Introdução
A partir do Positivismo, o conhecimento empírico começa a perder seu valor. Daí, certamente, o descrédito pelo qual passou (e ainda passa) o uso das plantas medicinais ou fitoterapia popular. Tido como um conhecimento transmitido sem sistematização e comprovação, esse tratamento “alternativo” ficou restrito às populações rurais: indígenas, quilombolas, e, na cidade, às populações de comunidades populares.
Hoje já se admite aproximações entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento empírico, transmitido oralmente de gerações para gerações. Muitas pesquisas levam em consideração os saberes populares como base para a produção de novos fármacos. De forma que para estabelecer suas listas de plantas a serem investigadas, governos e laboratórios têm ouvido comunidades indígenas e grupamentos rurais, ou mesmo comunidades urbanas populares, que já obtiveram resultados eficazes no tratamento de doenças.
Este estudo é resultado de pesquisa realizada na Favela da Maré, Rio de Janeiro, Brasil, e parte da premissa que o conhecimento popular sobre o uso de plantas medicinais deve ser considerado como conhecimento válido. Os dados coletados comprovam essa hipótese e indicam, de fato, a difusão do conhecimento popular sobre plantas numa espécie de rede, já que as mulheres entrevistadas participam das atividades promovidas pela ONG Assistência Solidária e Ação Social (Grupo ASAS).
No decorrer deste trabalho serão apresentadas algumas polarizações entre o conhecimento popular e acadêmico, para, em seguida, expor a metodologia empregada na coleta e “apuração” dos dados. Após isso, os resultados alcançados serão dimensionados e analisados.
Conhecimento popular versus conhecimento acadêmico
Conforme observado por Rozemberg (2007), consultar a população e observar o seu quotidiano é fundamental para compreender as causas de algumas doenças, em determinados locais. Esta preocupação é indissociável do arcabouço do conhecimento popular, desenvolvido nas comunidades tradicionais, urbanas ou rurais.
É fato também que as camadas carentes da população, principalmente as rurais, sempre tiveram dificuldades em adquirir medicamentos industrializados. Os preços e a dificuldade de acesso facilitam a conservação e a difusão do conhecimento popular sobre o tratamento com plantas medicinais (Maioli-Azevedo; Fonseca-Kruel, 2007; Mendonça Filho; Menezes, 2003).
A literatura, no entanto, indica suspeitas de que o uso das plantas tem significados diferentes para usuários da zona rural e usuários das cidades. Nos centros urbanos, o uso das plantas funciona como apoio ao tratamento alopático. Já no interior, diversos grupos utilizam somente os vegetais para a cura (Mendonça Filho; Menezes, 2003).
As experiências realizadas na Ilha Grande, em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, mostram que, por questões financeiras e pelo isolamento insular, as famílias nativas usam as plantas para a cura de doenças como gripe, resfriado, problemas estomacais, torções, inflamações, infecções bacterianas e dores musculares. E, ainda, para tratamento de problemas crônicos, como diabetes e hipertensão (Mendonça Filho; Menezes, 2003).
Observa-se, entretanto, que alguns estudiosos apresentam como inconsistentes os saberes populares sobre plantas medicinais. Eles expressam “conflitos” que põem em lados opostos o saber científico e o tratamento feito de forma alternativa por leigos. Afirmam que não há por parte daqueles que usam as plantas, ou as prescrevem, conhecimentos suficientes para ministrar tratamentos com princípios ativos das plantas. Logo, tal saber não pode e não deve ser legitimado pela academia (Rezende; Cocco, 2002).
Estes autores põem em cheque a importância da valorização dos saberes populares. Questionam o fato de existirem ambulantes credenciados pela Prefeitura em feiras livres, no Rio de Janeiro, que vendem, livremente, plantas medicinais sem ou com pouca referência de informações seguras relacionadas à cura (Maioli-Azevedo; Fonseca-Kruel, 2007).
Se por um lado, o uso das plantas como terapia, remonta a própria história da humanidade, por outro, faltam registros históricos que permitam vincular, p.ex., plantas e doenças, de que formas foram preparadas e quais foram os efeitos colaterais. Na verdade, todo esse saber acumulado ficou por conta da transmissão oral. Por este motivo, a medicina tem dificuldade em encontrar segurança entre as vantagens e os perigos de seu uso, pela carência de literatura sobre o assunto. Segundo observou França (2008), boa parte dos registros são inconsistentes, porque os materiais e métodos usados não foram devidamente sistematizados.
No Brasil, desde o início da colonização, os povos que aqui chegaram, como os africanos escravizados trouxeram saberes ancestrais sobre o uso das plantas medicinais. Contudo, por se tratar de povos ágrafos, o saber transmitido sempre foi oral, veiculado pelos mais velhos que se “especializavam” em determinadas áreas. A medicina, ou poder de curar, é umas delas.
Além da grande diversidade de povos, o Brasil, por suas condições ambientais, também apresenta uma grande diversidade de plantas. Além disso, A utilização místico-religiosa de plantas em ritos e rezas é bastante comum no sincretismo religioso brasileiro. Mesmo quando as plantas ou seus produtos não são diretamente administrados, a ação terapêutica da planta estaria relacionada à capacidade de captar energias ruins (Garrido; Sabino, 2009)
No Espírito Santo, p.ex., na localidade de Santa Teresa, experiências de benzedeiras ligam a cura das plantas ao transcendental, foram encontradas (Medeiros et al., 2004). Nos cultos religiosos, sobretudo de origem africana, as plantas medicinais também são utilizadas. Estudos atuais apontam que numa amostra de 67 vegetais, 38 são usados em geral na umbanda, no catimbó (Ceará) e no candomblé (Bahia). Esses vegetais são utilizados nos rituais de cura para diversas doenças. Muitas plantas são consideradas nesses grupos como plantas sagradas, por servirem de elo com a divindade, responsável em definir diagnósticos e orientar o tratamento para a cura (Rodrigues; Carlini, 2003).
Padres de paróquias de áreas rurais do Estado do Paraná, interessados na difusão do conhecimento sobre plantas medicinais, sistematizaram experiências e registraram em um manual as doenças que são tratadas com as plantas, bem como a sua forma de administração e posologia (Korbes, 2002).
Outra experiência, dentre as diversas realizadas no Sul do país, revela o cuidado com que os moradores de Ponta grossa (PR) têm no momento da aquisição das ervas medicinais. As pessoas que participaram da pesquisa informaram que não cultivam o hábito de comprar plantas em erveiros, pois a origem das plantas é fundamental para o sucesso no tratamento, por isso elas obtêm suas ervas nos próprios quintais, e de vizinhos, ou de familiares.
Em Erexim (RS), um Padre, que reunia o saber popular, se uniu a um professor, representante do saber acadêmico, para registrar as experiências desenvolvidas pela população da cidade. Eles pesquisaram grupos étnicos para chegarem mais perto da certeza da eficácia do tratamento através de plantas medicinais (Franco e Fontana, 2004).
Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, outra experiência mostrou haver coerência entre o que foi citado pelos erveiros e o que reza na literatura em, ao menos, metade das plantas estudadas. Entre 27 plantas, nove foram relacionadas à capacidade analgésica e quatro relacionadas a problemas osteomusculares (Nunes et al., 2003).
É fato que no Brasil, o custo com medicamentos e tratamentos deixa o binômio saúde-doença numa equação desigual, o que poderia ser pior se não houvesse por parte da população carente o uso das plantas com finalidades terapêuticas. Apenas no Município do Rio de Janeiro são duzentos e dez pontos de vendas cadastrados em feiras livres. Se adicionar a este número as pessoas que vendem plantas sem cadastro, como as rezadeiras, os erveiros e os que cultivam plantas nos quintais de casa, este número toma grande proteção.
Há por parte de cientistas, contudo, uma preocupação com a certeza no que tange à identificação das plantas medicinais e as partes que realmente apresentam o princípio ativo (Bochner et al., 2012). Para tanto, as plantas a serem arquivadas devem ser coletadas com a maior riqueza de detalhes possível; depois de coletadas, devem ser arrumadas em folhas de jornal, de forma que não alterem sua morfologia. É sempre aconselhável reservar mais de um exemplar de cada espécie. A identificação deve ser incorporada à uma etiqueta, onde devem constar as informações necessárias. Após esta etapa, o material deve ser prensado para retirar o excesso de umidade. Esse tipo de arquivamento recebe a denominação de exsicata e deve passar por um bom processo de secagem, em que as plantas são expostas ao sol e feitas as trocas de jornal seco diariamente por, aproximadamente, dez dias, a fim de se ter bom resultado (Mello, 1974).
O cuidado dos cientistas não é só preciosismo acadêmico. Há pessoas que realizam o extrativismo, manipulam e comercializam as plantas medicinais sem possuir o saber tradicional e, nem tampouco, uma formação acadêmica. Estas pessoas estariam aproveitando-se da oportunidade de comercialização e a consequente aquisição de recursos financeiros, sem a real preocupação com a saúde do usuário ou com a preservação dos recursos naturais.
Metodologia
O trabalho foi realizado entre março de 2009 a setembro de 2010 na Comunidade da Maré, no município do Rio de Janeiro. Trata-se de pesquisa exploratória, descritiva, quali-quantitativa, onde os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais com 20 mulheres acima de 50 anos que frequentavam as atividades da ONG Assistência Solidária e Ação Social (Grupo ASAS). Cada participante respondeu a um roteiro contendo 10 perguntas abertas relativas ao conhecimento popular em plantas medicinais. Todas as participantes foram orientadas quanto aos objetivos da pesquisa e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Por se tratar de pesquisa etnográfica, baseada em estudos etnodirigidos direcionados ao conhecimento popular em plantas medicinais, utilizou-se como critério de inclusão: 1) ser moradora da Maré há, no mínimo, 30 anos; 2) ter acima de 50 anos; 3) ter interesse em plantas medicinais; 4) ser participante do grupo de ginástica, e 5) frequentar as atividades da horta comunitária. Os pesquisadores frequentaram a comunidade com para também entender as formas de organização e o uso das plantas medicinais.
Resultados e discussão
Existe uma cultura intrínseca no conhecimento popular em plantas medicinais, compartilhada entre as pessoas. Para esse estudo, tornou-se oportuno observar a forma de transmissão desta cultura. Foram citadas pelas entrevistadas 62 espécies de plantas medicinais, agrupadas em 35 famílias distintas, que são utilizadas para o tratamento de diversas doenças, conforme Tabela 1.
TABELA 1
Plantas com atividade medicinal, citadas
pelas mulheres da comunidade da Maré
Nome popular |
Nome científico |
Família |
Número de pessoas que citaram |
Abajerú |
Chrysobalanus icaco L. |
Chrysobalanaceae |
1 |
Alecrim |
Rosmarinus officinalis L. |
Lamiaceae |
3 |
Alfavaca |
Ocimum basilicum L. |
Lamiaceae |
1 |
Alfazema |
Lavandula angustifólia Mill. |
Lamiaceae |
1 |
Algodão |
Gossypium hirsutum L. |
Malvaceae |
1 |
Angico |
Anadenanthera colubrina Vell. |
Mimosoideae |
1 |
Aperta ruão |
Piperaduncum L. |
Piperaceae |
1 |
Arnica |
Arnica Montana |
Asteraceae |
11 |
Aroeira |
Schinus terebinthifolia Raddi. |
Anacardiaceae |
11 |
Arruda |
Ruta graveolens L. |
Rutaceae |
1 |
Assa-peixe |
Vernonia polyanthes Less. |
Asteraceae |
3 |
Baleeira |
Cordia verbenácea DC. |
Boraginaceae |
1 |
Bardana |
Arctium minus (Hill) |
Asteraceae |
1 |
Boldo |
Plectranthus barbatus Andrews |
Lamiaceae |
2 |
Boldo Alumã |
Vermonia condensata Baker |
Asteraceae |
1 |
Cabelo de Milho |
Zea mays L. |
Poaceae |
1 |
Calêndula |
Calendula officinalis L. |
Asteraceae |
1 |
Camomila |
Chamomilla recutita (L.) |
Asteraceae |
1 |
Cana do brejo |
Costus spicatus (Jacq.) S.w. |
Zingiberaceae (Costaceae) |
7 |
Cânfora (Losna) |
Artemísia camphora (L.) J. Presl. |
Masteraceae |
2 |
Capim limão |
Cymbopogon citratus (DC) Stapf. |
Poaceaea |
2 |
Carapiá |
Cinchona calisaya Wedd. |
Rubiaceae |
1 |
Carrapicho de carneiro |
Actium mimus Hill. |
Asteraceae |
1 |
Chapéu de Couro |
Echinodorus grandiflorus Mitch. |
Alismataceae |
1 |
Cipó Almêssega |
Mikania hirsutissima DC. |
Asteraceae |
1 |
Cipó mil Homens |
Aristolochia cyimbifera Mart. & Zucc. |
Aristolochiaceae |
1 |
Cipó prata |
Banisteria argyrophylla |
Aristolochiaceae |
1 |
Curatombo |
Chiococca alba (L.) Hitch. |
Rubiaceae |
1 |
Dente de leão |
Taraxacum officinale Weber. |
Asteraceae |
1 |
Douradinha do campo |
Waltheria douradinha A. St. Hilaire. |
Sterculiaceae |
1 |
Erva cidreira |
Melissa officialis L. |
Lamiaceae |
7 |
Erva de São João |
Hypericum perforatum L. |
Clusiaceae |
2 |
Erva de Santa Maria |
Chenopodium ambrosioides L. |
Chenopodiaceae |
3 |
Espinheira Santa |
Maytenus ilicifolia Reissek. |
Celastraceae |
2 |
Flor da Colônia |
Alpinia zerumbet |
Zimberaceae |
3 |
Folha da amora |
Rubus brasiliensis Mart. |
Rosaceae |
1 |
Folha da Laranja |
Citrus auratium L. |
Rutaceae |
3 |
Folha da Pitanga |
Eugenia uniflora L. |
Myrtaceae |
3 |
Folha de café |
Coffea arabica L. |
Rubiaceae |
1 |
Folha de Goiabeira |
Psidium guajava L. |
Myrtaceae |
1 |
Folha de uva |
Vitis vinifera L. |
Ericaceae |
1 |
Folha do limão |
Citrus limon (L.) Burm. f. |
Rutaceae |
1 |
Fumo de rolo |
Nicotiana tabacum L. |
Solanaceae |
1 |
Gengibre |
Zingiber officinale Roscoe. |
Zingiberaceae |
1 |
Guando |
Cajanus cajan (L.) Millsp. |
Fabaceae |
1 |
Hortelã |
Mentha spicata |
Lamiaceae |
2 |
Insulina |
Cissus verticillata (L.) Nicholson & C.E. Jarvis. |
Vitaceae |
2 |
Jucá |
Caesalpinia ferrea (Mart.) Baill. |
Fabaceae |
2 |
Louro |
Laurus nobilis L |
Lauraceae |
1 |
Manjericão |
Ocimum basilicum L |
Lamiaceae |
3 |
Mentrasto |
Ageractum conyzoides L. |
Asteraceae |
1 |
Melão de São Caetano |
Momordica charantia L. |
Cucurbitaceae |
1 |
Mulungu |
Erythrina mulungu Mart. Ex Benth. |
Fabaceae |
2 |
Pata de Vaca branca |
Bauhinia forficata Link. |
Fabaceae |
2 |
Pinhão Roxo |
Jatropha gossypiifolia L. |
Euphoerbiaceae |
1 |
Quebra pedra |
Phyllanthus niruri L. |
Phyllantaceae |
4 |
Saião |
Kalanchoe brasiliensis Camb. |
Crassulaceae |
3 |
Salsaparrilha |
Smilax japicanga Griseb. |
Liliaceae |
1 |
Sene |
Senna occidentalis (L.) Link. |
Fabaceae |
1 |
Taiuiá |
Cayaponia tayuya (Vell.) Cogn. |
Cucurbitaceae |
1 |
Tamarina |
Tamarindus indica L. |
Caesalpiniaceae |
1 |
Trançagem |
Plantago major L. |
Plantaginaceae |
1 |
A grande diversidade de plantas relacionar-se-ia com a diversidade regional dos moradores do Complexo da Maré. Além disso, tendo em vista os critérios de inclusão na pesquisa levaram a pessoas autoras de histórias de vidas diferentes, plenas de culturas e saberes populares construídos à luz de potencialidades existentes nas comunidades e dificuldades econômicas. Contudo, das 62 plantas citadas, apenas 26 foram classificadas como sendo utilizadas para o combate a dores, conforme mostra a Tabela 2.
TABELA 2
Nomenclatura popular e científica das plantas relacionadas ao tratamento
de dores musculares, citadas pelas mulheres da comunidade da Maré.
Nome Popular |
Nome Científico |
Alecrim |
Rosmarinus officinalis L. |
Alfazema |
Lavandula angustifólia Mill |
Angico |
Anadenanthera colubrina Vell. |
Arnica |
Arnica Montana |
Aroeira |
Schinus terebinthifolia Raddi |
Assa-peixe |
Vernonia polyanthes Less. |
Baleeira |
Cordia verbenácea DC. |
Bardana |
Arctium minus (Hill) |
Boldo |
Plectranthus barbatus Andrews |
Calêndola |
Calendula officinalis L |
Cana do brejo |
Costus spicatus (Jacq.) S.w. |
Cânfora |
Artemísia camphora (L.) J. Presl |
Carapiá |
Cinchona calisaya Wedd |
Chapéu de couro |
Echinodorus grandiflorus Mitch. |
Cipó prata |
Banisteria argyrophylla |
Dente de leão |
Taraxacum officinale Weber |
Douradinha do campo |
Waltheria douradinha A. St. Hilaire |
Erva cidreira |
Melissa officialis L. |
Espinheira santa |
Maytenus ilicifolia Reissek. |
Flor da colônia |
Alpinia zerumbet |
Fumo de rolo |
Nicotiana tabacum L. |
Jucá |
Caesalpinia ferrea (Mart.) Baill. |
Mulungu |
Erythrina mulungu Mart. Ex Benth |
Pinhão roxo |
Jatropha gossypiifolia L. |
Taiuiá |
Plantago major L. |
Trançagem |
Cayaponia tayuya (Vell.) Cogn. |
Como dores musculares apresentam-se recorrentes entre pessoas que perfazem atividade física intensa (Robergs; Roberts, 2002), buscaram-se durante a pesquisa, as senhoras, que participavam das oficinas de ginástica, no Complexo da Maré e que relataram sensibilidade muscular após os exercícios. A longevidade dessas pessoas mostra que durante muitos anos o exercício físico, possivelmente, oriundo do trabalho extenuante, trouxe as dores musculares (Robergs; Roberts, 2002). A ginástica, enquanto exercício de manutenção da saúde tem como objetivo aumentar a resistência muscular e ampliar o potencial das articulações (Arcanjo et al., 2007). Neste sentido, as plantas utilizadas pelo grupo estudado para atenuação das dores decorrentes do exercício físico estão apresentadas na Tabela 2.
Entre as 26 plantas citadas com poder analgésico, Arnica montana e Cordia verbenacea, respectivamente, arnica e erva baleeira tiveram suas atividades farmacológicas confirmadas pela RDC 10/10 (Brasil, 2010). Nesta RDC há uma sistematização da forma de uso e indicações de plantas com atividades medicinais comprovadas cientificamente. Estas plantas também estão relatadas na lista do RENISUS – Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesses do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2009), como sendo plantas a serem estudadas para o desenvolvimento de medicamentos passíveis de serem utilizados nos projetos de fitoterapia do SUS.
Conforme se pode observar, há divergências entre o saber popular sobre plantas medicinais e a literatura oficial, pois muitas plantas utilizadas pela comunidade não constam nos documentos oficiais. A forma de utilização também foi tema de divergência, pois neste estudo foi relatado o uso da arnica por via oral, o que contraria as considerações feitas pela RDC 10/10, da ANVISA, que adverte sobre a toxicidade da arnica, via oral, uma vez que dependendo da dosagem pode levar até a morte (Brasil, 2010).
Para corroborar com esta advertência, estudo apresentado por Maciel e colaboradores (2006) apresenta uma alternativa para a exploração do potencial da arnica, e comprova a sua eficácia através de tintura para ser utilizada por via tópica na forma de compressa (Maciel et al., 2006). Por outro lado, o potencial analgésico da arnica, administrado topicamente em dores musculares, está realmente descrito na literatura científica (Rodriguez Gutierrezet al., 2008).
Vários estudos realizados sobre o uso de plantas medicinais estão disponíveis na literatura. Há uma variedade enorme de plantas e combinações, da mesma forma que apresentam, também, as variadas formas de utilização (Maciel et al., 2006). Neste estudo, as participantes apontaram o chá como a forma mais eficaz para extrair o princípio ativo das plantas. O que é reiterado em outros estudos realizados pelo país (Santos et al., 2008; Jesus et al., 2009).
Quanto à forma de preservação do saber em plantas medicinais, verificou-se que a transmissão é feita oralmente. A etnocultura mostra que as informações são passadas através de convivência com grupos que agregam oportunidade, necessidade e disponibilidade para experiências e transmissão de informações entre as pessoas (Cunha; Frigotto, 2002). Dessa forma, as relações locais foram e são extremamente importantes para alavancar o desenvolvimento, exatamente, por se transformarem em fonte de produção real.
Neste estudo não houve espaço para considerar o sujeito individual e nem tampouco o coletivo como vertentes de exclusão (Cecheto; Monteiro, 2006). A organização das participantes em torno do cultivo das plantas medicinais fez com que as relações se entrelaçassem e fortalecessem as pessoas do grupo com a ampliação das relações para aquelas que não frequentavam a horta. O trabalho desenvolvido pelo Grupo ASAS ocasionou um elevado impacto social, uma vez que as pessoas do grupo foram colocadas numa evidência representativa junto à comunidade, em função dos seus conhecimentos sobre plantas medicinais (Cunha; Frigotto, 2002).
As principais formas de aquisição dos saberes foram por meio de parentes, vizinhos, cursos e prática religiosa. Neste estudo observou-se que das 20 senhoras que participantes das entrevistas, 15 (75%) cultivam as plantas medicinais na horta comunitária da Maré ou em casa, em pequenos vasos, já 25% não cultivam. No entanto, mesmo as que não cultivam as plantas, utilizam as plantas medicinais adquiridas na horta comunitária, erveiros, feiras ou mercados. Apenas uma compra em casas especializadas.
O fato das participantes cultivarem as próprias plantas as levou a descobrir melhores formas de cultivo e colheitas que foram discutidos coletivamente e difundidos linearmente. Este fato foi o tema central para o desencadeamento de assuntos que contemplaram dúvidas relacionadas à saúde, família, religião, situações sociais e violência. A troca de experiência intensificou as informações e possibilitou a elaboração de projetos pessoais, familiares e coletivos (Oliveira; Valla, 2001).
A partir do estreitamento das relações e aspirações, surgiu a necessidade de organização da comunidade como um grupo, que pudesse promover o desenvolvimento da localidade. Esta iniciativa tomou lugar central e passou a fazer parte do cotidiano pessoal dos membros do grupo. Essa organização auxilia na mobilização comunitária para reivindicações de melhores condições de vida (Branquinho, 2007).
Apesar da literatura científica apresentar-se discordante em relação à cultura popular, sobre plantas medicinais (Branquinho, 2007), a medicina moderna entende que há necessidade de estudos mais completos que possam trazer segurança aos usuários. Para contemplar a visão dos cientistas, o Ministério da Saúde organizou uma lista com 71 plantas medicinais, cujas propriedades terapêuticas foram comprovadas (Brasil, 2009).
Durante as entrevistas, as pessoas pesquisadas relataram que quando estão em consulta médica, contam que usaram plantas medicinais para diversas finalidades. De acordo com as participantes, ao questionarem os profissionais da saúde sobre a continuidade do tratamento etnofarmacológico, obtêm algumas respostas, como se segue: “Não é aconselhável, porque não sabe se tem efeitos colaterais”; “Eles receitaram apenas erva cidreira e capim limão, porque são muito comuns”; “Eles não receitam, porque eles não acreditam”; “Diziam que eram contra”; “Diziam para tomar cuidado, porque não é confiável”; “Receitou espinheira santa para curar uma cólica”; “Eles não sabem que eu tomo”; “Não se incomodam”; “É tudo negativo”; “Reconhece o potencial das plantas, mas não indica”; “Receitou Espinheira Santa”. A maior parte dos médicos se posiciona de forma reticente, pois sabe que em muitas plantas há um componente de toxidade que foge ao seu controle e o uso indiscriminado pode trazer efeitos colaterais graves, como vômito, cólica abdominal e até a morte.
Considerações finais
Os resultados obtidos confirmaram a preservação do conhecimento sobre plantas medicinais, uma vez que a temática faz parte da vivência das entrevistas. Ainda que este conhecimento seja empírico e ocupe o frágil status de um saber popular, atualmente, há uma cultura intrínseca que mantém as pessoas cultivando e utilizando as plantas medicinais. Dentre os entrevistados, 75% cultivavam plantas medicinais na horta, em pequenos vasos e nos pequenos espaços de suas residências.
É importante ressaltar que as pessoas não duvidaram no momento de citar as plantas sua aplicação e a metodologia para se extrair, com o melhor aproveitamento, o princípio ativo. Não houve divergência para a função das plantas, mas houve uma diversidade quanto à eficácia farmacológica, à parte da planta utilizada e à forma de aplicação. A Arnica foi citada por mais de 50% das pessoas, entretanto, a concentração do princípio ativo foi considerada ora nas folhas, ora na raiz e a via de administração também variou.
As origens geográficas diversas das pessoas geraram uma mistura cultural tão importante quanto o respeito a essas diferenças. Durante o período de imersão na pesquisa dentro da comunidade foram relatados depoimentos sobre a utilização das plantas que não havia referência na comunidade acadêmica, mas eram fatos testados e confirmados empiricamente pela população estudada. Das 15 plantas citadas como analgésicas musculares, apenas 2 tiveram suas atividades terapêuticas comprovadas pela literatura. Este etnoconhecimento, em princípio inusitado, pode ser um indicador para os pesquisadores e laboratórios farmacêuticos investigarem a relevância destas plantas.
No tratamento das mialgias, relatou-se o uso tópico da arnica, na forma de emplasto, como eficiente. Entretanto a administração via oral do chá foi praticado pela maioria, em função da orientação transmitida por pessoas, que tradicionalmente participaram de suas formações.
As plantas medicinais fazem parte da vida das senhoras entrevistadas. O cultivo das espécies medicinais na horta comunitária foi uma solicitação do grupo. Esta pesquisa confirmou a hipótese levantada inicialmente acerca do trabalho desenvolvido na Maré. As pessoas se organizam em torno de um assunto primário e o desdobram em assuntos secundários, formando uma rede de relacionamento, cuja base de sustentação é a confiança e o conhecimento sobre as plantas medicinais. A partir disso, as relações de reciprocidade culminaram numa espécie de formação permanente e continuada. Há quem conhecesse as plantas medicinais, mas aprofundou seus conhecimentos em convívio diário com as senhoras na horta.
Agradecimentos
Os autores agradecem aos moradores da comunidade da Maré, em especial, as mulheres que compõem o grupo ASAS, por suas contribuições para a preservação e perpetuação do saber popular sobre as plantas medicinais.
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