas de trabalho ou a conteúdos disponíveis na internet. As bases curriculares estudadas ao longo do curso, juntamente com os docentes das disciplinas, aparentam não ser sempre a fonte de informação preferida dos alunos ou egressos para a mitigação de questionamentos ainda latentes.
(...) eu precisei de uma assessoria para o Departamento Pessoal, eu já tinha saído da parte contábil e estava mais na parte fiscal e eu estava fazendo deduções de RPA. E aí meu patrão perguntou algumas coisas que eu não sabia. Tentei entrar em contato com meu professor (...) sem êxito. Ele não me respondia email, entendeu? Eu não conseguia falar com ele. Tentei por outros meios (...) desisti de professores. Nem um “não posso te ajudar” ele não respondeu. Aí, fui pra outras fontes de pesquisa, pesquisava na internet e não achava fontes seguras. O material da graduação Não ajudou, porque a gente não trabalha com RPA. Quando a gente estuda, a gente estuda folha normal, uma folha de uma empresa, a graduação lá da UFES eu acho muito bom, porém a gente não vê muito a realidade. O que a gente vê muito dentro de um escritório de contabilidade? Empresas pequenas, empresas limitadas, e aqui (na universidade) a gente vê muito S/A, empresa de capital aberto (RESPONDENTE 3).
Como se pôde observar, a partir do aspecto das estratégias adotadas pelos alunos ou egressos para a resolução de dúvidas recorrentes no momento de ingresso ao mercado profissional, identificou-se, de forma complementar outra questão a qual estava relacionada à matriz curricular do Curso de Ciências Contábeis da UFES. Os respondentes queixaram-se do fato dos conteúdos estudados corresponderem majoritariamente a realidades muito distantes do cenário capixaba. Os modelos, exemplos e atividades exploradas ao longo do curso dizem respeito a companhias de capital aberto – sociedades anônimas, ao passo que o contexto local pauta-se, sobretudo, por empresas de pequeno e médio porte.
A realidade do escritório são empresas pequenas. Sei o que aqui dentro (da UFES)? Sei S/A, sei mercado aberto. Agora, por exemplo, “eu posso abrir MEI? sou marceneiro e quero trabalhar”. Não sei. Tem que pesquisar, é a minha realidade (...) primeiro cliente que batesse na minha porta pra abrir empresa, eu diria: “Qual empresa? É de capital aberto? Não? Então não sei te atender”. Uai, vou falar a verdade, é única coisa que a gente vê aqui, “A empresa é grande? Qual o capital? Te dou doze mil reais. Não sei atender, não, desculpa”. A gente só fala em capital de milhões, eu sei o que é milhões e milhões e milhões (...) aqui a realidade é... abriu a empresa na portinha de casa, abriu um MEIzinho lá e fica sambando pra faturar pouco pra não sair. (RESPONDENTE 3).
Aqui (na UFES) eu acho que aborda mais esse mercado de grandes empresas, S/A. Os nossos clientes são tudo micro e pequena empresa e média empresas. E aqui eu não vi isso, nada, só vou falar um pouco que vi do “Simples Nacional” um dia, em legislação tributaria. Levando em consideração o mercado que nós temos aqui em Vitória (...) não tem nenhuma matéria de PME, nenhuma optativa, pra gente selecionar se quer fazer e tal, só essa coisa mais de mercado grande. Acrescentaria uma disciplina que abordasse essas empresas menores né? Talvez uma disciplina só pudesse abordar o aspecto tributário, aspecto contábil das empresas, ou sendo optativa, ou ate mesmo obrigatória (RESPONDENTE 5).
Os aspectos relacionados à tecnologia fizeram-se igualmente presente neste estudo empírico. De acordo com (OLIVEIRA NETO; MARINO JUNIOR; MORAIS, 2001), em virtude das frequentes mudanças nas práticas do mercado contábil, em especial pelo intenso processo de informatização da área, considera-se emergencial a reestruturação das grades curriculares no país. A sugestão dos autores é que se consiga aprender com o os profissionais do setor quais são os conteúdos devidos e necessários que devem, de forma imprescindível, fazer parte desta realidade acadêmica. Não houve entre os respondentes aqueles que não se manifestassem favoravelmente à inserção de disciplina relacionada à Tecnologia da Informação, enquanto conteúdos essenciais para o processo de formação dos alunos. Muitos deles desferiram críticas à reduzida atenção atribuída à temática.
(...) até levei uma vez isso para o professor do departamento, para ver qual era a dificuldade de trazer uma ERP pra dentro da UFES, porque hoje a gente não faz mais a contabilidade antiga que era feita na mão (...) por exemplo, a vivência de uma ERP dentro da universidade, como é feita em outras universidades fora daqui, e até mesmo nas faculdades aqui no Espírito Santo... a FAESA tem um convênio com a ERP chamada Alterdata, hoje os alunos dentro da FAESA de contabilidade, eles veem os lançamentos, veem as demonstrações contábeis, todas dentro da ERP, ou seja, os caras saem da faculdade já tendo essa vivência, que já é um ganho pra eles. Aqui na universidade, não, se ele nunca entrou em um escritório, dentro de uma empresa, ele pode fazer o curso dele inteirinho, quatro anos e lá fora ele não sabe, nem como ligar, como abrir um programa ERP, como gerar um relatório (...) (RESPONDENTE 1).
(...) eu acho o professor muito teórico. Assim, uma coisa que eu não sei porque não tem que é a gente ter aulas de informática utilizando e vendo o sistema antes de sair de universidade, eu acho interessante a gente ver, fazer, saber o que está por trás do sistema. A gente sair sem nem ter visto como é que mexe no sistema, eu acho ruim. (RESPONDENTE 7).
E, justamente a partir dos recorrentes apontamentos dos entrevistados quanto ao tempo insuficiente direcionado aos mecanismos de TI, relacionado ao setor contábil, desdobraram-se diálogos referentes a possíveis modificações que os alunos ou egressos do curso efetuariam caso compusessem a equipe responsável pela grade curricular da graduação em Ciências Contábeis na UFES. Houve aqui, novamente, uma unanimidade no que diz respeito às disciplinas da área de Humanidades, a exemplo de Sociologia Geral, Filosofia/Ética e Psicologia, todas elas com cargas horárias de sessenta horas. Os entrevistados, em termos gerais, consideram excessiva ou até mesmo desnecessária a duração atribuída a elas. Aproveitaram para enfatizar que conteúdos, os quais consideram indispensáveis, a exemplo dos próprios sistemas de tecnologia da informação, deveriam ocupar o espaço até então destinados às disciplinas de humanidades. Houve igualmente manifestações, neste mesmo sentido, em prol de Matemática Financeira, com carga horária de trinta horas, a qual consideram de suporte primordial às tarefas cotidianas do exercício da profissão.
(...) essa parte da Psicologia Social, no mercado de trabalho você não usa não, você pode pegar essa coisa aí pra sua vida, sua experiência, agora, para o mercado de trabalho, não. (RESPONDENTE 2).
Acho que dificilmente alguém vai lembrar o que viu nessas matérias, lá no primeiro período, acho que serve só para poder passar mesmo, ganhar ponto (RESPONDENTE 7).
A utilização prática de Filosofia e Ética, Sociologia e Psicologia, qual é? Eu não vejo nenhuma, não. Nem sei para que tem essas matérias. Tem uma matéria que a gente só teve trinta horas, como Matemática Financeira, eu a acho mais interessante do que filosofia, sociologia... (RESPONDENTE 8).
Além das observações e considerações sobre o evidente distanciamento entre parte do curso de Ciências Contábeis da UFES e o mercado contábil capixaba, faz-se necessário ainda apontar abaixo outro tema emergente na presente pesquisa, uma vez que, como sabido, não se trabalhou aqui com temáticas a priori.
O impacto da adoção das normas contábeis internacionais foi estudado por autores em perspectivas diferentes. Klann e Beuren (2015) verificam a influência do processo de convergência às novas normas contábeis no nível de suavização de resultados de empresas nacionais. Os autores apontam que a efetividade do processo de convergência, a fim de obter padrões mais elevados na qualidade da informação contábil, não depende unicamente da convergência das normas. Já Gonçalves et al (2014) investigam a relevância das informações contábeis de Lucro Líquido por Ação (LLPA) e Patrimônio Líquido por Ação (PLPA) das companhias não financeiras com ações mais negociadas na BM&FBOVESPA. Seus resultados evidenciaram uma ruptura estrutural entre os anos de 2009 e 2010, revelando, assim, alguns impactos ao longo do processo de convergência. Estas são duas menções dentre um conjunto de estudos que verificam, analisam e descrevem as consequências da adoção dos padrões internacionais de contabilidade pelo Brasil.
Com as mudanças no universo das Ciências Contábeis, sobretudo a partir de 2007, mediante o processo de convergência às normas internacionais (SANTOS; CAVALCANTE, 2014), seria plausível que as grades curriculares, que formam alunos ao mercado de trabalho, igualmente, passassem por transformações. Afinal, a cada ano, um novo contingente de egressos universitário adentra no contexto profissional, deparando-se com uma realidade diferente das bases defasadas do passado. Alguns entrevistados desta pesquisa demonstraram inquietude quanto a não atualização da matriz curricular do Curso de Ciências Contábeis, após quase uma década da padronização mundial.
(...) hoje nós já estamos dentro das novas normas, então, eu acredito individualmente, que essa matriz hoje deveria ter sido mudada, porque partir do momento que a gente está trabalhando com novas normas, isso já deveria ter sido inserido sem citar a matriz antiga. Isso é uma coisa interna, então, a partir desse momento, no mercado de trabalho, confunde o aluno. (RESPONDENTE 1).
(...) eu confesso que eu acho estranha essa matriz desde 2007. E quando eu vou olhar e entro lá no portal pra pegar a grade, já fiquei algumas vezes, assim, “Gente! 2007?”, achando que não é aquilo, que estava errado, que tinha alguma outra, mas não estava disponível. Fiquei um tempão quebrando a cabeça tentando achar. Aí, eu vi que não, que era realmente aquela lá de 2007. Velha, né? Oito anos. (RESPONDENTE 2).
Costa e Freitas (2014) lembram que a adoção das International Financial Reporting Standards (IFRS) já ocorreu em mais de 100 países e entendem que seja um dos episódios mais relevantes da história da contabilidade, até o momento. Muito possivelmente, levando isto em consideração, professores do Curso de Ciências Contábeis da UFES, mesmo com a matriz curricular defasada, acabam por trazer conteúdos deste novo formato às salas de aula. Os alunos e egressos, em sua maioria, acreditam que estes docentes os demonstram as atualizações por iniciativa própria, de modo que as turmas não finalizem seus períodos de formação sem conhecimento do que ocorre no contexto mundial da contabilidade.
“(...) por mais que a matriz seja de 2007, todos os professores, no momento que a gente entrou na universidade, já tiveram a preocupação com as convergências das normas para as normas internacionais, tiveram o cuidado de tentar mostrar, por mais que não fossem oficiais. Mas, deixavam claro que traziam por conta própria. Algumas pessoas até tinham medo, logo no começo, tinham medo de justamente não cumprir a carga horária, pelo fato de todas essas mudanças que eles tinham que fazer por conta própria. Não era um planejamento do corpo docente. Era simplesmente um planejamento individual do professor”. (RESPONDENTE 1).
(...) os professores, hoje, estão procurando apresentar as novidades para a gente, mesmo que a gente não tenha visto lá atrás. (RESPONDENTE 3).
(...) eles davam alguns exemplos comparando, ano passado fazia isso, mas esse ano é assim, todos eles faziam isso. (RESPONDENTE 6).
Após demonstrar os dois temas emergentes deste estudo de ordem qualitativa, cabe adentrar abaixo em algumas conclusões provisórias e sugestões de pesquisas futuras. A intenção aqui se constitui, de fato, no fortalecimento de esforços capazes de promover, em algum grau, modificações positivas que aproximem os arcabouços teóricos da academia às práticas aplicadas do mercado de trabalho.
A partir da hipótese aqui proposta, buscou-se investigar a possível ocorrência de um distanciamento entre os conteúdos ministrados na matriz curricular do Curso de Ciências Contábeis da UFES e as demandas do mercado profissional local. Neste sentido, mediante análise das percepções dos alunos ou recém-egressos desta graduação, foi possível encontrar fortes evidências de que há, em certos pontos, lacunas entre aquilo que lhes é oferecido ao longo do curso e o que, de fato, lhes é cobrado enquanto conhecimento prático no dia a dia de suas atividades profissionais.
Duas categorias a posteriori emergiram ao longo do processo de coleta e análise dos dados, respectivamente. Tanto a discrepância entre academia e mercado, representada de forma simbólica, pela “teoria vs prática”, quanto a defasagem da matriz curricular, frente à convergência internacional, foram aspectos que levantam preocupação ao cenário da contabilidade no estado. É importante, novamente, lembrar que a Universidade Federal do Espírito Santo é a única de natureza pública nesta unidade federativa. E é, obviamente, uma das principais responsáveis por formar profissionais que atuam e atuarão no setor contábil local.
Todavia, apesar da pesquisa identificar uma possível deficiência ou descompasso especificamente do Curso de Ciências Contábeis desta instituição perante a realidade vigente da contabilidade capixaba, emerge aqui uma relevante questão: os cursos universitários nacionais estão em sintonia com seus setores correspondentes de atuação profissional? O advento da tecnologia da informação ao longo das últimas duas décadas desencadeou fenômenos de transformação na sociedade contemporânea em grandezas difíceis de mensurar. Entretanto, a educação, em especial no terceiro grau, aparenta, por vezes, não desfrutar de dinamismo suficiente para acompanhar as efusivas mudanças características do século XXI.
Assim, estudos como este, intentam, não somente, provocar debates reais e consistentes dentro da esfera acadêmica, como convida representantes do mercado de trabalho a participar de forma ativa nesta discussão e, em particular, das reais modificações que os distintos setores da sociedade anseiam. Logo, ao invés de dar-se como concluído o processo investigativo a respeito deste curso universitário, a presente pesquisa sugere que sejam realizados estudos semelhantes em todas as áreas do ensino superior, no sentido de abrir espaços para reconstruções que façam aproximar a teoria dos livros – muitas vezes afastadas da realidade – às práticas aplicadas do mundo profissional, no país.
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