Espacios. Vol. 36 (Nº 08) Año 2015. Pág. 17
Neilson Silva MENDES 1; Dulce Portilho MARCIEL 2; Janes do Socorro da LUZ 3; Divina Aparecida Leonel LUNAS 4
Recibido: 27/07/14 • Aprobado: 24/04/2015
2. O território quilombola: ocupação do espaço e produção do território
3. Cultura na relação com o espaço e produção do território
RESUMO: |
ABSTRACT: |
Denomina-se [5] território quilombolas o espaço ocupado por grupos, os quais integram história, cultura, identidade e lugar. A nosso intenção é fazer uma reflexão sobre território e cultura, na medida em que os dois expressam o domínio do homem sobre espaço. Assim, o território é entendido como produto das potencialidades de uma nação ou de um grupo sobre o espaço, e, por sua vez, este é alterado, dominado de acordo com os valores de quem nele exerce suas práticas culturais não só com ações de intervenção, tais como construção de moradia, produção de alimentos, como também em lugares para as práticas simbólicas, as quais se manifestam nas práticas religiosas, nas festas.
Desenvolvemos as discussões com vistas a pensar a ocupação do espaço pelos quilombolas. No caso, vamos considerar as comunidades negras rurais e sua histórica e, às vezes, conflituosa relação com o território.
Os conceitos território e cultura foram tomados como fundamentais, pois são essenciais na compreensão de "comunidades", considerando suas diferenças em relação a outros grupos da sociedade. A trajetória histórica das diferentes sociedades remanescentes quilombolas produziram um sentido específico em relação a terra. O reconhecimento desse sentido constitui as indagações que norteiam esta discussão: Por que o território tem relação com a identidade do grupo? Por que o grupo é que elaborou o território? Identidade tem a ver com tanta coisa, mas tem a ver também com poder? Quando se forja o território em que o poder agiu? E quando o poder é exercido pelo grupo, isso pode gerar um sentimento de unidade, de pertencimento, em razão da histórica relação com o espaço?
As respostas a todos esses questionamentos pautaram-se em uma abordagem que valoriza os aspectos qualitativos da relação homem/terra. A nossa finalidade é estabelecer possíveis contribuições ao debate a respeito da relação entre território, poder e cultura. Nesse sentido, este trabalho divide-se em dois objetivos. O primeiro procura analisar alguns conceitos de território e o segundo pretende analisar o conceito de cultura, como as representações culturais podem garantir o domínio sobre o espaço e, sobretudo, como isso determina o uso que se faz do território.
O território é talvez, principalmente para o grupo que estamos estudando, esse objeto pelo qual se luta, pois nele, os remanescentes quilombolas, assim como quaisquer outros grupos exercem sua capacidade de intervir e de dominar o espaço. O território, é esse espaço apropriado, definido, pelo qual os quilombolas em geral lutaram e lutam não só para tê-los em definitivo – referimo-nos as áreas ocupadas por essas comunidades -, mas também é o lugar em que procuram melhorar as condições de sobrevivência, tanto material, capacidade de produzir, locomover, comercializar, quanto de preservar e criar suas tradições.
O lugar e o espaço são importantes não pelo fato de garantirem a sobrevivência somente, mas por serem fundamentais para o sujeito em razão dos laços que ele constrói ali, porque esses laços o identifica, que dizem quem ele é. Além disso, os laços oportunizados no território produzem o controle sobre o espaço, na medida em que passa a existir no lugar uma causa a defender. Essa causa pode ser desde a luta pela sobrevivência do grupo, com a garantia da produção material, até a luta pela permanência definitiva no território, com o seu reconhecimento e posse. Assim conquistado, o território passa a ser também a fronteira cultural de uma dada comunidade.
Sobre as práticas materiais, os usos, os costumes representados ou vividos no espaço, são elas que ajudam a elaborar o sentido de pertencimento do grupo:
O espaço de referência identitária refere-se ao recorte espaço-temporal, é onde se realiza a experiência social e cultural, onde se desdobram as práticas materiais (uso, formas de organização do espaço, produção, consumo, circulação) e as representações espaciais (simbolização, formas de significação). Essas práticas e essas representações espaciais serão responsáveis pela construção dos sentimentos e do significado de pertencimento dos grupos (atores/sujeitos) em relação a um território (DOURADO, 2013, p. 10).
Assim, tomemos como exemplo o espaço dos remanescentes de quilombo no Brasil. Esse espaço não é apenas um lugar onde se abrigam, onde produzem sua existência; ele é o território é o lugar em que a "etnicidade" é central na luta por direitos constitucionais conforme:
No Brasil, autoatribuição de identidades étnicas é uma questão que ganhou importância nos últimos anos com a organização política de grupos que reivindicam o reconhecimento dos territórios por eles ocupados, como é o caso dos povos indígenas e das chamadas comunidades remanescente de quilombo. (O'DWYER, 2009, p. 269).
Nessa perspectiva, o espaço ocupado pelos grupos quilombolas é o território da sua existência cultural, o lugar da historicidade de comunidades negras rurais, onde as práticas religiosas, as festividades, as relações de parentesco e a produção de viveres atestam o domínio do grupo sobre o local. Isso implica que território é o abrigo, o lar, resulta do exercício de poder na área ocupada. (HAESBAERT, 2004). E é também conforme Antonio C. R. Moraes:
As formas espaciais são produto das intervenções teleológicas, materialização de projetos elaborados por sujeitos históricos e sociais. Por trás dos padrões espaciais, das formas criadas, dos usos do solo, das repartições e distribuições, valores interesses, mentalidades, visões de mundo. Enfim, todo o complexo universo da cultura, da política e das ideologias. (MORAES, 2005, p. 16)
E ainda: "As identidades territoriais podem ser construídas tendo como referência a funcionalidade do espaço pelo poder econômico e político, ou mesmo a partir de uma apropriação simbólica". (DOURADO, 2013, p. 10-11). Para a nossa análise, tanto o econômico, o político e o simbólico integram a força dos remanescentes de quilombo. Os elementos simbólicos, ancestralidade do grupo, memória, religiosidade, dentre outros fatores da cultura imaterial, são, a nosso ver, constituidores de poder, no sentido de que é com ele que se domina, explora o espaço. Poder nesse caso, é a capacidade de domesticação do espaço ocupado.
O que é fundamental perceber na organização de "micro sociedades [6]" como os quilombolas é, em princípio, a ocupação de um espaço, lugar em que se desenvolvem as experiências culturais, onde as práticas produtivas garantem não só a existência material, mas toda uma teia de símbolos que dá sentido a vida coletiva e que está no espaço feito território.
A trajetória de vida dessas sociedades se desenvolve no território em que o grupo constituiu a partir de suas práticas culturais. Não se trata, portanto, de idealizar os remanescentes de quilombos como sociedades alternativas. Antes, porém, é preciso apontar as possibilidades das fronteiras existentes entre a realidade quilombola, em particular, e a brasileira, em geral, isto é, de outros grupos. O termo território já implica essa relação:
Derivado do latim, territorium (terra), a palavra território tem sua significação ligada à ideia de apropriação, terra apropriada, sendo o uso social, seu elemento definidor, expressando a conjugação de um povo e de uma terra (DOURADO, 2013, p. 4).
O território não emerge apenas como o espaço do abrigo. As discussões a respeito desse assunto são diversas, e muito autores se ocupam em defini-lo. A nossa busca é, portanto, a de compreender não só as várias definições, mas entender como o território pode ser analisado no caso específico de comunidades quilombolas. Lançamos mão da reflexão de Rogério Haesbaert:
[...] desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo, especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no "territorium" são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufruí-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva "apropriação". (HAESBAERT, 2004, p. 1).
Para Claude Raffestin:
Evidentemente, o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto, mesmo se isso permanece nos limites do conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, um local de relações. (RAFFESTIN, 1993, p. 144)
A capacidade de construir, de dominar território, conforme o próprio Raffestin nos indica:
Em graus diversos, somos todos atores sintagmáticos que produzem "territórios". Essa produção de território se inscreve perfeitamente no campo do poder de nossa problemática relacional. Todos nós combinamos energia e informação, que estruturamos com códigos em função de certos objetivos. Todos nós elaboramos estratégias de produção, que se chocam com outras estratégias em diversas relações de poder. (RAFFESTIN, 1993, p. 44)
Produzir território é ter um espaço para chamá-lo de seu. Quando um grupo delimita seu espaço de produção, pressupõe o exercício do poder sobre aquele lugar. A partir disso, não é mais só um espaço; é uma propriedade, uma posse, a qual garante o exercício das potencialidades humanas do grupo. Ali se exercitará a criatividade que garante a sobrevivência, a construção de signos que dão sentido a unidade do grupo – nesse caso, a posse do território é imprescindível aos remanescentes de quilombo.
No caso dessas comunidades, essa posse, essa produção do território contribui, de certa forma, para manter o elo identitário de indivíduos que têm as mesmas experiências históricas, qual seja: são descendentes de africanos escravizados no Brasil e, por consequência, sofreram e sofrem o mesmo processo de exclusão, uma vez que a abolição não foi um projeto de integração dos negros libertos ao trabalho livre e assalariado ALMEIDA (2001).
O território é, nesse caso, segundo Raffestin (1993), o uso que um determinado grupo faz do espaço. Esse uso implica em poder não apenas sobre o espaço ocupado, mas também pelas relações que determinada ocupação que uma comunidade faz entre seus membros e também com o seu entorno e até mesmo com instituições na esfera do Estado. Assim,
Os homens "vivem", ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivas. Quer se trate de relações existenciais ou produtivas, todas são relações de poder, visto que há interação entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Os atores, sem se darem conta disso, se auto modificam também. O poder é inevitável e, de modo algum, inocente. Enfim, é impossível manter uma relação que não seja marcada por ele (RAFFESTIN, 1993, p. 158-159)
Esse conceito é fundamental na medida em que nos remetemos ao espaço dominado, vislumbramos o domínio coletivo sobre o lugar. Compreendê-lo é, de certa forma, visualizar a realidade de comunidades, as quais acreditamos não ser possível entender, senão as compreendermos no seu espaço e daquilo que se constrói nele, ou seja, o espaço não tem sentido em si: "O território inexiste enquanto realidade apenas natural, logo é imprescindível a existência de um grupo social que explora esse espaço (o território), sendo produzido historicamente" (DOURADO, 2013, p. 6).
E ainda: "O homem, como resultado de sua experiência íntima com seu corpo e com outras pessoas, organiza o espaço a fim de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais". (YI-FU TUAN, 1983, p. 39). É, sobretudo, o último aspecto da afirmação desse autor que nos interessa aqui: as relações sociais geradas no espaço domesticado, no espaço feito território (RAFFESTIN, 1993).
Diante disso, a historicidade e o território são elementos inseparáveis na compreensão do processo histórico e identitário dos remanescentes de quilombo. Para se analisar o território, é preciso que:
[...] reconheça as articulações existentes entre as dimensões sociais do território (economia, política, e cultura), entre estas e a natureza exterior do homem, e ao processo histórico e multiescalar de processos territoriais. (SAQUET, 2011, p. 2)
É pensando nessa dimensão que trazemos as comunidades quilombolas para o debate territorial, em razão de se tratar de organizações com histórica luta pela posse das terras que ocupam e também por causa da peculiar relação coletiva dessas comunidades com o cultivo da terra.
Pensamos, assim, que o território é resultante da ação cultural do grupo. O apego a determinado espaço não se dá por ele mesmo. Mas pelo que se constrói ali. Assim, os valores culturais que ligam identitariamente os indivíduos no espaço são fundamentais. A religião, a língua, os costumes, os saberes e a produção material é que moldam o território e o que provoca o pertencimento coletivo.
O território é natureza e sociedade: não há separação; é economia, política e cultura; edificações e relações sociais; des-continuidades; conexão e redes; domínio e subordinação; degradação e proteção ambienta], etc.. Em outras palavras, o território significa heterogeneidade e traços comuns; apropriação e dominação historicamente condicionadas; é produto e condição histórica e trans-escalar; com múltiplas variáveis, determinações, relações e unidade. É espaço de moradia, de produção, de serviços, de mobilidade, de desorganização, de arte, de sonhos, enfim, de vida (objetiva e subjetivamente). O território é processual e relaciona!,(i)material, com diversidade e unidade, concomitantemente. (SAQUET, s/d., p. 83)
Sem deixar de ignorar os demais aspectos da formação do território, nós nos deteremos no aspecto cultural de sua relação; e o fazemos ao passo que essa relação cultural seja uma relação de poder, pois, para RAFFESTIN (1993), o território é o cenário do poder e o campo de todas as relações. Ele continua:
[...] um espaço, onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a 'prisão original', o território a prisão que o homem constrói para si. [...] É uma produção, a partir do espaço (RAFFESTIN, 1993, p. 144)
Entendemos então que se trata do estabelecimento e ainda que: "Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações" (RAFFESTIN, 1993, p. 144).
Falar, portanto, de remanescentes quilombolas é remeter-se a existências de lugares específicos, cuja ocupação aponta para um tipo de relação com a terra e de sofrimento com o poder hegemônico estabelecido no país. Todavia, consideramos que a relação destes com o espaço é também poder. Não se trata, obviamente, do poder coercitivo, vertical, como no caso das instituições do Estado. Ainda assim ocupar um território é poder exercer algum controle sobre seus valores culturais e também ALMEIDA (2002) ter acesso a direitos.
Ser remanescente de quilombo, portanto, é afirmar uma identidade coletiva, é poder através disso, ter condição de manter-se na terra, elemento indispensável para o fortalecimento das relações culturais, do poder, enfim.
...as relações de poder são um componente indispensável na efetivação de um território [...] E são essas relações que cristalizam o território e as territorialidades. [...] O território é um lugar de relações a partir da apropriação e produção do espaço geográfico. (SAQUET, s/d. p. 74)
Para estudarmos as comunidades quilombolas e entendermos suas construções sociais, é preciso refletir para além da história. Embora esta seja fundamental e indispensável, parece-nos ainda mais satisfatório quando procuramos relacioná-la aos elementos geográficos.
Ademais, parece-nos plausível pensar junto com o elemento geográfico, o identitário, posto que é por meio da cultura que o homem domestica, possui o território. Recorremos a Rogério Haesbaert para relacionar território e identidade:
[...] toda identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social [...] trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para sua estruturação está na alusão ou referência a um território, tanto no sentido simbólico quanto concreto. (HAESBAERT, 1999, p. 172)
Ter um território, então, não é apenas ter um lugar, um espaço físico; é, igualmente, poder construir sentidos. A partir disso, estabelecem-se as relações de força dentro do grupo. Ser quilombola é, de certa forma, estar envolvido nessa construção de sentidos, primeiro porque isso contribui para o pertencimento, a coletividade, depois porque esse coletivo estabelece seus objetivos de luta.
O território, como visto, resulta do exercício cultural do homem sobre o espaço. A compreensão da cultura como ferramenta de intervenção no espaço é o que procuramos discutir neste trabalho. As tradições culturais são importantes na compreensão da relação dos quilombolas com a terra, sendo esta última entendida como o espaço que excede a satisfação das necessidades materiais, pois para que isso ocorra primeiro é preciso o exercício da intervenção cultural – assunto que se tornou uma preocupação da geografia:
No final do século XIX e início do século XX a Geografia europeia já se ocupa da dimensão cultural da sociedade. O foco central do interesse dos geógrafos europeus, neste período, está centrado no resultado da ação humana responsável pela alteração da paisagem natural. Era essa alteração que produzia cultura, caracterizada por um gênero de vida, resultante das relações de um determinado grupo humano e a natureza (ROCHA; ALMEIDA, 2005, p. 2).
E é essa dimensão cultural do homem alterando o espaço, forjando o território que nos interessa, pois entendemos o território como resultado cultural e por meio dela que se estabelecem as relações de poder, conforme Raffestin (1993), o poder ao qual nos referimos aqui, não é o poder tradicional, vertical, o poder, no que diz respeito ao território conforme Rogério Haesbaert:
Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional "poder político". Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. (HAESBAERT, 2004, p. 1).
Pois de acordo com esse autor: ..."são duas formas distintas de produção do território enquanto recurso: os dominantes privilegiando seu caráter funcional e mercantil, os dominados valorizando-o mais enquanto garantia de sua sobrevivência cotidiana". (Haesbaert, 2004, p. 4), Poder no sentido que estamos discutindo aqui é essa capacidade de garantir a sobrevivência ao dominar um determinado espaço, é quando se garante nele a reprodução física cotidiana.
O que buscamos é compreender como os quilombolas de Santa Rita do Novo destino, do Remanescente do Quilombo de Pombal exerce seu controle sobre o território ocupado, em outros termos, como eles tem dado forma ao espaço em que vivem. As formas do espaço são também produção humana:
As formas espaciais produzidas pela sociedade manifestam projetos, interesses, necessidades, utopias. São projeções dos homens (reais, seres históricos, sociais e culturais), na continua e cumulativa antropomorfização da superfície terrestre (MORAES, 2005, p. 22).
Interessa-nos compreender especificidades da cultura quilombola, em razão da peculiar relação desses grupos com o território, sobretudo na exploração coletiva da terra, bem como em razão da historicidade específica dessas comunidades negras rurais. Assim, nosso intento é produzir uma reflexão a respeito de cultura para melhor compreendermos a dinâmica dos remanescentes do Quilombo de Pombal na sua relação com o espaço.
Dourado (2013) entende o território como um movimento contínuo. A forma como ela expõe as ideias sobre o assunto expressa nosso entendimento a respeito da importância de compreendê-lo na dinâmica cultural quilombola, uma vez que, a partir disso, podemos compreender os aspectos sociais, políticos e econômicos do grupo, pois entendemos que o estudo da cultura deve integrar todos esses valores:
Nesse continuo em movimento que é o território, a cultura passa a exercer um papel fundamental, pois o mesmo passa a ser organizado, expressando os jeitos, as práticas, as crenças, o saber-fazer de quem passa a habitá-lo, de quem 'escolheu aquele chão chamar de seu', apropriando-se e imprimindo a esse território uma especificidade (DOURADO, 2013, p. 12-13).
Entender, pois, o que é cultura ou como esse conceito nos define enquanto ser humano é indispensável para compreendermos a relação território, cultura, identidade e tática cotidiana de sobrevivência, sobretudo quando se trata de segmentos que precisam resistir ao processo de exclusão. Certeau se referindo as táticas de consumo diz que são ..."engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas" (CERTEAU, s/d. p. 45). A reivindicação de uma identidade quilombola é de certa forma algo que se parece com isso, pois a partir dessa identidade é possível, como veremos no último capítulo politizar o cotidiano em remanescentes de quilombo.
E tática é entendia como instrumento de ação política, entendido na perspectiva de Michel de Certeau:
Em suma, a tática é a arte do fraco[...]As forças são distribuídas, não se pode correr o risco de fingir com elas. O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Ao contrário, a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes apenas ela, como "último recurso". (CERTEAU, s/d. p. 101)
O território é fundamental para o desenvolvimento das táticas cotidianas. Assim, território, cultura, identidade e tática cotidiana são elementos indissociáveis na análise do conceito de território, em especial ao estudo dos remanescentes de quilombos. Em Raffestin, vemos que: "O território é um trunfo particular, recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmo tempo. O território é o espaço político por excelência, o campo da ação dos trunfos".(RAFFESTIN, 1993, p. 59-60).
Por essa razão é que relacionamos cultura, território e poder, pois ambos levam-nos a compreensão do uso do espaço, do esforço, no caso dos quilombolas em continuar existindo e produzindo no lugar em que vivem, sem, contudo, perder de vista a possibilidade de manter relações sociais e econômicas fora do âmbito do território ocupado.
A cultura emerge como elemento fundamental para nossa análise. Por isso mesmo vamos trazer algumas ponderações sobre seu significado. O que seria cultura? Por que esse debate é importante no estudo de remanescentes de quilombo? "Cultura seria todo comportamental, incluindo o emocional e o intelectual, de um povo ou, em menor escala, de uma coletividade" (GOMES, 2013, p. 34). Isto é, tudo que uma sociedade acumula com suas experiências no tempo.
Essa definição não encerra o significado, porque a compreensão do que seja cultura deve nos levar a entender a sua funcionalidade. Nesse sentido, recorremos a afirmação a seguir:
A cultura é o resultado natural da interação entre o homem e a natureza e do homem com seus semelhantes, podendo ser compreendida como um processo de produção da própria existência humana. A cultura é o resultado de seu mundo de acordo como o vivem, o percebem e o concebem (ROCHA; ALMEIDA, 2005. p. 3).
Poderíamos iniciar, então, apontando uma particularidade fundamental da cultura quilombola, uma memória da resistência: a luta pela sobrevivência de grupos, cuja história mostra desde seus ancestrais escravizados até os libertos da república. São componentes de um segmento social cuja exclusão é um dos seus principais traços, no caso das comunidades negras rurais. Isso implicou, certamente, no desenvolvimento de traços culturais próprios. Assim, podemos salientar que essas comunidades desenvolveram identidades próprias, aspecto fundamental da cultura, conforme Gomes:
Outro aspecto diz que cultura e a identidade de um povo ou de uma coletividade, que se forma em torno de elementos simbólicos compartilhados. Esses elementos, em que se incluem os valores, permitem a coletividade pairar acima das diferenças que dividem – seja de classe social, região, religião etc... (GOMES, 2013, p. 35)
No caso dos quilombolas, não significa serem donos de uma cultura isolada, com traços que sejam só deles, com religião exclusivamente desses grupos, costumes que só se encontre entre eles. Mas é ter traços, domínios específicos sobre elementos que os distinguem de outras coletividades, é ter uma visão sobre o grupo, através da qual se pode exercer algum poder no jogo de negociação com os demais grupos, "[...] isto é, cada categoria social abriga comportamentos e modo de ser coletivos que podem ser vistos como cultura. Cultura aqui seria a dimensão de uma sociedade" (GOMES, 2103, p. 45).
No caso em questão: "[...] cultura seria o modo de ser dessa sociedade. Aqui cultura teria uma função muito importante: dar coesão, integridade ao que é necessariamente dividido" (GOMES, 2013, p. 46). E só podemos falar em cultura se for possível identificar determinados traços, os quais são encontrados somente entre os seres humanos, embora exista sociedades entre outras espécies:
Mas não há cultura porque não existe uma tradição viva, conscientemente elaborada que passe de geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular e única uma dada comunidade relativamente às outras (construídas de pessoas da mesma espécie). (DAMATTA, 1987, p. 48).
Além de sermos a única espécie produtora de cultura, esta é bastante diversificada entre nós. Ela se define conforme a nacionalidade, a região, a etnia, a condição social, as experiências históricas particulares dentro de uma mesma sociedade. A rigor, poderíamos defini-la como cultivar, entretanto entendemos necessário ampliarmos o conceito de cultura.
Tomaremos emprestado a definição de cultura feita por Edward Tylor: "Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crença, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". (TAYLOR apud LARAIA, 1999, p. 25)
Não buscamos aqui apresentar um conceito fechado de cultura, mas pensá-la como um produto dinâmico das experiências do homem no tempo; ou poderia ser o oposto, as experiências históricas resultarem da cultura. Apresentamos mais uma compreensão sobre o conceito: (2012, p. 4) tem desse conceito:
O conceito de cultura que defendo, e cuja finalidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente o semiótico. Acreditando, como Marx Weber, que o homem é um animal amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação. (GERTZ, 2012, P. 4)
A explicação que ora procuramos é a dos efeitos da cultura no território, na formação da identidade de grupos quilombolas. Sabemos, entretanto, das várias interpretações e definições para o conceito. Todavia, o trabalho não requer tal problematização.
Levando em conta a definição Tylor (apud LARAAIA, 1999), vemos todas as possibilidades de desenvolvimento das potencialidades humanas. Dessa forma, cultura aparece como um produto histórico, resultante de uma construção, que independe de determinações preestabelecidas biologicamente.
Assim, o intento é não somente debater o conceito de cultura, mas pensar como comunidades quilombolas se mantêm mais ou menos como grupos com traços peculiares aos remanescentes de quilombos. Essa ideia encontra melhor esclarecimentos nas palavras de Laraia: "[...] segundo a qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou". (LARAIA, 1999, p. 36-37) Por isso trataremos os quilombolas como sociedade diferenciada, levando em conta sua histórica distinção na relação com a terra.
Ademais, entendemos essa relação da cultura com o espaço como produtora de fronteira, uma vez que cada grupo ou nação desenvolve seus traços culturais sobre um território específico. E dentro deste conseguimos vislumbrar: "A fronteira, esse produto de um acto jurídico de delimitação, produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta" (BOURDEIEU, 2006, p, 115). Assim, a fronteira não é só uma demarcação do espaço físico; é também guardiã da reprodução cultural. Ao mesmo tempo em que atua sobre o espaço:
As formas espaciais são produto das intervenções teleológicas, materialização de projetos elaborados por sujeitos históricos e sociais. Por trás dos padrões espaciais, das formas criadas, dos usos do solo, das repartições e distribuições, valores interesses, mentalidades, visões de mundo. Enfim, todo o complexo universo da cultura, da política e das ideologias (MORAES, 2002, p. 16).
E por essa razão que inserimos essa discussão para pensar as comunidades quilombolas, pois entendemos que elas, por sua historicidade própria, são territórios dominados também pelas relações culturais desenvolvidas por esses povos, são, conforme ALMEIDA (s/d) grupos etnicos.
Enfim, O território só existe enquanto resultado da ação humana, quer seja do Estado ou de setores da sociedade. Tanto as formas de ocupação quanto a relação com o espaço dependem dos valores culturais, dos interesses dos grupos. Assim, entendemos que a transformação do espaço em território, no caso dos grupos quilombolas, tem dupla relação: de um lado, a exclusão do Estado; de outro, a necessidade de ter "um lugar para chamarem de seu".
Ao se identificarem como quilombolas e reivindicarem o direito de permanência na área ocupada não se trata apenas de resolver, no caso deles, um problema fundiário, pois não são apenas trabalhadores rurais; os quilombolas são reconhecidos como grupos com características culturais próprias. Essas características não só constroem a identidade do grupo, mas confere-lhes capacidade de intervenção: primeiro o de intervir no espaço; depois, o de perpetuar a atualização de suas práticas culturais. Isto é, de resistir num lugar e que suas identidades se estreitam com a territorialidade:
Enquanto a territorialidade diz respeito, em particular, ao indivíduo e lugar apropriado, a identidade espacial, para ser factível e reconhecida pelos demais grupos sociais, tem a necessidade de, primeiro, ser construída no interior do próprio grupo, dentro de um espírito de solidariedade, e, ainda, uma relação forte com o meio ecológico e as infra estruturas e com os membros de sua "comunidade" (CAMPOS, 2012, p. 37).
O território resulta, enfim, da ação cultural do grupo. O apego a determinado espaço se dá não pelo espaço em si, mas pelo que os indivíduos constroem naquele lugar. Assim, os valores culturais que ligam identitariamente os sujeitos no espaço são fundamentais. A religião, a língua, os costumes, os saberes e a produção material são que moldam o território e o que provocam o pertencimento coletivo. Por isso essa relação entre território, cultura e poder nos parece fundamental.
O território só existe enquanto resultado da ação humana, quer seja do Estado ou de grupos. Tanto as formas de ocupação quanto a relação com o espaço dependem dos valores culturais, dos interesses dos grupos. Assim, entendemos que a transformação do espaço em território, no caso dos grupos quilombolas, tem dupla relação: de um lado, a exclusão do Estado; de outro, a necessidade de ter um lugar para chamarem de seu.
Ao se identificarem como quilombolas e reivindicarem o direito de permanência na área ocupada, não se trata apenas de resolver, no caso deles, um problema fundiário, pois não são apenas trabalhadores rurais; os quilombolas são reconhecidos como grupos com características culturais próprias. Essas características não só constroem a identidade do grupo, mas confere-lhes poder: primeiro, o de intervir no espaço; depois, o de perpetuar a atualização de suas práticas culturais.
O território resulta, enfim, da ação cultural do grupo. O apego a determinado espaço se dá não pelo espaço em si, mas pelo que determinado grupo constrói naquele lugar. Assim, os valores culturais que ligam identitariamente os indivíduos no espaço são fundamentais. A religião, a língua, os costumes, os saberes e a produção material são que moldam o território e o que provocam o pertencimento coletivo. Por isso essa relação entre território, cultura e poder nos parece fundamental.
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Os Quilombos e as Nova Etnias. In: O'Dwyer, Eliane Catarino (org.) Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2002. Disponível em: https://docs.google.com/file/d/0B2_ZK-qR9WEKYTIyZDdlMTUtMDliNS00NTJjLTgzM2ItNWY2NDY1MDMzMTZm/edit?hl=pt_BR acesso em 20 de maio de 2014.
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1. Graduado em História. Mestrando em Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – Unidade Universitária de Ciências Sóico-Econômicas e Humanas - Universidade Estadual de Goiás - Professor da Universidade Estadual de Goiás – UEG E-mail: neilson.mendes@gmail.com
2. Professora do Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – Unidade Universitária de Ciências Sóico-Econômicas e Humanas - Universidade Estadual de Goiás – Doutora em História – Universidade Federal Fluminense - UFF – Professora do Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – UEG e-mail: dportilho@uol.com.br
3.Professora do Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – Unidade Universitária de Ciências Sóico-Econômicas e Humanas - Universidade Estadual de Goiás – Doutora em Geografia – Universidade Federal de Uberlândia- UFU – Professora do Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – UEG e-mail: jnsluz@hotmail.com
4. Professora do Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado – Unidade Universitária de Ciências Sóico-Econômicas e Humanas - Universidade Estadual de Goiás – Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp - Bolsista do PROPIB (Programa de Incentivo à Pesquisa e Produção Científica) E-mail: divalunas@gmail.com
5. Este artigo integra a dissertação de mestrado a ser defendida em março de 2015.
6. Em razão das peculiaridades no uso do território é que estamos chamando os quilombolas de micro sociedades. Clovis Moura (2001) chamava os quilombos do tempo do cativeiro de "sociedade alternativa", não cremos ser possível usar o mesmo conceito para os remanescentes de quilombo.