Espacios. Vol. 37 (Nº 17) Año 2016. Pág. 7

Caiapó do Sul: a história de um povo indígena de Goiás

South of Caiapo: the history of an indigenous people

Damiana Antonia COELHO 1; Poliene Soares dos Santos BICALHO 2

Recibido: 22/02/16 • Aprobado: 12/03/2016


Conteúdo

1. Introdução

2. A ocupação de Goiás e o extermínio de povos indígenas

3. Os Caiapó do Sul nos documentos e na literatura do colonizador

4. O processo de aldeamento dos Caiapó do Sul e sua extinção em Goiás

5. Considerações Finais

Referências


RESUMO:

A história dos povos indígenas, escrita pelo viés dos embates e resistências ao domínio do explorador, ainda está em construção. Desta forma, pensamos a questão indígena em Goiás no final do século XVIII e início do XIX, especificamente dos Caiapó do Sul. Por meio da revisão bibliográfica, pesquisa documental e da literatura propomos a compreensão e análise das representações sobre os caiapó do Sul, em um contexto marcado pela relação entre Estado, Igreja e Colonização, que desencadeou o processo de dizimação, extinção, guerra, aldeamento dos povos indígenas, alteração do ritmo e dos modos de vida.
Palavras-chave: Goiás. Povos indígenas. Caiapó do Sul. História.

ABSTRACT:

The indigenous' history, written by the bias of struggles and resistance to the explorer's domain, is still under construction. So, we think the indigenous issue in Goiás in the late eighteenth and early nineteenth centuries, specifically the South of Caiapo. Through literature review and document search we propose the understanding and analysis from the representations of the South of Caiapo in a context definite by the relationship between state, church and Colonization, which triggered decimation process, extinction, war, settlement of indigenous peoples, changing the time and ways of life.
Key Words: Goias. Indigenous people. South of Caiapo. History.

1. Introdução

O grupo Panara, denominado pelos colonizadores de Caiapó do Sul, bilreiros, Coroados, e pertence ao grupo linguístico Jê, ocupou uma extensa região do Sul da Capitania de Goiás até o processo de ocupação efetivado, com a mineração, que reconfigurou o território e, principalmente, as populações indígenas que viviam na região.

Os Caiapó são formados por vários grupos e se dividem em norte e sul, meridionais (Caiapó do Sul) e setentrionais (Caiapó do Norte). Os Caiapó do Sul são vistos pela historiografia do tempo do colonizador como "bravo", "feroz", "hostil" e, portanto, alvo de guerras, projetos de dizimação e violência. "[...] O Caiapó, índio que a historiografia do conquistador abomina, por sua alta capacidade de resistência e retaliação costumaz". (Bertran, 2000, p. 32).

Por outro lado, a historiografia mais recente, que trabalha sob a perspectiva do protagonismo indígena face ao processo de povoação e/ou invasão de seu território, compreende que os Caiapó do Sul reagiram ao processo por meio de ataques e retaliações à violência sofrida, ou seja, utilizaram as armas que tinham para dizer que não queriam, que não aceitavam, que não desejavam aquela imposição, aquela mudança abrupta e desequilibradora da ordem interna do grupo.     

2. A ocupação de Goiás e o extermínio de povos indígenas

O território de Goiás, desde o século XVI, já era conhecido, em decorrência das expedições exploratórias direcionadas ao interior e que partiam das Capitanias do litoral com a finalidade de encontrar riquezas naturais. Mas, com a significativa redução dos índios no litoral ocorrida nas primeiras décadas da colonização, essas expedições penetravam o interior em busca de mão de obra para as fazendas. Essas expedições, a princípio, não tinham o interesse de se fixar no território goiano, fato que se efetivou com a descoberta do ouro no início do século XVIII.

As populações indígenas de Goiás foram atingidas violentamente antes mesmo do processo de ocupação, pois, desde o século XVI, as entradas e bandeiras já percorriam o território e aprisionavam os índios. Com a descoberta do ouro, no início do século XVIII, eram expulsos das terras onde o metal era encontrado por meio de verdadeiras guerras. Com a crise da mineração, ainda no século XVIII, além das terras também a mão de obra do indígena passou a executar um papel de suma relevância no projeto de colonização.

Durante a mineração os indígenas eram vistos nos documentos oficiais como uma questão secundária, desde que não atrapalhassem as atividades com reação e retaliação a violência sofrida, nesses casos, a guerra era declarada. Essa ação dos bandeirantes paulistas, de adentrar o sertão em busca do ouro, mudar os cursos dos rios e travar guerras com a população indígena da região, foi denominada de "guerra de morte" (Souza e Silva, 1861, p. 526).

Como não poderia deixar de ser, naturalmente, os indígenas reagiram à violência empregada pelos bandeirantes. No caso acima citado, os Caiapó do Sul, que ocupavam uma área extensa do sul de Goiás, repeliam e atacavam as bandeiras. Essa reação ao processo de ocupação e dizimação levou esse grupo a ser caracterizado pela historiografia oficial como "tribu bravia, valorosa e interprida, conhecida também pelo nome de Coroados, dominavam os sertões de Camapuan" (Souza e Silva, 1861, p. 525)

No século XVII, o bandeirantismo concentrou-se em São Paulo, "o bandeirante, destemido desbravador dos sertões e cruel escravizador dos índios, passou a simbolizar importante vertente da história paulista colonial" (Palacín; Garcia; Amado, 1995, p. 17). Apesar dos pretextos para a organização dessas expedições, "a penetração dos sertões sempre girou em torno do mesmo motivo básico: a necessidade crônica da mão-de-obra indígena para tocar os empreendimentos agrícolas dos paulistas". (Monteiro,1994, p. 57)

Além dessas expedições paulistas, também se destacaram as ações dos jesuítas do Pará, que navegaram o Tocantins e chegaram a Goiás em busca de índios para as aldeias organizadas na Amazônia. "Mas nem bandeirantes, nem jesuítas vinham para fixar-se. Levavam os índios goianos para o sul e para o norte, traçavam roteiros para mostrar o caminho, mas não criavam povoações" (Palacín; Moraes, 2012, p. 19).

                     Antes da bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva (o Anhanguera pai) adentrar ao território goiano, outras pequenas bandeiras por aqui estiveram em busca do ouro e índios para escravizar (Ataídes, 2006). Bartolomeu Bueno (pai) chegou em Goiás por volta de 1682, mas apenas a partir de 1722 foi que Bartolomeu Bueno da Silva (filho) encontrou ouro na região que hoje se localiza a Cidade de Goiás, e ambos são denominados Anhanguera.

Atribui-se ao Bartolomeu (pai) erroneamente a ação de colocar fogo em cachaça ou álcool para enganar os índios, todavia essa prática era utilizada com frequência pelos portugueses no processo de colonização, inclusive por Bartolomeu (filho). "E mesmo que esses meios não tenham sido usados por Bartolomeu pai para enganar os índios Goyá, certamente era do cabedal de táticas enganosas conhecidas por Bartolomeu Bueno da Silva (filho)" (Barbosa. et. al. 2014, p. 213).  E assim, com a descoberta do ouro, ocorreu o processo de ocupação de Goiás no início do século XVIII.

Goiás apareceu no cenário econômico a partir da descoberta do ouro, nas primeiras décadas do século XVIII, como "Minas dos Goyazes". A mineração em Goiás teve uma duração efêmera, tendo iniciado por volta de 1726 e alcançado o seu auge na década de 1750. A exploração do ouro atraiu um enorme contingente populacional e deu origem a vários núcleos urbanos em torno das minas. O critério para o aparecimento dos arraiais era o ouro e a água.

Esse território percorrido e vasculhado já tinha uma população nativa que não foi respeitada nem sequer em sua denominação, como é o caso dos Panara, denominados pelo colonizador de Caiapó do Sul, Coroados ou bilreiros. Como consequência, muitos destes povos desapareceram ao longo do processo de colonização. Além de serem vulgarizados e generalizados pela literatura do colonizador, que denominava os diferentes grupos indígenas como "Tapuia".

Face ao invasor havia, no Planalto Central, essa raça indígena forte, aguerrida e, desde muito antigamente, senhora dos cerrados brasileiros: os grupo Jê, vulgarizados na literatura do Século XIX como os Ubirajara, os Timbira. Os famosos Tapuia, em contraposição ao Tupi do litoral. (Bertran, 2000, p. 32)

Os relatos e documentos também registram a resistência de povos indígenas no território e as estratégias administrativas para combatê-los e anular os empecilhos à colonização. Contudo, muitos arraiais foram abandonados devido aos frequentes ataques de grupos indígenas, como reação à violência empregada pelo colonizador.

O território de Goiás estava sob o domínio da Capitania de São Paulo, e em 1744 foi criada a Capitania de Goiás, contudo, o primeiro governador, D. Marcos de Noronha, chegou apenas em 1749, período em que a mineração já apresentava os primeiros sinais de crise. Atraídos pela euforia do ouro, tanto os mineradores quanto a administração colonial deixaram de lado o cultivo do solo. Fora necessária a crise da produção aurífera para que se dedicassem a agricultura e a pecuária e, assim, depreenderam que "a verdadeira vocação social e econômica do seu imenso território não era cavoucar a terra à procura do ouro incerto, mas nela plantar e criar para se produzir alimentos, nem que fosse para a subsistência das pessoas" (Barbosa. et. al. 2014, p. 217).

Durante o período da mineração "as relações entre índios e mineiros foram exclusivamente guerreiras e de mútuo extermínio" (Palacín e Moraes, 2012, p. 61). Assim, o processo de ocupação, por meio da mineração trouxe diversos impactos, tanto ambientais, como também para a população nativa que reagiu a ocupação de seu território e a violência empregada, cujas atrocidades levaram grupos inteiros ser dizimados, e muitos outros reduzidos a um pequeno número de indivíduos.

[...] Enquanto as autoridades paternalistas de Lisboa ou os governadores de Vila Boa de Goiás decretavam a cristianização e "civilização" para convencer os índios a se aldearem como filhos e vassalos, as milícias locais, bandeiras e colonos armados procuravam "desinfestar" a capitania daqueles que chamavam de "feras" e escravizar suas mulheres e filhos. Quaisquer que fossem as diretrizes de Lisboa, a busca de riquezas minerais, fazendas e escravos índios orientava a política indigenista em Goiás, levando a uma violenta resistência ou fuga dos atacados e escravizados. (Karasch, 1992, p. 397)

José de Almeida Vasconcelos Soveral de Carvalho, barão de Mossâmedes, foi nomeado pela Corte Portuguesa para governar Goiás em 1770, mas só chegou em Vila Boa em 1772. Escolhido diretamente pelo Marquês de Pombal assumiu o governo da capitania em um momento difícil, de crise da mineração, evasão da população local, resistência indígena. Neste contexto, José de Vasconcelos adotou a política do "tratamento brando" aos indígenas e "conseguiu este governador chamar à paz dos aldeamentos mais de oito mil índios, e foi tal a influência benéfica que sobre eles soube exercer, que muitos vieram espontaneamente à capital pedir para serem aldeados" (Alencastre, 1979, p. 215).

Ao assumir o governo, José de Vasconcelos adotou uma perspectiva da política indigenista mais recorrente no seu tempo, e também mais conveniente, com medidas voltadas à catequese e ao aldeamento. O objetivo das expedições organizadas no período era a tentativa de descobrir novas minas e também aldear os povos indígenas.

Tanto a política indigenista oficial de Portugal, quanto a extra-oficial que era aplicada em Goiás, são caracterizadas pela violência, alteração no ritmo de vida dos indígenas, escravização, ocupação de suas terras, imposição de costumes e crendices que, sob o discurso da proteção, levaram os colonizadores a cometer muitas atrocidades e o extermínio de diferentes grupos. No início do século XIX, calcula-se que o número de indígenas em Goiás em mais de 50 mil (Polh, 1976); enquanto "no Estado de Goiás restam, hoje, apenas os Avá-Canoeiro, os Tapuio e os Karajá" (Ataídes, 2006, p. 60).

Embora, a política oficial portuguesa fosse contrária à guerra aos índios aliados e recomendasse o tratamento "pacífico", com "doçura", "catequização" e "civilização", como justificativa de sua permanência na colônia, na prática, os colonos se utilizavam da guerra aos indígenas, porque há uma diferença entre as diretrizes e a relação estabelecida entre Estado, Igreja, colonizadores e povos indígenas.

3. Os Caiapó do Sul nos documentos e na literatura do colonizador

A historiografia do colonizador, que faz referência aos Caiapó do Sul, os destacam como um povo bravo, feroz, guerreiro, um impeditivo à ocupação do território de Goiás. Sofreram fortes combates da Administração Colonial e foram dizimados com o processo de ocupação. Os Caiapó do Sul resistiram ao mesmo por meio de ataques a barcos, comboios, lavouras; além de interromperem o tráfego nas estradas, atacarem os viajantes, as fazendas e também arraiais.

O discurso utilizado pelo colonizador para justificar as suas ações em detrimento das reações dos Caiapó do Sul, além de combatê-los, era o de povo inimigo, feroz, hostil. Tais reações consistiam na resistência desse povo ao processo de ocupação. Esse grupo indígena ocupava uma extensa área no sul de Goiás, parte de São Paulo e Mato Grosso. De início os conflitos não ocorreram, mas, com a intensificação das atividades mineradoras e a invasão do seu território, a reação dos Caiapó do Sul foi instantânea, assim como a declaração de guerra ao grupo. Os Caiapó do Sul e denominavam Panara ou Panaria, mas receberam dos portugueses "o nome de Coiapós ou Caiapós" (Saint-Hilaire, 1975, p. 66).

De acordo com (Monteiro, 1994), os Caiapó Meridionais, também denominados Caiapó do Sul, foram denominados de bilreiros na época, ocupava uma extensa área no noroeste da vila de São Paulo. A resistência desses ao processo de captura dificultava a ação das bandeiras no que diz respeito ao aprisionamento, marcado por conflitos e guerras. Os primeiros contatos, como sugere o autor, não foram conflituosos, mas a suposta paz durou pouco, logo os Caiapó do Sul tornaram-se os alvos do bandeirante devido a resistência à violência sofrida.

Os conflitos entre os bandeirantes e os Caiapó do Sul começaram a se intensificar a medida que a ocupação de seu território avançava. Foram vários conflitos que acabaram por desencadear a matança e o extermínio desse povo. O autor ainda relata a resistência dos Caiapó do Sul, as guerras empreendidas pelos bandeirantes, utiliza os termos "bandidos" e "assaltantes" para designar os invasores, e também registra as estratégias de reação utilizadas pelos indígenas diante da ocupação de seu território.

Reunidos que fossem esses bandidos e divididos em magotes, à frente dos quaes puzeram cabecilhas apropriados, para que por diversos pontos simultaneamente fosse investido o alojamento dos Cayapós, cujas avenidas já eram conhecidas, por estas começou o accommetimento: mas dessa vez não o levaram d'arranca pela forte resistência que encontraram da parte dos índios, que postos por detraz de desfiladeiros, ou naturaes ou levantados por eles, e atirando dali frechas, pedras e quanto lhes podia servir de projectil, e que na localidade lhes ministrava o furor da própria defesa, porque, não tomada esta, nisso se lhes ia a liberdade e a vida, puderam assim nulificar o primeiro ímpeto dos assaltantes, e arrojarem-se a estes, fazendo-os expelir dos pontos invadidos por cima de cadáveres de uma e outra parte. (Oliveira, 1861, p. 499)

Diante desse contexto, visualizamos a resistência dos Caiapó do Sul mediante ao ataque, estes se utilizavam de instrumentos como flechas e também de recursos naturais, como a própria vegetação, pedras etc. E, por que resistiam, foram denominados bárbaros, ferozes, "rebaixados à infâmia de assassinos canibais, por mais que a sua índole pacífica, sua vida concentrada e circunscrita a própria manutenção, e seu não provocamento à luta lhes devesse sugerir diversa qualificação" (Oliveira, 1861, p. 499). Nota-se que o autor analisa o modo como o colonizador caracteriza os Caiapó do Sul nos documentos, nos quais foram representados como inimigos, por isso deveriam ser combatidos.

As áreas em que os Caiapó do Sul se refugiaram se tornaram alvo dos exploradores do ouro, inclusive a estrada abertas à comunicação com São Paulo, conhecida como "caminho de Goiás, ou estrada do Anhanguera", Cuiabá e Minas Gerais, estavam em território pertencente a eles. Assaltavam os arraiais e as caravanas" (Ravagnani, 1987/88/89, p.112). Como milenares habitantes desse território, em resposta ao massacre e às guerras sofridas, os Caiapó resistiam como e com o que podiam ao invasor.

Desta forma, visualizamos outra representação dos índios Caiapó do Sul, diferenciada daquela da literatura do colonizador que sempre os caracterizou como ferozes, bárbaros e gentios. Os Caiapó do Sul apenas resistiram e revidaram a violência sofrida (Oliveira, 1861). Os arraiais, caravanas, expedições eram atacadas como retaliação ao processo. "Atacavam, sem o sabe, o que o império português tinha de mais sagrado: as caravanas carregadas de ouro. Atraíram, por isso, a atenção e o ódio das autoridades" (Ravagnani, 1987/88/89, p.112). Na literatura do colonizador, os Caiapó do Sul eram caracterizados como inimigos, o que justificava a guerra. E como as fontes, em sua maioria, foram escritas a partir desse contato, prevaleceu a caracterização dos Caiapó do Sul construída pelo colonizador.

As reclamações da população, dos colonos em relação aos Caiapó do Sul, chegaram às autoridades, que continuaram utilizando a guerra e o combate para expulsá-los, ou melhor, "desinfestar" o território. Nessa empreitada contra os Caiapó do Sul, que "atacavam" Cuiabá em Mato Grosso e outros arraiais, observa-se a atuação de Antonio Pires de Campos, conhecido por seus empreendimentos de apresamento e escravização de índios. Sua empresa tornou-se conhecida devido à violência empregada e por utilizar os índios Bororo na guerra contra os Caiapó, aproveitando-se de rivalidades intertribais previamente existentes.

Antonio Pires de Campos, em relatório publicado na Revista do IHGB de 1862, com o título Breve Notícia, destaca as características dos povos indígenas denominados por ele de "gentios e bárbaros", nas regiões percorridas por ele até maio de 1723. O autor reitera a sua "visão de colonizador", descreve a forma de vida dos Caiapó, as suas plantações e cultivo de legumes, base de sua alimentação. Utiliza o discurso dos "povos bárbaros" que andavam nus e que tinha por objetivo maior matar os povos inimigos.

A representação dos Caiapó, por Antonio Pires de Campos, contém na sua configuração a justificativa para combate, e até mesmo para a utilização da "guerra justa". Inclusive, o próprio, se encarregou de sair ao sertão para combater os Caiapó do Sul, em troca de recompensas como arrobas de ouro, títulos honoríficos e lotes de terras, saiu pelo sertão de Camapuã com 500 guerreiros Bororo em combate aos Caiapó do Sul. Em outro trecho de seu relatório, descreve a reação dos Caiapó do Sul como "atrocidades".

[...] não há outra nação de gentio habitante, porque os ditos Cayapós tudo infestam por d'onde tem feito considerados viandantes, e mineiros que passam para as minas de Cuaybá, fazendo despovoar todas as roças que já haviam no Rio do Tacoary, matando a maior parte da gente, e queimando-lhe as casas, fazendo-lhe despovoar aquelle rio, e o mesmo fariam em Camapoan se os roceiros não estivessem com armas na mão de noite e de dia, sem embargo de haver já perdido às mãos do gentio, mais de vinte escravos, e proximamente mataram quatro escravos a .... Vieira do Rio que estava na roça de Nhanduhy mirim que faz barra no Rio Pardo. (Campos, 1862, p. 438)

De acordo com o referido autor, os Caiapó do Sul "infestavam" uma extensa região, principalmente nas proximidades de Cuiabá, as ações deles eram frequentes, o que provocava o despovoamento da região, pois, os que não eram mortos fugiam da ação do grupo. Na região de Camapuã, território outrora ocupado pelos Caiapó do Sul, expulsos pela guerra, o autor registra que os roceiros ficavam em vigílias dia e noite, e mesmo assim, perdiam escravos que trabalhavam na exploração do ouro.  Sobre os Caiapó, conclui: "sendo uma das nações temidas em todos estes sertões pelas suas astucias e traições, pelas quaes basta um só cayapó para destruir uma tropa de quinhentas armas de fogo, sendo em qualquer d'elles usual correr tanto como um cavalo". (Campos, 1862, p. 449)

Após esses embates, a população dos Caiapó do Sul diminuiu significativamente e os que restaram foram expulsos de seu território, "sabendo que o número desses índios achava-se reduzido a menos de metade, já passadas carnificinas, que ahi ficam recontadas, já pela defecção de alguma das tribos que formavam aquella grande nação" (Oliveira, 1861, p. 506). Os ataques e levantes contra os Caiapó do Sul em Cuiabá impulsionou a vinda de alguns grupos sobreviventes para Goiás, região ocupada por eles anteriormente.

Essas ações empreendidas pela Administração Colonial, para combater os Caiapó do Sul, não conseguiram anular a resistência do grupo, "apesar das atrocidades praticadas por Antônio Pires de Campos e os Bororo contra os Kayapó do Sul, a guerra não acabava aí porque o povo Kayapó do Sul demonstrava resistência, não abdicando facilmente de seu território" (Ataídes, 2006, p. 66). Assim, a administração da Capitania, ao ver que os combates aos Caiapó do Sul não resolviam os problemas dos conflitos, os ataques e retaliações, começou a mudar as estratégias pautadas na política indigenista do tratamento "brando" e "aldeamento", política já utilizada com os indígenas considerados "aliados". "Após meio século de conflitos armados entre Cayapó e "brancos", um grupo foi aldeado" (Giraldin, 1997, p. 91).

O processo de aldeamento dos Caiapó do Sul é registrado por (Alencastre, 1979) como "conquista dos índios caiapós", e os fatores que levaram esses grupos a se permitirem aldear estão relacionados às dificuldades enfrentadas ainda no governo de José de Vasconcelos, o barão de Mossâmedes (1772-1778). "Durante esse período teve de lutar com as maiores dificuldades, a seca e a fome por mais de dois anos produziram lamentáveis estragos" (Alencastre, 1979, p. 207). A seca foi seguida de chuvas abundantes em 1776, causaram inundações e misérias. Além disso, (Ravagnani, 1986/87) afirma que as derrotas nas guerras contra os não indígenas e uma epidemia de varíola conjugaram aos motivos que levaram os Caiapó do Sul a se aldearem.

José de Vasconcelos, nomeado diretamente pelo marquês de Pombal, tentou colocar em prática a política indigenista pombalina, que primava pela catequese e aldeamento dos índios. Ao chegar à Capitania de Goiás, empreendeu expedições para conhecer a região, "Sendo o único governador que percorreu toda a capitania, tinha o mais exato conhecimento do seu território, e também de suas necessidades". (Alencastre, 1979, p. 215). José de Vasconcelos estabeleceu contato com os índios Xacriabá e Akroá e empreendeu a construção de um aldeamento próximo a Vila Boa, com o objetivo de ser um aldeamento modelo e "as vistas imediatas do colonizador" (Alencastre, 1979, p. 215).

Esse aldeamento recebeu o nome de S. José de Mossâmedes, projetado pelo então governador, "[...] indo ele mesmo escolher e demarcar a cinco léguas de Vila Boa o terreno em que devia ser fundado, ao qual deu logo o nome de S. José de Mossâmedes, que não só recorda o nome próprio de seu fundador, como seu solar de Mossâmedes". (Alencastre, 1979, p. 215). No que se refere ao projeto arquitetônico, (Boaventura, 2007) afirma a disposição espacial, foi concebido de acordo com as instruções relativas à nova ordem de planos ordenados para a vila.

A construção do aldeamento seguiu as ordens régias, que determinavam a utilização de bons materiais para que, no futuro, possibilitassem o estabelecimento de núcleos urbanos, como foi o caso desse aldeamento que deu origem a atual cidade de Mossâmedes-GO. A construção do Aldeamento de São José de Mossâmedes objetivava criar em Goiás um modelo que expressasse a nova política do governo português em relação aos índios, ou seja, transformá-los em elementos povoadores do interior do Brasil. Esse aldeamento recebeu diferentes grupos indígenas, os "acroás, carajás, javaéses, carijós e naudoz", (Alencastre, 1979, p. 214), seguidos dos "xacriabás" e, posteriormente, os Caiapó do Sul.

Pelos meios brandos e suasórios conseguiu este governador chamar à paz dos aldeamentos mais de oito mil índios, e foi tal a influência benéfica que sobre eles soube exercer, que muitos vieram espontaneamente à capital pedir para serem aldeados. (Alencastre, 1979, p. 215)

Apesar da política indigenista adotada, na defesa de aldeamento "pacífico" e "brando", observamos que existiram fatores conjugados que iam além dessa estratégia, como: guerras, fome, pestes, seca, inundações, ocupação do território, que levaram, até mesmo, alguns grupos indígenas procurarem "espontaneamente" a Administração Colonial da Capitania para serem aldeados. No ano de 1777 José de Vasconcelos recebeu da Corte uma Carta que pedia o seu recolhimento, este retornou a Portugal em 1778, e foi sucedido por Luiz da Cunha Menezes, que estava na Bahia e assumiu o governo da capitania de Goiás em outubro do mesmo ano. Este seguiu as orientações deixadas pelo governador anterior.

Ao seguir a mesma linha administrativa de José de Vasconcelos, Luiz da Cunha Menezes também enfrentou os problemas com a crise da mineração e as tentativas frustradas de encontrar novas minas. "Foi até onde chegaram os resultados dos seus trabalhos; tomando, porém, o exemplo do seu antecessor, entregou-se com afã a conquista e civilização dos índios" (Alencastre, 1979, p. 233). Dedicou-se ao aldeamento dos Caiapó do Sul, sob a justificativa de que estes "eram os que mais incomodavam os habitantes do sul da capitania, preparou-se para a conquista desta nação, que todos julgavam indomável, e incapaz de submeter-se a qualquer regime social" (Alencastre, 1979, p. 234).

Com a "conquista" dos Caiapó do Sul, Luiz da Cunha Menezes objetivava ser reconhecido pela Rainha de Portugal, D. Maria I, e contribuir com o processo de ocupação e desenvolvimento das atividades agropecuárias, tendo em vista suas tentativas frustradas de descoberta de novas minas.      Essa afirmação é corroborada por (Alencastre, 1979) quando afirma que, após as tentativas frustradas de obter lucro com a mineração, o Governador Luiz da Cunha Menezes partiu para a "conquista" e a pacificação dos índios.

Convencido de que o melhor sistema de catequese é aquele que tem por princípio e fundamento a brandura, e benevolência, e os meios suasórios, pelo restabelecimento da confiança, fortalecido com as lições e a experiência do passado, procurou pessoas, capazes e prudentes, a quem entregou a direção de uma bandeira a esse fim destinada. (Alencastre, 1979, p. 234)

Os Caiapó do Sul eram caracterizados pelos relatos da época como povo "indomável", "incapaz" de serem submetidos ao convívio social. Entretanto, sabe-se que essas ações dos povos indígenas constituíam-se uma reação às formas de violências empregadas pelos não indígenas. O Governador Luiz da Cunha Menezes, mediante a política indigenista do período, decidiu, via catequese, brandura e o contato "pacífico", contatar esse grupo "temido" pelos desbravadores do sertão.

4. O processo de aldeamento dos Caiapó do Sul e sua extinção em Goiás

Em uma carta particular do Governador Luiz da Cunha Menezes a seu irmão que, possivelmente, de acordo com (Bertran, 1996), seria Tristão da Cunha Menezes o seu sucessor no governo da Capitania de Goiás no período de 1784-1798. Luiz da Cunha descreve claramente o processo de "pacificação" da "Nação Cayapó". A Carta foi transcrita no livro Notícias da Capitania de Goiás (2), organizado por (Bertran, 1996).

E vendo mais, que apesar de se não terem procurado, por este verdadeiro meio de doçura ter maiores conhecimentos da redutável (sic) Nação Cayapó, tida e reputada pela mais bárbara e a mais indomável, sem outro maior conhecimento que o espírito que nós lhes inspirávamos, com a superioridade das armas de fogo às flechas e porretes de que eles usam, me resolvi a expedir-lhe, contra a opinião e voto de todos, uma bandeira aos seus próprios e mais pertos alojamentos, que são distantes desta Vila perto de 200 leguas de Sertão, vadiado só por eles, com positiva ordem de boas, de rigorosas penas, de lhe não tirarem nem um só tiro, nem lhe fazer o mínimo mal, acompanhados dos Línguas que lhe deputei (sic) da mesma Nação, que tinham vindo prisioneiros e se achavam já em estado de poderem expressar-lhes e fazer-lhes as proposições, que me pareceram próprias para os aquiziar (sic) e convencer da paz e amizade que eu queria ajustar com eles, regalando-os aos mesmo tempo com um presente de toda a casta  de quinquilharias e ferramentas, que de eles têm grande necessidade. (Bertran, 1996, p. 23)

Para a efetivação desse contato foram utilizados os serviços de um soldado experiente, que já havia participado de outras bandeiras, e também de um grupo de indígenas da etnia Goyazes e intérpretes. José Luiz Pereira "foi escolhido para essa missão pozeran-no à frente de cincoenta Goyazes e tres índios que deviam servir de línguas, e Villa Boa viu esperançosa sahir para o sertão essa expedição de paz, no dia 15 de fevereiro" (Souza e Silva, 1861, p. 526). Esse grupo saiu ao sertão no ano de 1780, comandado pelo cabo José Luiz Pereira, na tentativa de convencer os Caiapó a viverem no aldeamento, de acordo com as instruções recebidas da Administração de paz e proteção aos índios.

Em vez de encarregarem autoridades portuguesas das expedições para contatar e/ou conquistar populações indígenas hostis, contrataram sertanistas para assumir responsabilidades que antes cabiam aos leais filhos de Portugal, muito dos quais já tinham voltado para Portugal para requerer mercês por seus sucessos nas guerras com os índios. (Karasch, 1992, p. 401)

Foram longos meses que essa expedição ficou no sertão, tentando o contato pacífico com os Caiapó do Sul. Para estabelecer a comunicação com o grupo, recorreram aos intérpretes indígenas e utilizaram "palavras cheias de paz e conciliação" (Souza e Silva, 1861, p. 526), além de distribuírem brindes em nome do Governador e da Coroa Portuguesa. (Alencastre, 1979) reforça que esses intérpretes eram da mesma nação Caiapó, e ainda destaca outros detalhes: "o governador lhe tinha mandado dar ferramenta e muitos objetos, com que deviam ser presenteados os índios, em seu nome e no de S. M." (Alencastre, 1979, p. 234). O discurso utilizado era permeado de promessas, de "exaltação" da vida nos aldeamentos, de paz e de um ideal de vida sem conflitos com os não indígenas. 

Com o objetivo de não decepcionar a confiança do então governador Luiz da Cunha o soldado José Luiz entrou no sertão e contatou os Caiapó do Sul, e um número de cerca de "alguns d'entre eles deixaram captar de tanta benevolência e quiseram por si mesmos conhecer o grande capitão de quem tanto e tão bem lhes falavam esses aventureiros missionários, e pois decidiram se acompanhar a expedição até a capital de Goyaz" (Souza e Silva, 1861, p. 526). Os fatores que levaram os índios dessa etnia a viverem no aldeamento vão além desse contato "cordial" e "benevolente" dos não indígenas, dos brindes recebidos. As circunstâncias vivenciadas no sertão eram de seca, fome e conflitos, tudo isso contribuiu para que a política de aldeamento se efetivasse.

Após cinco meses de sua saída a expedição comandada pelo cabo José Luiz retornou a Vila Boa, acompanhada do "velho Romexi, que vinha em lugar do cacique Angroiochá, acompanhado-se seis homens de guerras e as pessoas de sua família. Eram ao todo 36 caiapós" (Alencastre, 1979, p. 234). Já (Souza e Silva, 1861, p. 527) apontou para o número de "quarenta cayapós entre homens mulheres e crianças".

Luiz da Cunha também destaca que o total de índios Caiapó que veio com a bandeira era de 36 indígenas, "[...] escoltando um venerando velho com honras de Cacique, acompanhado de cinco mais homens de guerra e suas famílias, que montava seu total número de trinta e seis pessoas de todas as idades e diferentes sexos (Bertran, 1996, p. 23). Independente da dissidência quanto ao número de indígenas que acompanharam a expedição, as fontes históricas consultadas ressaltam que esse grupo foi recebido com festividade pelo Governador Luiz da Cunha Menezes, funcionários e autoridades religiosas.

Essa recepção fora planejada para impressionar os indígenas com as cerimônias e como um ato de "selar a paz". Essa simbologia também se caracterizava como uma forma de demonstrar a superioridade e o poder exercido pelos não indígenas, bem como a utilização da igreja como demarcadora dos eventos históricos e também de legitimação das relações.            O próprio Governador Luiz da Cunha fala dessa proposta de causar admiração, no evento de recepção aos índios Caiapó, na referida carta endereçada ao seu irmão.

Com toda a Tropa desta guarnição em armas, e debaixo de fogo de Artilharia e Mosquetaria, que lhes fez não pouca admiração e todos e todos pretendidos efeitos, a que eu me tinha proposto, para mais os convencer das nossas forças, e de lhe intimar como lhe intimei da parte de Sua Majestade, recebendo-os nesta casa da minha Residência, que eu buscava a sua amizade por dó que tinha de os ver errantes, vivendo miseravelmente, porque se lhes quisesse fazer a guerra, assim como eles a vinham a minha gente, eu tinha outro igual número de Tropa ao que eles viam, nos mais Arraiais da minha jurisdição, para os matar a todos e não deixar um só vivo. (Bertran, 1996, p. 23)

No discurso utilizado por Luiz da Cunha na Carta, a cerimônia de recepção fora organizada para impressionar os indígenas e, ao mesmo tempo, intimidá-los, com demonstração de força, armamentos e tropas. Ao se referir aos costumes dos Caiapó do Sul, o próprio governador diz que estava buscando amizade por "dó", pois, os mesmos viviam "errantes", "vivendo miseravelmente". Ao mesmo tempo, se utilizava de um discurso ameaçador, que se quisesse a Administração poderia fazer-lhes guerras, pois, tropas e armamentos possuíam para dizimá-los.

Durante a estadia dos índios em Vila Boa, uma velha índia, que já se encontrava doente, "morreu, depois de ter sido batizada com o nome de Maria, e foi sepultada na matriz com a mais solene pompa" (Alencastre, 1979, p. 235). Segundo o autor, após a estadia em Vila Boa, o governador "convidou" o grupo Caiapó para visitar o Aldeamento de São José de Mossâmedes e, assim, verificar como vivam e eram tratados os indígenas já aldeados; e também para que os habitantes de Vila Boa se acostumassem com a presença deles, pois era a primeira vez que esse contato se efetivava na Capitania.

Passados vinte e cinco dias, o governador determinou que Romexi voltasse ao seu povo, para convencê-los a se aldear. No entanto, Romexi se recusou a ir, mas, diante da insistência impositiva do governador, recebeu os presentes e partiu rumo as aldeias dos Caiapó. O cabo José Luiz acompanhou o grupo indígena, contudo, de acordo com (Alencastre, 1979), o "velho Romexi", quando chegou ao destacamento de Pilões, se recusou a continuar a caminhada, com a justificativa de que estava velho e cansado, e ordenou que os guerreiros continuassem e que trouxessem os indígenas de suas aldeias.

Diante do fato, o governador enviou ajuda ao cabo José Luiz, que conseguiu completar a sua missão. "No prazo marcado por ele para o seu regresso, e a 29 de maio de 1781 tiveram ingresso em Villa-bôa 237 Cayapós, reproduzindo-se por esse tocante acontecimento os festejos e alegria publica como houvera na precedente entrada desses índios" (Oliveira, 1861, p. 513). Alencastre (1979, p. 236), completa: "[...] vindo a frente dos seus 237 súditos o maioral Angraiochá e o cacique Xaquenonau".

     A ação dos colonizadores em "prestigiar" a família dos maiorais dos grupos indígenas constituía-se numa estratégia utilizada para impactar e influenciar os indígenas a viverem em contato com a sociedade colonial e, assim, assegurar a consolidação da cultura ocidental sobre a cultura dos povos nativos. No caso, específico de Damiana da Cunha, como passou a ser conhecida na história, além de ser batizada, foi adotada por D. Luiz, o que a permitiu viver no palácio e receber a formação religiosa ocidental.

 [...] Tal aproximação entre o governador e os caciques remontava aos princípios das relações com os portugueses, mas relacionava-se diretamente com o Diretório dos Índios, [...] insistia na necessidade de tratar com honras as lideranças indígenas – os "principais" –, a fim de que, com seu prestígio, influenciassem os demais índios a viver integrados à sociedade colonial. Ainda que muitos portugueses depreciassem os índios, reconheciam a importância do berço de uma pessoa. (Júlio, 2015, p. 109)

Para alojar os Caiapó do Sul, Luiz da Cunha construiu um novo Aldeamento, "escolheu a 12 léguas da capital um local aprazível, na margem do rio Fartura, onde fundou um aldeamento, a que pôs o nome de Maria I" (Alencastre, 1979, p. 236), cujo nome se deu em homenagem à rainha de Portugal, D. Maria I. Inaugurado em 16 de julho de 1781, este aldeamento recebeu novos descimentos do mesmo grupo étnico alguns meses depois: "em 27 de setembro de 1781 entrou no aldeamento Maria I a terceira aldeia do cacique Cananouaxi, e precisamente um ano depois chegava a Vila Boa, e dali partia para o mesmo destino, o cacique Pupuare acompanhado de todos os seus" (Alencastre, 1979, p. 237).  Durante o governo de Fernando Delgado Freire de Castilho (1809-1820), na Capitania de Goiás, foi extinto o Aldeamento Maria I em 1813, sob a alegação de problemas administrativos e econômicos.

Saint-Hilaire, ao visitar Aldeamento São José Mossâmedes em 1819, registrou que a maior parte dos índios Caiapó do Sul não residia nas casas reservadas para seu alojamento, porque achavam as casas frias e o teto alto. Os próprios índios construíram as suas casas, mais baixas e próximas de suas plantações. "As choças que os Coiapós construíram nas proximidades da aldeia não ultrapassaram uma dezena. É a uma légua de S. José, nas suas plantações, que se encontra a maioria de suas moradas". (Saint-Hilaire, 1975, p. 64). O viajante destaca que os portugueses mudaram por várias vezes o regime que submetia os índios e relata que na época de sua viagem, o Aldeamento São José de Mossâmedes tinha o seu funcionamento baseado na forma de governo dos jesuítas.

  Entretanto, (Saint-Hilaire, 1975) fez críticas aos administradores, pois, afirmava que não adiantava ter bons regulamentos se não tivessem pessoas capazes de fazer com que os índios os obedecessem, "e não a ninguém que não perceba que é absurdo pretender conseguir com soldados o mesmo resultado obtido com missionários" (Saint-Hilaire, 1975, p. 65).

Em seus registros, (Saint-Hilaire, 1975) aponta as fragilidades da administração do Aldeamento, que ficava sob a responsabilidade dos pedestres que, além de não terem formação para esse cargo, eram mal remunerados e se utilizavam dos serviços dos índios em seu próprio interesse. As fugas dos indígenas eram constantes, embora fossem recapturados voltavam a fugir novamente.

Cunha Mattos, em relatos de 1824, publicado na Revista do IHGB em 1874, republicados em 1979, como governador das Armas na Província de Goiás, também denuncia que as populações indígenas que habitavam Goiás "[...] foram quase destruídas pelos descobridores e conquistadores, e apenas tenho notícia da existência de 26 tribos, algumas das quais se acham reduzidas a um estado de absoluta insignificância" (Cunha Mattos, 1979, p. 89). Ainda se refere aos índios Caiapó do Sul e a tentativa dos governadores em catequizá-los: "Tem se feito toda a diligência para catequizá-los, mas sendo em extremo amantes da liberdade e vida selvática, não podem sofrer o procedimento para com eles estranhos diretores, e depressa voltam aos antigos lares" (Cunha Mattos, 1979, p. 89 e 90).

Outro aspecto destacado por (Cunha Mattos, 1979), que também foi apontado por (Saint-Hilaire, 1975), é o tratamento legado aos indígenas Caiapó aldeados em São José de Mossâmedes, e afirmava que o governo estava gastando na defesa da "civilização" desse povo, mas não estava adiantando, pois, estes fugiam e voltavam aos seus costumes, referindo-se aos Caiapó do Sul como "desgraçados", face a defesa do "processo civilizador".

Esta gente estaria mais civilizada se os diretores, os capelães, os comandantes dos destacamentos e os seus mesmos capitães mores índios tivessem outras maneiras para com eles, e não os considerassem como escravos e bestas de carga. A fazenda pública tem consumido somas imensas para civilizar estes desgraçados, mas eles nada preferem à sua bárbara liberdade. (Cunha Mattos, 1979, p. 90)

 Nesta perspectiva, (Saint-Hilaire, 1975) alerta sobre outros fatores de extermínio da raça, e um dos elementos observados são as doenças transmitidas de não indígenas para indígenas, principalmente as doenças venéreas. A falta de meios adequados de tratamento acabou contribuindo para a dizimação de parte desses povos. O viajante também ressalta uma epidemia de sarampo que atacou os Caiapó do Sul do Aldeamento de São José, o desconhecimento da doença não permitiu que tomassem medidas de prevenção importantes, como a interrupção dos banhos coletivos nos rios, o que provocou a morte de mais de oitenta deles. Em relação ao bócio, Saint-Hilaire não registrou nenhuma incidência entre os índios Caiapó do Sul.

Quase todos foram atacados pelo sarampo há alguns anos, e no delírio da febre iam banhar-se na água fria. Morreram mais de oitenta. Por outro lado, não vi nenhum deles que tivesse bócio, deformidade que desfigura todos os pedestres encarregados de supervisioná-los e que, como já foi mostrado, é muito generalizada em Vila Boa. (Saint-Hilaire, 1975, p. 70)

A partir dos relatos de (Saint-Hilaire, 1975), observa-se que os Caiapó do Sul conservaram os costumes de sua vida na mata. De acordo com o autor, quando morria alguém de destaque em seu grupo, feriam o peito ou a cabeça até correr o sangue. Quando nascia uma criança, além do nome de batismo dado pelo não indígena, colocavam outro nome, geralmente de um animal. As celebrações dos casamentos eram realizadas com banquetes e danças.

Além de praticarem o seu esporte favorito, a corrida de touro, motivo de algumas divergências entre eles, (Saint-Hilaire,1975) observou que próximo as casas dos Caiapó do Sul havia pedaços de troncos de árvores, utilizados na brincadeira. Essa madeira, chamada de touros, era colocada sobre os ombros e a pessoa saía correndo, até ser alcançado por outro que passava a carregar o touro, e assim sucessivamente, até chegar ao ponto determinado.

A partir de 1831, as fugas dos Caiapó do Sul que vivam em São José de Mossâmedes foram frequentes "perambularam pelo norte e sul da Província, nas franjas dos núcleos urbanos, apatriados da terra que fora deles" (Ataídes, 2006, p. 72).

Todo esse processo, resultou na busca de refúgio em outras regiões e a extinção dos Caiapó do Sul em Goiás.

5. Considerações Finais

O tratamento dado aos Caiapó do Sul pelo Governo, a Igreja e os colonos eram norteados por políticas ambíguas nas quais prevaleciam os interesses locais. Além disso, visualizamos uma mudança de estratégia em relação a esse grupo indígena que, evidentemente, se inseria no contexto de políticas adotadas pelo Governo também com outros povos.

O processo de ocupação, guerra, dizimação, combate, escravização, demarcado pelo final do século XVIII e o início do XIX, as estratégias de colonização mudaram, em contraposição às ações dominadas pela violência passou-se à defesa da ideia "civilização", "pacificação", "catequese" e "aldeamento". Mas, com a reação constantes dos Caiapó do Sul e as fugas dos aldeamentos, retornam as guerras e os massacres dessa etnia, o que resultou no desaparecimento desse grupo em Goiás.

Para a compreensão dessa relação, discorremos sobre o processo de ocupação do território de Goiás, os massacres, violência, guerras, dizimações, mudanças culturais resultantes do contato do indígena com o não indígena; e como a historiografia (oficial e/ou não oficial) construiu e constrói a representação dos Caiapó do Sul.

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1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER), da Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Anápolis de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). Professora do Curso de História da Universidade Estadual-Câmpus Itapuranga. damianaprof@hotmail.com
2. Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (2010). Atualmente é professora titular da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER), da Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Anápolis de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas. Anápolis-GO. poliene.soares@hotmail.com


Revista Espacios. ISSN 0798 1015
Vol. 37 (Nº 17) Año 2016

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