1. Introdução
Inovação é um termo da moda. As palavras relacionadas a elas são: novidade, criatividade, aprendizagem, competitividade, liderança, somente para citar as mais lembradas. Mesmo que haja certa vulgarização deste termo, pelo uso mercadológico intensivo, não temos como negar que o início do século XXI é marcado pelos fenômenos da inovação e da sustentabilidade.
Num contexto social, a utilização do termo inovação transcende à parte de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e se expande para a gestão e o desenvolvimento da organização como um todo, adquirindo um novo status quo, antes figurada como uma função organizacional agora passa a ser uma competência da organização. Assim, dizer quais os limites, os métodos, as práticas e o campo do saber desse termo é tarefa árdua e assume uma perspectiva ampla e multidisciplinar, seguindo uma tendência paradigmática contemporânea, lançando mão de vários pontos de vista, para "ler e interpretar" os aspectos multifacetados de um tema. Compreender a inovação através deste olhar é, antes de qualquer coisa, perceber uma nova forma de interação entre teoria e prática, formando uma práxis distinta e única.
O objetivo deste artigo é discutir e ampliar o conhecimento sobre as inter-relações entre cultura e aprendizagem para a inovação em contextos específicos, no caso em tela, organizacional. O entrelaçamento dos fenômenos, cultura e aprendizagem, irá construir uma "atribuição de sentidos" (ORLANDI, 1996, p.7) para este fenômeno.
Definir cultura não é uma tarefa anódina. Como é de praxe ressaltar, os antropólogos americanos Alfred Louis Kroeber e Clyde Kluckhohn identificaram e classificaram 156 definições de cultura em um livro lançado nos anos 1950 (KROEBER e KLUCKHOHN, 1952). O historiador britânico Adam Kuper, na introdução de seu livro "Cultura: a visão dos antropólogos" (KUPER, 2002), sugere que a banalização do termo cultura implica em imprecisões não apenas no seu usos acadêmicos, mas em políticas públicas e no consumo de bens e serviços ditos "culturais". Para os fins do presente seção, propõe-se um conceito de cultura operacional e institucionalmente marcado, a saber, como um,
[...] conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou grupo social [englobando], além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. (UNESCO, 1982, p.39)
De forma complementar, o fenômeno da aprendizagem é analisado sob uma perspectiva ampla, ou seja, relacionado às experiências no trabalho, sendo um processo político e cultural. Neste sentido, existe uma incorporação de práticas informais, de conhecimento tácito, de redes e comunidades de aprendizagens formadas na estrutura formal ou informal da organização e processos de participação, no processo de aprendizagem (BROWN e DUGUID, 1996; COOK e YANOW, 1996; LAVE e WENGER, 1991; ELKJAER, 2001).
No caso da aprendizagem organizacional, uma das metas é a melhoria das ações e resultados de uma organização. Uma organização voltada para aprendizagem é aquela que tem novas competências instaladas, capacitando a organização para dar conta das contingências ambientais externas e internas (KARAWEJCZYK,2013). Nesse sentido, considerar aprendizagem e cultura como um conjunto é afirmar as íntimas relações entre o conhecimento individual e os contextos social e organizacional. Mais do que isso: se o objetivo é compreender como aprendizagem e cultura organizacionais dialogam e contribuem para a inovação, é fundamental retornar sobre conceitos-chave como cultura, aprendizagem e, evidentemente, inovação.
Assim, as breves proposições aqui apresentadas entrelaçam as duas abordagens, a aprendizagem e a cultura, demonstrando que, em estudos sobre inovação nas organizações, é imprescindível considerá-las, sob pena de reducionismos ou análises incompletas da realidade organizacional. Para isto, este artigo está estruturado em quatro seções distintas: (a) cultura e inovação, que pretende definir conceitualmente estes dois fenômenos, mostrando as relações íntimas entre cultura como tradição e comunicação e a necessidade de ambientes favoráveis ao reconhecimento intersubjetivo e construção de acordos comunicacionais; (b) relações intersubjetivas e construção de acordos: elementos epistemológicos de culturas de inovação, implicando em analisar as condições objetivas e subjetivas de tais acordos, em particular no que se refere à criação e duração de ambientes favoráveis pautados pelo reconhecimento intersubjetivo; (c) a dimensão multinível da aprendizagem: uma construção dialógica para processos de inovação, onde uma vez definida como processo dinâmico e multifacetado, está diretamente relacionada a reinvenção da realidade organizacional; e, (d) nas considerações finais algumas articulações e possibilidades na análise da cultura e da aprendizagem para a inovação, devem então ser considerados os processos individuais, os processos organizacionais, o ambiente e contexto em que se processa a inovação, além do segmento de mercado e setor de atuação da organização.
2. Cultura e inovação: algumas definições
Toda indagação a respeito de condições culturais favoráveis ou desfavoráveis à inovação depende de uma definição clara daquilo que se compreende por "cultura" e "inovação". No quadro deste capítulo, o ponto de partida é definição schumpteriana de inovação, que consiste em fazer coisas diferentes, criando rupturas e desequilíbrios que tornem possível saltos de desenvolvimento econômicos e, por extensão, sociais (SCHUMPETER, 1997).
Essa definição interessa por duas grandes razões. A primeira delas é mostrar as relações íntimas entre a palavra "inovação" e a figura do empreendedor. Como sugere Joseph Alois Schumpeter (1997), o inovador é um líder, alguém que propõe novidades que geram valor econômico. Ainda que faça coisas novas, o inovador se diferencia do inventor em virtude da relevância e impacto econômicos de suas propostas. Além disso, aquilo que o inovador faz de novo não precisa ser necessariamente uma invenção - ele pode partir de um produto ou processo já existente e antecipar o momento adequado de lançá-lo em um novo mercado, por exemplo. O inovador é, nas palavras de Schumpeter (1997), um empreendedor. Ou seja: um tipo ideal que conjuga as pretensões do capitalista e do inventor e cuja emergência depende tanto de motivos propriamente individuais ou psicológicos, como os prazeres da competição, da conquista e da aventura, quanto de uma função a ser exercida na vida social, seja a de desestabilizar os equilíbrios econômicos e propulsionar saltos de desenvolvimento.
A segunda razão pela qual a definição schumpteriana de inovação importa neste capítulo refere-se à ênfase na desestabilização e no desequilíbrio. Como sublinha Ana Cristina Braga Martes, o alvo dos escritos de Schumpeter eram os trabalhos do iminente economista francês Léon Walras:
Para Schumpeter, inovar produz tanto desequilíbrio quanto desenvolvimento (diferente de crescimento econômico enquanto mero aumento do capital), numa situação específica em que a competição moderna entre os capitalistas não se dá por meio do preço, mas sim da tecnologia. (MARTES, 2010, p.255)
Nesse quadro, entende-se que o desafio das relações entre cultura e inovação não pode se inscrever numa espécie de tradição ou padrão de comportamentos que seria intrinsecamente favorável à criação de novidades portadoras de valor econômico para uma empresa ou sociedade. À luz de Schumpeter (1997), entende-se que a competição moderna é sistêmica e dependente de inovações tecnológicas, de tal forma que os grandes saltos de desenvolvimento não se dão através da competição por preços. Mais ainda: a fim de dar conta do potencial de culturas organizacionais e societárias que favoreçam a emergência e de novas tecnologias, é fundamental relacionar os motivos individuais (ou psicológicos) do perfil inovador (ou empreendedor) com as condições sociotécnicas efetivamente colocadas em prática nas organizações.
Se a definição schumpteriana de inovação traz à tona os quadros gerais dos motivos individuais e psicológicos do perfil inovador, colocando-os no âmago de sua teoria do desenvolvimento, a questão das condições sociotécnicas no seio da empresa, de sua cultura, fica em aberto. Afinal, para obter sucesso e inovar, bastaria ao empreendedor apenas os prazeres pela competição, conquista e aventura, somados a um contexto econômico e tecnológico favorável? Como ficam as suas relações imediatas grupos e instituições sociais? Se um empreendedor inova, ele o faz independentemente de processos de aprendizagem realizados com e a partir de outras pessoas?
Para os autores, a resposta a essas questões tende a ser negativa. Entende-se que a cultura organizacional, suas ideias, características, modos de vida e de produções etc., colaboram para a emergência de inovações e, por extensão, de empreendedores. A cultura é tradição. É identidade coletiva. Sobretudo, é um processo dinâmico de consolidação e transmissão de informações cuja função é garantir a coesão de um grupo ou organização. Mas, por outro lado, é um processo de reinvenção das tradições: para sobreviver e se adaptar aos demais sistemas em que se insere, toda cultura organizacional precisa inventar para si novas formas, práticas e processos que permitam a continuidade de seus valores e convicções fundamentais.
Relacionar inovação, cultura e aprendizagem organizacional depende, portanto, de uma visão precisa dos diferentes níveis onde são estocadas e processadas informações: um primeiro nível, de caráter intuitivo, onde surgem efetivamente insights que podem se desdobrar em novidades de valor ou impacto econômico para uma empresa ou para a sociedade como um todo; um segundo nível, de caráter integrativo ou comunicacional, no qual se inscrevem as interações entre os sujeitos, o que envolve não apenas pessoas, mas objetos, tecnologias, infraestrutura, disposição das coisas e dos espaços etc.; por fim, um terceiro nível, de caráter mais institucional, que corresponde à consolidação das novas propostas, seja em forma de normas, sistemas e procedimentos.
Os três níveis supracitados oferecem um quadro interpretativo para diagnósticos de casos concretos de inovação e invenção em organizações. A convicção dos autores é a de que uma receita de cultura organizacional inovadora não é inviável, ainda que seja possível descrever algumas linhas fortes de como determinadas organizações se prestam mais ou menos à inovação. Uma delas corresponde ao nível individual e é muito bem apresentada pelo tipo ideal do empreendedor schumpeteriano. Nesse caso, a inovação depende de motivos psicológicos como desejos conjugados de competição, de conquista e de aventura. A seção a seguir procura aprofundar o segundo nível, que remete às relações intersubjetivas e práticas comunicacionais. O objetivo é mostrar as relações íntimas entre cultura como tradição e comunicação e a necessidade de ambientes favoráveis ao reconhecimento intersubjetivo e construção de acordos comunicacionais.
3. Relações intersubjetivas e construção de acordos: elementos epistemológicos de culturas de inovação
Enquanto tradição e identidade coletiva, a cultura é reinventada a cada ato de comunicação. Quer seja um diálogo entre dois indivíduos ligados por relações de parentesco, quer seja quando uma organização ou instituição constrói um monumento, a comunicação da cultura é eminentemente interacional e depende de acordos práticos, tácitos ou explícitos, para garantir a passagem da informação. Ora, do ponto de vista de um debate a respeito das relações entre cultura, aprendizagem e inovação, isso implica em analisar as condições objetivas e subjetivas de tais acordos, em particular no que se refere à criação e duração de ambientes favoráveis pautados pelo reconhecimento intersubjetivo.
Os acordos comunicacionais são objeto de discussão de diversas áreas das ciências humanas e sociais. Em Jurgen Habermas, representante maior da chamada Escola Crítica ou de Frankfurt, os acordos comunicacionais são, antes de tudo, um princípio emancipatório. Para o autor, não de deve reduzir a razão ao seu caráter meramente instrumental, mas voltá-la para o entendimento e, portanto, para a reprodução simbólica da sociedade. Para que isso ocorra, a razão deve ser comunicativa, pautando-se pelas estruturas profundas da vida social, isto é, de seus sistemas simbólicos, e visando à compreensão mútua e à limitação instrumentalização da vida social por grupos e classes dominantes.
Na prática, o que Habermas propõe é a valorização do caráter pragmático e intersubjetivo da razão emancipatória pautada em acordos comunicacionais. E ele faz isso dialogando com o trabalho de filósofos analíticos como John Austin e Ludwig Wittgenstein. Assim, é preciso levar em conta que a razão comunicacional, para se efetivar, precisa dispor de condições de significação no contexto em que se produz. Se é possível "fazer coisas com as palavras", como diria Austin (1975), isso se deve por acordos que se organizam tacitamente entre os sujeitos que se comunicam direta ou indiretamente. Bem entendido, os acordos não independem de descritores sociológicos como capital econômico e capital simbólico. Não obstante, as próprias bases do entendimento e desentendimento mútuo dependem de aspectos comunicacionais pragmáticos que se desdobram no momento em que se produzem e segundo os acordos intersubjetivos que se estabelecem ou não entre eventuais parceiros de comunicação.
Para os fins desta discussão sobre cultura, aprendizado e inovação, o que se pretende é sublinhar como as condições objetivas e subjetivas de acordos comunicacionais são fundamentais para a criação e duração de ambientes favoráveis à inovação. Em aceitando-se que os acordos comunicacionais estão na base do entendimento ou desentendimento mútuo, o que se propõe aqui é que as organizações que visam à inovação devem se nortear por ética normativa que favoreça compromissos e acordos situacionais a partir de premissas gerais como competência linguística e/ou acesso igualitário a recursos sociais e informacionais. Em linhas simples, isso significa dizer que as culturas organizacionais devem ser pensadas dentro de um horizonte ético onde as trocas informacionais que visem à inovação não sejam bloqueadas por barreiras físicas, psíquicas e sociais.
O desbloqueio comunicacional possível a partir de acordos comunicacionais no seio da organização facilita a dinamização da cultura organizacional e dos processos de aprendizagem. Nesse sentido, uma cultura para a inovação também é reinventada; negociam-se suas "regras de uso" (WITTGENSTEIN, 2003; CALLON E LATOUR, 1991); desestabiliza-se barreiras psíquicas e sociais cuja estabilidade sustenta situações onde os sujeitos de interação não se reconhecem mutuamente como parceiros intersubjetivos (HONNETH, 2003). Sob esse ponto de vista, se todo processo de reinvenção de culturas que visem à inovação independe de uma análise pormenorizada, teórica, é convicção destes autores que tal análise pode permitir uma reflexão a respeito dos atos de comunicação que permitem a o grupo ou organização em questão transmitir sua cultura inovadora. Do mesmo modo, a análise de situações práticas a partir de suas regras de uso e de seus conteúdos intersubjetivos convém na demonstração de como uma dada "cultura" favorece ou não aquilo que se entende por inovação.
Ora, pensando o desbloqueio comunicacional na análise multinível do processo de estocagem e processamento de informações, que está em jogo no caso das relações intersubjetivas e práticas comunicacionais são as condições psicodinâmicas dos termos de acordo, que podem ser conscientes ou inconscientes, bem como as condições sociais que organizam tal debate ou prática social, que também podem ser explícitos ou tácitos do ponto de vista dos parceiros de relação. Dito de outra maneira, uma análise multinível é necessariamente sistêmica: ainda que a intuição ou os motivos do empreendedor/inovador possam ser categorizados didaticamente como pertencendo a uma dimensão mais propriamente individual, não deve restar dúvidas que essas intuições e motivos não tem sentido para além das relações intersubjetivas. Ao mesmo tempo, para que as relações intersubjetivas se realizem em termos de reconhecimento mútuo, os acordos comunicacionais dependem da disposição individual, psíquica e psicodinâmica, dos sujeitos envolvidos.
Bem entendido, esses dois elementos contextuais da produção de acordos que podem favorecer ou não a inovação não excluem a análise formal ou interna do movimento das ideias e dos processos de aprendizagem. Em outras palavras, o conteúdo comunicacional e as estruturas lógicas que permitem ou bloqueiam a inovação são levados em conta desde que indexados nas situações em que são produzidos. Nesse sentido, não há uma cultura da inovação em si mesma, balizada em conteúdos ou processos intrinsecamente mais "ricos" que outros. O que se pode ter são algumas hipóteses fortes a respeito de como se processa a inovação em determinados campos de produção e de saber, desde que esses sejam mapeados e diagnosticados através de conjuntos significativos de situações onde a inovação foi constatada e de outros, onde ela não foi. A seção seguinte avança ainda mais nessas hipóteses a partir de uma abordagem dos processos de aprendizagem organizacionais que, por sua natureza, impregnam-se dessas situações favoráveis e desfavoráveis à inovação.
4. A dimensão multinível da aprendizagem: uma construção dialógica para processos de inovação
O termo aprendizagem tem gerado múltiplos olhares e análises por parte de pesquisadores e práticos dos estudos organizacionais. Um dos pontos em comum entre os estudiosos do tema é que a aprendizagem propulsiona processos de mudança e no caso em tela, inovação. Como se pretende mostrar em seguida, a noção e o conceito de aprendizagem dialoga diretamente com os aspectos comunicacionais e psicodinâmicos apresentados nas seções anteriores deste capítulo. Uma vez definida como processo dinâmico e multifacetado diretamente relacionado à mudança e a reinvenção da realidade organizacional, a aprendizagem se apresenta como um conceito fundamental para uma reflexão multinível a respeito das relações entre cultura e inovação.
Ao discutir sobre aprendizagem, Prange (2001) evidencia a imprecisão do termo. Trata-se, com efeito, de uma palavra que remete a noções do senso comum e a uma multiplicidade de entendimentos e visões conceituais. A esse respeito, Tsang (1997) diz que a geração de definições claras dos conceitos auxilia na melhoria da pesquisa organizacional e mais especificamente com relação ao conceito de aprendizagem, por ser este complexo e multidimensional. Nesse diapasão, autores (SHRIVASTAVA, 1983; EASTERBY-SMITH, 1997; TSANG, 1997; PRANGE, 2001; ANTONELLO, 2011) avançam na possibilidade de criação de um quadro único de abordagens sobre a aprendizagem. Ao final das contas, Easterby-Smith (1997) e Ruas e Antonello (2003) sugerem a elaboração de quadros de referência, com perspectivas diferentes sobre este tema, que serviriam de matrizes de análise para este fenômeno.
Quer seja com vistas a um conceito comum, exclusivo, ou para a elaboração de quadros de referência, entende-se que o conceito de aprendizagem depende de uma atribuição de sentido eminentemente contextual. Ou seja: a aprendizagem que se discute aqui é a que se realiza em contextos organizacionais. Nesse sentido, Tsang (1997) comenta que a aprendizagem em organizações compreende as atividades que acontecem dentro de um tipo qualquer de organização e como tal gera metáforas sobre a transferência de informações de um domínio individual (fonte) para um fenômeno menos conhecido que são as organizações, resguardando-se de simplificações e reduções. Sob um outro viés, Bastos et. al. (2002, p.11) coloca que "o uso ingênuo do conceito de aprendizagem organizacional, por exemplo, associa-se a riscos de reificação e antropomorfização da organização".
Aceitando-se esses limites contextuais, a aprendizagem nas organizações é definida como um processo complexo, dinâmico e multifacetado, associado à mudança organizacional, que envolve a gestão do conhecimento interno e externo da organização, sejam eles tácitos ou explícitos, acontecendo através de uma rede de aprendizagem socialmente construída, considerando uma perspectiva multinível (individual, grupal e organizacional) em que são compartilhados processos e práticas formais e informais, com vistas à melhoria, adaptação e reinvenção da realidade organizacional (KARAWEJCZYK, 2005). Essa definição acompanha não apenas a literatura especializada, mas, sobretudo, as relações entre inovação e cultura organizacionais discutidas até aqui.
Tal como definida aqui, a aprendizagem organizacional não circunscreve os processos de inovação ao indivíduo ou à organização. Ainda que a aprendizagem possa ocorrer tanto no nível individual (ARGYRIS e SCHON, 1996; KOLB, 1997; REVANS,1982), como no organizacional (PROBST e BUCHEL, 1997; EDMOLSON e MOINGEON, 1998; SHRISVATAVA, 1983), o que se propõe aqui é uma perspectiva multinível (FIOL e LYLES, 1985; KLEIN, DANSEREAU e HALL, 1984; SWIERINGA e WIERDSMA, 1995; KIM, 1998). Sob essa perspectiva, as organizações são entidades complexas e integradas na prática como sistemas de diferentes níveis, ou seja, cujos processos que a integram ocorrem em níveis individual, grupal ou organizacional.
Como estabelecem Klein e Kozlowski (2000, xvi ), "os teóricos multinível trabalham sobre a premissa que características individuais, de grupo e organizacional, interagem e combinam entre si, para moldar os resultados individuais, grupais e organizacionais". Estes autores partem do pressuposto de que a teoria geral dos sistemas é essencial para compreender a abordagem multinível, pois ela poderia auxiliar no entendimento e na compreensão dos fenômenos micro e macro organizacionais e no nosso caso, dos processos de inovação.
Relacionando a abordagem multinivel com a aprendizagem, constata-se que os processos e práticas sistemáticas de aprendizagem ocorrem tanto no âmbito formal como no informal. Por essa razão, elementos como aprendizagem informal, redes de aprendizagem e comunidades de prática também podem contribuir no estabelecimento de um quadro de referencia multinível e para um entendimento expandido sobre a inovação nas organizações.
A proposta de um quadro de referências sobre aprendizagem de Crossan et. al. (1999) procura integrar quatro processos de aprendizagens numa perspectiva multinível, integrando conceitos de renovação estratégica e o reconhecimento entre a exploração e a utilização do conhecimento (MARCH, 1996), como questões críticas para o processo de aprendizagem e inovação. A figura 1 descreve este framework.
Figura 01: O processo dinâmico da aprendizagem numa perspectiva multinivel
Fonte: adaptado de Crossan et al. (1999)
Os três níveis de aprendizagem – individual, grupo e organização – definem a estrutura e o processo no qual a aprendizagem acontece. Intuição, interpretação, integração e institucionalização são os elos de ligação entre cada um destes níveis. Intuição e interpretação ocorrem no nível individual (CROSSAN et. al., 1999). No caso de culturas que visem à inovação, trata-se do ponto de vista do empreendedor schumpeteriano, com seus motivos competição, conquista e aventura. Interpretação e integração, por sua vez, se dão no nível do grupo ou das práticas comunicacionais. Nesse caso, o que está em jogo são as relações intersubjetivas e a consolidação de um horizonte normativo onde as interações entre os sujeitos não sejam bloqueadas por aspectos físicos, psíquicos ou sociais. Integração e institucionalização, por fim, se realizam no nível organizacional. Elas correspondem à formalização das ideais e informações, quer seja em produtos e serviços ou em normas, sistemas e procedimentos. Porém - e esse é um ponto fundamental -, posto que o processo opera nos três níveis, é difícil demarcar precisamente onde começa um e termina o outro.
O processo ligado à intuição está envolvido com o pré-consciente, sendo um fator crítico para a compreensão de como as pessoas entendem algo novo. Assim, intuir está mais relacionado ao conhecimento tácito do que ao explícito. Pode-se relacionar, também, ao conceito de modelos mentais individuais. O resultado deste processo de aprendizagem está intimamente relacionado à dimensão individual e pode gerar novas experiências, imagens ou metáforas para o indivíduo. No caso da presente discussão sobre inovação, não se deve perder de vista o empreendedor schumpeteriano, cujo processo de aprendizagem não deixa de dialogar com os motivos que guiam seu ímpeto pela inovação.
O processo de interpretação pode acontecer tanto no nível individual quanto no nível grupal. Os indivíduos ao intuírem sobre algo usam um processo interno de interpretação da realidade, gerando mapas cognitivos sobre as situações e relacionamentos com os outros através da linguagem. Este processo de aprendizagem acontece através acordos comunicacionais, que garantem a instauração de interações intersubjetivas favorecedoras dos processos de inovação e reinvenção da cultura organizacional.
O processo de integração acontece predominantemente nos níveis grupal e organizacional. De posse dos significados compartilhados pelo processo de interpretação, a integração contribui para a formalização de pensamento e ação, bem como para o estabelecimento durável de significados compartilhados. Interessante notar que esses entendimentos compartilhados podem ser revelados através do processo de contar histórias sobre a organização, onde os membros dos grupos integram seus conhecimentos e aprendizagens, gerando enredos sobre a cultura da organização, ou os processos de mudanças vivenciados por ela.
Por fim, o processo de institucionalização acontece no nível organizacional. As práticas e processos de aprendizagem acabam gerando novas estruturas, sistemas e procedimentos, reorientação estratégica, prescrevendo novas rotinas organizacionais, representando a memória organizacional. Porém, o processo de institucionalização pode não capturar todas as aprendizagens desenvolvidas nos níveis individual e grupal, por que leva tempo realizar estas transferências, do nível individual para o grupal e do grupal para o organizacional. Ao mesmo tempo, a captação de toda dinâmica da cultura organizacional pode ser considerada uma quimera: seja porque a cristalização da cultura em normas, produtos e procedimentos formais tende a mortificar a cultura e a inovação, seja porque a vida social, dentro de uma organização ou fora dela, tende a extrapolar as tentativas de formalização.
Nesse sentido, é preciso levar em conta os processos informais de aprendizagem que fazem parte do cotidiano organizacional, onde os membros da organização reconhecem que aprenderam. São eles que, no final das contas, dão vida e dinamizam a cultura organizacional e podem colaborar para as inovações.
Considerada a partir dos três níveis supracitados, a aprendizagem organizacional dialoga ativamente com o processo de inovação. A partir do perfil empreendedor schumpeteriano e das bases da pragmática comunicacional, as inovações tendem a se produzir de forma dialógica entre os níveis (individual, grupal e organizacional) e segundo os processos de intuição, interpretação, integração e institucionalização. É importante frisar, porém, o quanto os aspectos sociais culturais interferem nessa dinâmica. Se, de um lado, inovação e aprendizagem devem estar estreitamento vinculadas, incorporadas ao próprio DNA da organização, sob risco de ser apenas um retoque aparente em produtos, serviços, processos ou práticas de gestão, de outro, tratam-se de práticas humanas que escapam à análises definitivas. A fim de entendê-las, cada organização deve refletir sobre si mesma, buscando compreender como os diferentes níveis colaboram para facilitar ou bloquear a inovação.
5. Considerações finais: algumas articulações e possibilidades
Em função da complexidade dos fenômenos aqui discutidos, entende-se que inovação é dependente de:
a) considerar aprendizagem e cultura como um conjunto de relações entre conhecimento individual e conhecimento organizacional, contextos sociais específicos de atuação;
b) não existe cultura de inovação voltada para si mesma;
c) a aprendizagem deve ser vista sob uma perspectiva multinível, dentro dos âmbitos formais e informais.
As organizações inovam quando consideram a cultura organizacional como colaboradora da emergência inovativa, sensíveis às ideias, características, modos de vida e de produção que existe dentro da organização. Nesse sentido, a compreensão dos processos e práticas de aprendizagem organizacional se configura como possibilidades de compreensão de como as organizações inovam e aprendem com as inovações colocadas em prática.
A partir das revisões e análise da literatura deste ensaio téorico é importante ressaltar elementos dentro de um escopo mais especifico:
1) Cultura e aprendizagem numa perspectiva multinivel: compreender onde estão estocadas e processadas as informações. Num nível intuitivo, comunicacional ou institucional. Esta abordagem considera que cultura está numa perspectiva micro e macro, ao mesmo tempo. Schein (1986) descreve níveis da cultura, numa abordagem ontológica da mesma. Da mesma forma, a aprendizagem adota uma referencia de que a organização aprende coletivamente, num processo top-down e botton-up de inter-relação;
2) Epistemologia da cultura de inovação: o processo comunicacional reinventa a cultura. Quais as condições subjetivas e objetivas dos acordos comunicacionais? Quais os limites comunicacionais estabelecidos em um ambiente favorável à inovação? Nesse sentido é importante pensar em uma ética normativa destes processos, onde as trocas de conhecimento entre os membros de uma organização não sejam limitados por barreiras individuais ou organizacionais;
3) Ambiente de aprendizagem: Holman, Pavlica e Thorpe (1997) colocam que os indivíduos não podem ser vistos isoladamente de suas histórias, papéis e posições que ocupam, na vida social e na vida organizacional. Richter (1998) diz que uma das ferramentas da aprendizagem é a linguagem, isto porque as pessoas coproduzem seus entendimentos sobre o que e como aprendem em um ambiente de conversação e construção de sentidos. Assim, novas aprendizagens relacionadas com inovação, dependem de ambiente adequado e da emergência de novos processos e padrões organizacionais.
Na análise da cultura e da aprendizagem para a inovação, devem então ser considerados os processos individuais, os processos organizacionais, o ambiente e contexto em que se processa a inovação, além do segmento de mercado e setor de atuação da organização. Para transcender a relação de inovação com P&D, se configurando como uma competência organizacional, ela não pode ficar restrita à acumulação de informação e conhecimento, mas também à sua disseminação na própria memória organizacional.
Uma organização voltada para a inovação dedica-se a explorar e melhorar todos os seus sistemas e processos, como base para a construção de novas competências, atingindo níveis estratégicos mais competitivos. Assim, cultura e aprendizagem são fenômenos includentes, que precisam ser analisados em uma perspectiva ontológica.
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