1.Introdução
O processo de desenvolvimento de novos produtos possui uma função estratégica para as organizações, pois é um processo que está diretamente relacionado à capacidade de competir em um ambiente dinâmico. A introdução de melhorias nos produtos e no processo de desenvolvimento de produtos (PDP) da organização está ligada à capacidade de aprender com a própria experiência. Para as organizações baseadas em projetos, a competência é construída por meio da execução de seus projetos (Hobday, 2000). Dessa forma, os diversos projetos já realizados criam uma oportunidade de aprendizado para a organização melhorar seus produtos e processos (Anbari, 2008; Cooper, 2007; Koners, Goffin, 2007; Schindler, Eppler, 2003; Wheelwright, Clark, 1992), de modo a sobreviver em ambientes onde a incerteza tecnológica e de mercado é alta. Nesse cenário de incertezas, no entanto, há a dificuldade de se preverem quais tecnologias e competências serão úteis à organização no futuro. Nesse contexto, este artigo estabelece a relação direta existente entre a capacidade de aprendizagem e o desenvolvimento da competência das pessoas da organização. O desenvolvimento da competência que pode ser realizado por meio da aprendizagem em projetos é uma das estratégias que preparará a organização para mudar sua forma de agir e de competir ante os desafios encontrados no futuro.
Para lidar com os riscos de se perder uma vantagem construída pela facilidade com que a tecnologia desenvolvida é apropriada por terceiros ou mesmo pela volatilidade da tecnologia devido ao ciclo tecnológico e ao ciclo de mercado, Casper e Whitley (2004) sugerem que as organizações desenvolvam variados tipos de competência. Nesse sentido, a diversificação tecnológica é um dos meios que possibilitam a organização a aumentar sua competência em termos de inovação, pois permite que uma tecnologia desenvolvida possa ser explorada de maneiras variadas (Quintana-García, Benavides-Velasco, 2008). O conceito de competência foi estabelecido dentro de um contexto de estratégia competitiva baseada em recursos. Representantes dessa linha de raciocínio postulam que a vantagem competitiva ocorre por meio do desenvolvimento da competência que distinga um de outros (Prahalad, Hammel, 1990) e pelo desenvolvimento das capacidades estratégicas da organização (Stalk et al. 1992), com o objetivo final de entregar valor. O conceito de core competence (Prahalad, Hammel, 1990) envolve o aprendizado coletivo da organização, mais apropriadamente o know-how utilizado para coordenar um conjunto de habilidades de produção e de tecnologias. No entanto, constatou-se que nas teorias de Prahalad e Hammel (1990) e de Stalk et al. (1992) há uma lacuna subjacente relacionada ao como se processa o desenvolvimento da competência antes da entrega do valor postulado. Essa lacuna está relacionada ao desenvolvimento da competência em nível individual, que precede a criação de capacidades internas em termos de produção e de tecnologia.
Para correlacionar o desenvolvimento da competência com a aprendizagem, apresenta-se inicialmente um constructo teórico sobre a aprendizagem em nível cognitivo individual no ambiente de projetos. Nesse constructo são identificadas as bases conceituais da aprendizagem em relação à aquisição de conhecimentos e à formulação de novos métodos utilizados para caracterizar a aprendizagem no ambiente de PDP. Nesse contexto, o artigo apresenta uma tipologia de problemas de projeto com base nas operações cognitivas realizadas pelo projetista. Apresenta-se também uma estrutura geral para classificar a competência de uma equipe de projetos, tomando por base a aprendizagem adquirida em projetos anteriores. Com esse estudo foi possível montar uma matriz de classificação da competência individual dos membros da equipe de projeto, que serve de base para gerenciar a capacidade do grupo em atender às demandas de futuros projetos da empresa. No final deste trabalho, apresenta-se um estudo de caso realizado na área de desenvolvimento de produtos de uma empresa multinacional de grande porte do setor de eletrodomésticos.
2. Bases Teóricas da Aprendizagem
Neste trabalho parte-se do pressuposto de que tanto a aprendizagem quanto a “evolução” são funções biológicas complementares de adaptação do indivíduo ao meio. Em um ambiente de incertezas, a aprendizagem é o mecanismo de sobrevivência mais eficaz que permite modificar o comportamento, adaptar-se mais rapidamente às novas situações e responder aos desafios impostos pela dinâmica do ambiente (Anderson, 2005; Pozo, 2002). Em um ambiente mais estável, a “evolução” é suficiente para selecionar as características físicas e comportamentais mais favoráveis para a sobrevivência.
Em termos cognitivos, quando a bagagem de conhecimentos do indivíduo não é suficiente para resolver um problema, a aprendizagem é um processo alternativo que permite explorar novos métodos ou formas de agir diferentes. A aprendizagem em nível individual ocorre quando houver uma manifestação de mudança comportamental duradoura resultante da experiência adquirida em situações anteriores. Neste trabalho considera-se que só ocorre a aprendizagem quando se apresentarem as três características a seguir: (a) cria uma mudança comportamental duradoura na forma de agir e proceder; (b) deve ser transferível e aplicável para poder enfrentar novas situações ou desafios; e (c) é um resultado da prática realizada ou da experiência própria vivenciada (Anderson, 2005; Pozo, 2002).
Após observar atentamente o ambiente de projetos, conclui-se que o primeiro componente da aprendizagem é a cognição do indivíduo, que em face de uma nova situação do projeto procura perceber, interpretar e compreender o problema, para depois executar uma ação. Trata-se do sistema em que ocorre a conversão do conhecimento declarativo factual em conhecimento procedural. Esse processo cognitivo inicial envolve elementos como a memória, o raciocínio, a percepção, a atenção e uma estratégia de resolução de problemas que o projetista utiliza na execução de uma tarefa. Nesse processo, a memória é o principal componente cognitivo do projetista, utilizado para registrar e recuperar as experiências vivenciadas em situações anteriores e a partir delas buscar novas soluções para os problemas de projeto. Todavia, para que possa ocorrer uma aprendizagem em projetos, três componentes cognitivos são necessários: (a) o volume de conhecimento pessoal e sobre os fatos relacionados ao problema; (b) o conhecimento procedural, de como resolvê-lo; e (c) a experiência direta vivenciada pelo projetista na resolução de problemas anteriores. Pesquisando diversos casos num ambiente de projetos, observou-se que, uma vez conhecidos os fatos relacionados ao problema, a primeira tentativa de resolução do projetista é usar o conhecimento disponível e os métodos já conhecidos para buscar uma solução, ocorrendo o que se denomina de “reforço comportamental”. Nesse caso, não houve aprendizagem, apenas a confirmação de que o conhecimento e a forma de agir atuais são suficientes para manter o ambiente estável. Casos como esse aumentam as habilidades do projetista na resolução de problemas de projeto similares ou rotineiros, mas não o preparam para novos desafios.
Ainda dentro do escopo da pesquisa com os projetistas, caso a solução inicial não tenha sido satisfatória, observou-se que na segunda tentativa o indivíduo concentra-se em aumentar o conhecimento declarativo, porém aplicando os mesmos métodos atuais para a execução de uma tarefa. Nesse caso, houve o que se denominou de “rotina evolutiva”, ou seja, uma forma de adaptação do indivíduo em que apenas novos conhecimentos foram adquiridos, mas sem caracterizar uma mudança comportamental na forma de agir ou proceder, já que todas as metodologias de projeto adotam esse pressuposto.
As duas situações anteriores não caracterizaram aprendizagem, pois ela depende da formulação e experimentação de novos métodos, e da incorporação de uma mudança na forma de agir diante de novas situações de projeto. Aqui duas conclusões importantes: a aquisição de um novo conhecimento não implica aprendizagem, a menos se ele estiver associado a uma nova forma de agir. Por outro lado, a aquisição de um novo método sem que ele esteja associado a uma experiência vivenciada pelo projetista é apenas um novo conhecimento para o receptor. Dessa forma, a aprendizagem só ocorre quando o projetista experimenta com sucesso um método novo e então passa a agir diferente na resolução de novos problemas.
O constructo formulado parte do pressuposto de que o primeiro passo é a percepção da nova situação-problema pelo projetista que utiliza sua competência para captar todas as informações fornecidas e disponíveis. Trata-se de um fenômeno que se inicia pelo sistema perceptivo em nível individual, mesmo que a situação seja discutida e compartilhada na esfera do grupo de projeto. Num segundo momento, o projetista utiliza seu sistema cognitivo para resgatar sua bagagem adquirida pela experiência vivenciada para resolver tanto os novos quanto os velhos problemas. A aprendizagem em nível individual pode ocorrer durante a busca de uma solução, que passa pelos ciclos iterativos de resolução até a explicitação do método (Figura 1).
Complementando as observações feitas sobre a sequência de operações cognitivas realizadas comumente pelos projetistas (Figura 1), identificaram-se quatro quadrantes resultantes da relação entre a novidade do conhecimento diante de um problema e a novidade do método requerido para resolvê-lo (Figura 2). A aprendizagem em projetos só ocorre em duas situações. A primeira, denominada de aprendizagem proativa, ocorre quando o projetista utiliza um novo conhecimento adquirido, associado à criação de um novo método aplicável em outras situações de projeto – Quadrante 1 (Figura 2). Esse perfil caracteriza um comportamento individual denominado proativo indutor. Pessoas com esse perfil são essenciais para o desenvolvimento de inovações tecnológicas em produtos. O segundo caso de aprendizagem ocorre quando o projetista utiliza sua bagagem de conhecimentos preexistentes para remodelar velhos princípios e propor um novo método de trabalho mais eficiente – Quadrante 2 (Figura 2). Essa forma de aprendizagem é denominada de remodelagem comportamental ou procedural, e os projetistas com esse perfil contribuem fortemente para aprimorar a forma de trabalho do grupo de projeto. Observa-se que a rotina evolutiva e o reforço comportamental descritos anteriormente apresentam-se localizados nos Quadrantes 3 e 4 respectivamente.
Observou-se também que a experiência vivenciada pelo projetista no ambiente de projeto tem uma relação direta na construção da aprendizagem, na medida em que o acúmulo dessas experiências propicia um novo sentido às experiências anteriores. Desse modo, toda “nova experiência” é algo significativo que afeta a percepção de um indivíduo, pois a partir dela se pode criar ou adquirir novos conhecimentos, de modo a modificar o comportamento ou a forma de ação.
Figura 1. Constructo da sequência de operações cognitivas realizadas pelo projetista em termos de conhecimento e método
---
Figura 2. Categorias de perfil cognitivo resultantes da relação entre a novidade do conhecimento e a novidade do método
Conclui-se dessa análise que a aprendizagem em projetos propicia ao projetista uma estrutura cognitiva articulada para executar uma tarefa específica dentro de um contexto do PDP. Segundo Marmaras e Pavard (1999), a competência é a estrutura cognitiva mobilizada pelo indivíduo; ela envolve a manipulação mental de elementos como o raciocínio, representações, esquemas e regras de decisão. Tais elementos são utilizados para alterar a forma de proceder e, então, poder superar os obstáculos e solucionar um problema de projeto que até então não podia ser resolvido.
O nível de articulação dessa estrutura cognitiva representa a competência do projetista, ou seja, sua capacidade de mobilizar a maior quantidade possível de experiências vivenciadas, de conhecimento formal ou empírico recebidos de terceiros e de procedimentos de que ele dispõe para solucionar um problema.
Então, pode-se separar a competência do indivíduo em duas classes. A primeira está vinculada à facilidade que o indivíduo possui em articular sua bagagem atual de conhecimentos e procedimentos de trabalho para resolver uma classe de problemas semelhantes. Quando isso ocorre de forma repetitiva, cria-se o que se denominou de competência associativa, que é reforçada pela prática que passa pelo estágio inicial, em que a aplicação de operadores é mais lenta, até se chegar a um estágio mais rápido e direto, que culmina com a automatização de uma habilidade. A segunda é a competência do indivíduo que lhe proporciona maior capacidade de aprendizagem, pois, ao mobilizar a estrutura cognitiva para utilizar as aprendizagens anteriores, aumenta a capacidade de gerar novas aprendizagens, seja para criar novos conceitos, seja para propor novos procedimentos para solucionar novos problemas. Esse tipo de competência, denominada de competência de aprendizagem, um processo cognitivo consciente, é que permite que um projetista possa gerar um maior numero de soluções inéditas e originais para os problemas de projeto.
Na seção a seguir apresentam-se os detalhes da estrutura proposta para classificar a competência da equipe de projeto.
3. Tipologia de Problemas de Projeto e o Desenvolvimento da Competência
Para desenvolver a competência de uma equipe é necessário estimular a criação de novos desafios organizacionais que exijam a aquisição de novos conhecimentos e a formulação de novos métodos, de modo a expor os membros da equipe a novas experiências vivenciadas. A análise das operações cognitivas executadas pelo projetista (Figura 1) indica que, na medida em que o indivíduo é exposto a demandas de projeto cada vez mais desafiadoras, as soluções para os problemas dependem cada vez mais de uma competência em aprendizagem.
Dependendo do grau de novidade do problema e do nível de aprendizagem requerida pelo projetista, extraem-se as quatro classes de problemas de projeto que resultam da relação entre a novidade do conhecimento exigido e a novidade do método para a organização (Figura 3). A identificação dessas classes permite duas decisões: selecionar o tipo de projeto mais adequado ao perfil atual de competência da equipe e/ou estabelecer o nível de competência exigida conforme os tipos de projetos.
Os problemas de projeto do Tipo I compõem-se de problemas que são inéditos para a organização. A equipe de projeto não possui experiência anterior na resolução dessa classe de problemas, e a complexidade resulta da falta de conhecimento e de método para resolvê-lo. Os problemas do Tipo II são aqueles que requerem novos métodos para viabilizar a aplicação dos conhecimentos que já são disponíveis na organização. Em ambos, o desenvolvimento de um novo método pode ocorrer pela reestruturação de métodos existentes ou pela criação de um procedimento totalmente novo. As classes de problemas do Tipo I e do Tipo II agregam novas aprendizagens na organização.
Figura 3. Classes de problemas de projeto em termos de novidade do conhecimento e de novidade do método
Os problemas do Tipo III são problemas que requerem a busca de um conhecimento novo, e sua aplicação é viabilizada por meio de um método já existente. Os problemas do Tipo IV são problemas rotineiros de aplicação de conhecimento dominado que tem por objetivo reforçar o comportamento existente por meio da replicação de procedimentos consolidados.
Todas as classes de problemas cumprem a função de desenvolver a competência individual, mas, no entanto, os problemas de projeto do Tipo III e do Tipo IV são resoluções obtidas por repetição mediante o uso de métodos já consolidados na organização. Entretanto, depois de alguns ciclos de vivência em problemas do Tipo IV, não há um incremento na competência em função do aumento da quantidade de exposição à classe. Aqui ocorre o efeito chamado de automatização do comportamento, em decorrência da prática. A resolução de problemas do Tipo IV segue a teoria de desenvolvimento de habilidades de Anderson (2005). O autor postula que, para a progressão nos estágios de desenvolvimento de uma habilidade, exige-se menos esforço de retenção na memória de trabalho e diminuem-se as falhas causadas pela perda das pistas de recuperação na execução da atividade. Trata-se de um fenômeno em que o indivíduo apenas recupera da memória de longo prazo os procedimentos anteriores para executar uma tarefa, mais especificamente ligada à memória implícita, em que o controle passa a ser cada vez menos consciente, permitindo-se inclusive realizar uma segunda atividade cognitiva em paralelo. Nessa classe de problemas atua o primeiro modo de processamento cognitivo de Anderson (1996), um modo menos limitado pela capacidade da memória de trabalho, que responde diretamente ao estímulo recebido.
Os problemas do Tipo I e do Tipo II incorporam novos elementos em seu espaço, o que requerer a formulação de novos operadores para se chegar a uma solução. Aqui atua o segundo modo de processamento cognitivo de Anderson (1996), o processamento de controle consciente, que está sujeito às limitações de capacidade da memória de trabalho. Aumentar a competência, no sentido de incrementar a capacidade de gerar maior número de produtos diferenciados, implica o incremento da exposição dos projetistas a essa classe de problemas, de modo a favorecer a aquisição de maior quantidade de conhecimento declarativo e a aplicação do conhecimento procedural para aumentar as possibilidades de reorganizar novos conceitos na estrutura da memória.
Constata-se também que o desenvolvimento da competência individual depende da interação social entre os membros para a aprendizagem em nível de grupo de projeto. O aprendizado em nível de grupo ocorre se um novo método, que estabelece um novo comportamento diante de novos problemas, for aplicado com sucesso no projeto. Caso seja compartilhado em nível organizacional, ocorre o que se denomina de aprendizagem em projetos. Os tipos de aprendizagem individual podem ser expandidos em nível de grupo e em nível organizacional (Figura 4). Nesse sentido, a capacidade de transferir os métodos utilizados com sucesso faz parte da competência da organização. A constatação de que a socialização é o mecanismo predominante para a transferência de conhecimentos entre os projetos (Prencipe, Tell, 2001) é das mais significativas, pois corrobora a dependência em relação aos mecanismos de interação social para que ocorra a aprendizagem em nível de equipe e em nível organizacional.
Conforme os parâmetros relacionados à competência e à aprendizagem expostos nesta seção, propõe-se uma estrutura em sete etapas para classificar a competência da equipe de desenvolvimento (Figura 5).
Figura 4. Classificação do tipo de aprendizagem em seus diversos níveis
----
Figura 5. Estrutura para classificar a competência da equipe de desenvolvimento de produtos da organização
As atividades que compreendem da Etapa 1 à Etapa 5 envolvem o levantamento de informações que devem ser coletadas durante a execução dos projetos. As Etapas 6 e 7 são informações totalizadas de toda a equipe de desenvolvimento da organização e de todos os projetos executados. Na seção 4, a seguir, é apresentada a metodologia de pesquisa utilizada para avaliar a estrutura proposta.
4. Metodologia de Pesquisa
O tema envolvendo a aprendizagem e o desenvolvimento da competência é um tema relevante e contemporâneo na área de desenvolvimento de produtos e tem atraído cada vez mais a atenção de pesquisadores em função da importância na elaboração de estratégias organizacionais. Inicialmente, realizou-se uma pesquisa bibliográfica com o objetivo de elaborar um constructo teórico da aprendizagem em um ambiente de projetos e estabelecer uma relação entre a aprendizagem e a competência. A partir da posse do constructo em nível cognitivo individual, identificou-se uma sequência de classes de problemas de projetos. A exposição a essas classes possibilita a um projetista aumentar sua competência.
Trata-se de uma pesquisa que é exploratória por sua natureza e que objetiva responder a algumas das perguntas de pesquisa sobre “como classificar a competência de uma equipe tomando como base a aprendizagem gerada nos projetos do passado”, “como hierarquizar a competência em função da aprendizagem” e “como aumentar a competência de uma equipe de projeto”. Dessa forma, adotou-se o método de estudo de caso, que é apropriado para o propósito de se avaliar o “como” (YIN, 2010).
Para o estudo de caso aprofundado selecionou-se um único projeto que representasse uma novidade técnica para a organização quanto a novos conhecimentos requeridos e à necessidade de formulação de novos métodos. As informações foram coletadas ao longo de 11 meses do projeto, desde a elaboração do conceito do produto até o início da produção. Os dados coletados originaram-se da análise documental de relatórios, normas, procedimentos, e-mails e atas de reunião, e da observação direta de reuniões de trabalho e de testes experimentais dos métodos. Na seção 5, a seguir, é apresentado o estudo de caso, aplicando-se a estrutura proposta da Etapa 1 à Etapa 5, com o objetivo de responder às questões de pesquisa formuladas.
5. Estudo de Caso
O estudo de caso foi realizado no PDP de uma indústria com operações no Brasil que fabrica refrigeradores, freezers, fogões, lavadoras de roupa. A pesquisa foi realizada na área de Tecnologia de Produtos de Refrigeração responsável pelo ciclo do desenvolvimento e pela liderança dos projetos. O PDP é considerado o processo mais importante e a linha central de todas as estratégias da organização.
5.1 Problema de projeto – sistema dispensador de água
O projeto escolhido para o estudo compreende um sistema que representou uma novidade técnica na organização brasileira. Trata-se de um novo refrigerador dotado de um sistema de purificação de água e de um dispensador acionado eletronicamente. Nesse novo sistema, a água é alimentada diretamente pela rede de água doméstica (Figura 6), ao contrário de modelos anteriores, em que a água devia ser abastecida manualmente no reservatório. Trata-se do primeiro refrigerador com o sistema de alimentação direta desenvolvido pela organização no Brasil.
Figura 6. Esquema de funcionamento do novo sistema dispensador de água
A falta de experiência nesse tipo de problema era relacionada tanto à concepção do sistema de alimentação de água quanto em relação aos requisitos e condicionantes encontrados nas residências brasileiras. Inicialmente, a equipe de projeto optou pela adoção de um novo tanque plástico, idealizado pela Engenharia de Desenvolvimento. Com relação à adequação do tanque, foi necessário conhecer os requisitos normativos da rede, principalmente os relacionados à pressão de operação mínima e máxima, seguido pela busca de informações sobre a pressão real de abastecimento das residências. Depois, as informações relacionadas à qualidade da água nortearam o projeto. Essa situação de projeto exemplifica a procura de referências no sistema organizacional por experiências prévias da organização que auxiliassem no dimensionamento do sistema.
Após a aquisição da norma brasileira, ABNT NBR 14908, aplicável a todos os aparelhos de melhoria da qualidade da água para uso residencial, iniciou-se o desenvolvimento do conceito do produto. O projetista, nessa etapa, utiliza sua competência para resolver o problema de adaptação do tanque dentro das restrições do refrigerador e interage com os demais membros do grupo em eventos formais e informais. Os vários ciclos de otimização da solução correspondem a uma sequência de tomadas de decisão para se definirem todas as funções e os componentes do dispensador de água.
O primeiro obstáculo do projeto foi a definição do tipo de tanque a ser utilizado. As avaliações realizadas inicialmente com o tanque plástico, em termos de atendimento aos requisitos normativos e aos requisitos dos consumidores, evidenciaram falhas graves de concepção. As modificações no reservatório, necessárias para adequar-se aos requisitos, não atenderiam às datas do time de lançamento do produto. O conceito do tanque plástico foi então abandonado e substituído pelo tanque em espiral, utilizado pela matriz norte-americana.
As frequentes dificuldades foram encontradas também na redefinição do circuito da tubulação, o que desencadeou o projeto de um novo tipo de dobradiça para que a tubulação de água pudesse chegar ao dispensador localizado na porta, minimizando o aquecimento da água durante o trajeto. Durante esse processo, desde a concepção do produto até a definição final de todos os componentes do sistema, vários desafios foram encontrados (Figura 7).
Figura 7. Novos conhecimentos adquiridos ou criados no projeto e seus desdobramentos
5.2 Resultados obtidos – classificação dos tipos de problemas de projeto
Todos os desafios relacionados ao projeto foram categorizados em quatro classes de problemas de projeto em função das exigências de novidade do conhecimento e da novidade do método requerido para resolvê-lo (Figura 8).
Figura 8. Classe de problemas de projeto em termos
de novidade do conhecimento e de novidade do método
Os problemas do Tipo I exigiram a formulação de métodos até então desconhecidos pela engenharia (Figura 9), enquanto as soluções para a classe do Tipo III foram obtidas mediante ajustes nos métodos já utilizados na empresa (Figura 10) e, por fim, as soluções do Tipo IV envolveram apenas a replicação de métodos rotineiros (Figura 11).
Figura 9. Problemas de projeto do Tipo I
----
Figura 10. Problemas de projeto do Tipo III
----
Figura 11. Problemas de projeto do Tipo IV
5.3 Classificação da competência da equipe de projetos
Na Tabela 1, a seguir, está contabilizado o número de vezes que cada indivíduo participou na formulação e/ou na operacionalização e teste de um método no projeto listado na Figura 11 Quadro 6. Essa contabilização da participação por indivíduo, em outras palavras, na resolução de cada problema de projeto, foi realizada por meio da análise documental de relatórios de testes, registros de avaliação, mensagens de e-mails e atas de reunião. Observa-se que um mesmo indivíduo pode ter contribuído com níveis de competência distintos, conforme a complexidade do problema em análise pela equipe.
Dos 11 indivíduos que tinham vivenciado mais problemas de projeto, apenas os indivíduos 4 e 8 participaram da resolução de problemas do Tipo IV (rotineiros). Todos os demais relacionados aos problemas do Tipo I e do Tipo III precisaram adquirir novos conhecimentos e/ou formular novos métodos. Portanto, são aqueles que adquiriram mais competência na execução desse projeto.
Tabela 1. Matriz de classificação da competência individual em função
do tipo de problema de projeto e sua correspondência ao tipo
do aprendizado individual ocorrida no projeto
|
(1) Proativo indutor |
(3) Rotina evolutiva |
(4) Rotina de reforço |
|
Problemas do Tipo I |
Problemas do Tipo III |
Problemas do Tipo IV |
Indivíduo 1 |
2 |
2 |
0 |
Indivíduo 2 |
11 |
5 |
7 |
Indivíduo 3 |
12 |
6 |
0 |
Indivíduo 4 |
0 |
0 |
2 |
Indivíduo 5 |
1 |
0 |
0 |
Indivíduo 6 |
5 |
0 |
0 |
Indivíduo 7 |
3 |
6 |
0 |
Indivíduo 8 |
0 |
0 |
2 |
Indivíduo 9 |
1 |
0 |
5 |
Indivíduo 10 |
2 |
0 |
0 |
Indivíduo 11 |
2 |
0 |
0 |
A partir do total de 14 novos métodos formulados no projeto e dos 13 métodos existentes aplicados durante o desenvolvimento, pôde-se classificar o tipo de aprendizagem ocorrida no projeto. Para isso utilizou-se a matriz apresentada na Figura 4 Quadro 3, que possibilitou avaliar se houve a aprendizagem, ou não, além do tipo e da quantidade por projeto executado. A Tabela 2 detalha as quantidades por tipo de aprendizagem ocorrida no desenvolvimento do novo refrigerador.
Tabela 2. Matriz de classificação do tipo de aprendizagem ocorrida no projeto do novo refrigerador
|
Aprendizagem no Projeto |
|
(1) PDP proativo |
(2) Melhoria contínua do PDP |
(3) PDP evolutivo |
(4) Repetição de procedimentos do PDP |
Projeto Novo com Sistema Dispensador de Água |
14 |
0 |
6 |
7 |
Repetindo esse procedimento para todos os projetos executados na empresa, obtém-se uma forte indicação sobre a capacidade da organização de criar ou adquirir novos conhecimentos e de formular novos métodos na execução de seus projetos. No caso estudado, considera-se que a organização “aprendeu” com esse novo projeto, pois foi caracterizado um ciclo global de aprendizagem devido à incorporação em nível organizacional de um novo método que foi experimentado com sucesso no projeto. O novo método, desenvolvido para se adequar à norma ABNT NBR 14908, foi integrado ao sistema organizacional estando apto a ser aplicado em outros projetos e, por isso, representa uma evolução na competência da organização.
6. Discussão
Percebe-se que a contribuição ao aprendizado em nível organizacional poderia ter sido maior, em virtude de 14 novos métodos formulados durante a execução desse projeto. Constatou-se que vários métodos importantes que estabeleceram a direção do projeto e que determinaram a concepção final do produto ficaram restritos aos membros do grupo de projeto. Tais métodos encontram-se implícitos nos relatórios de testes, e apenas a posse desses relatórios não proporciona a compreensão do método, limitando sua utilização. Dessa forma, para que outros membros possam adquirir os novos conhecimentos e métodos desenvolvidos nesse projeto, será necessário criar mecanismos de socialização envolvendo os participantes dos demais grupos de projeto. Neste estudo observa-se claramente uma lacuna entre o número de novos métodos gerados pelo grupo de projeto e o efetivamente consolidado em nível organizacional.
Com referência à matriz de classificação da competência individual (Tabela 1), a diferença encontrada no número de exposições aos métodos e no tipo do método (novo ou velho) deve-se à função do indivíduo no grupo de projeto. As funções mais operacionais, relacionadas com a execução do método, tendem a ter menor número de participações na formulação de um novo método e menor contato com métodos de outras áreas disciplinares. Alguns indivíduos, como os indivíduos 4 e 8, somente tiveram contato com problemas do Tipo IV, classe de problemas que apenas reforça o conhecimento e o método disponível. Nesse caso, não representaram um incremento na competência individual devido ao tempo de experiência profissional de ambos na mesma função. As funções de liderança e coordenação, por sua vez, tendem a ter maior número de vivência não somente em número de métodos, mas também na variedade de métodos envolvendo áreas de conhecimento diferentes.
Uma análise da matriz de classificação do tipo de aprendizagem ocorrida no projeto (Tabela 2) mostra que o número de novos métodos formulados (PDP proativo) supera o número de métodos antigos utilizados (PDP evolutivo) para resolver os novos problemas. Isso evidência a mudança de comportamento que levou a buscar novos conhecimentos e novos métodos que não estavam disponíveis na organização. Em nível de grupo de projeto, pode-se afirmar que houve um aumento na competência que capacita os indivíduos desse grupo a:
- reformular os métodos desenvolvidos no projeto, criando novos comportamentos (aprendizagem por remodelamento);
- melhorar a concepção do produto desenvolvido, incorporando novos conhecimentos à mesma base (adaptação evolutiva); e
- resolver os problemas de projeto do novo produto que eventualmente se manifestem após o lançamento no mercado (reforço comportamental).
Deve-se observar que o aumento da competência de alguns indivíduos da equipe de projeto devido à maior vivência em problemas do Tipo I favorece a resolução de futuros problemas derivados do mesmo projeto relacionado ao Tipo II (item “a”), Tipo III (item “b”) e Tipo IV (item “c”), com maior eficiência em relação aos demais membros da organização. Em particular, para esses mesmos indivíduos, os problemas do Tipo IV tendem a ser resolvidos de forma mais rápida, pois já passaram pelo estágios iniciais de processamento cognitivo. Os indivíduos externos à equipe de projeto, em função dessa lacuna de aprendizagem, por não terem a vivência no desenvolvimento desse novo produto, necessitam de maior tempo para resolver, por exemplo, o problema exposto no item “c”.
7. Conclusões
A competência e a aprendizagem são dois conceitos interdependentes, pois ambos dependem do sistema cognitivo para produzir um resultado. A aprendizagem gera maior competência ao indivíduo, ao incorporar novos comportamentos em sua estrutura cognitiva, e oferece maiores possibilidades de criar novos conceitos. Da mesma forma, a competência gera maior capacidade de aprendizagem, ao mobilizar as aprendizagens anteriores na estrutura cognitiva, e aumenta as possibilidades de reorganizar e de gerar novas aprendizagens.
Aumentar a competência implica uma exposição gradativa da equipe de desenvolvimento a novos desafios em termos de aquisição/criação de novos conhecimentos e a formulação de novos métodos que modifiquem seu modo de agir. Nesse sentido, os fundamentos da aprendizagem apresentados neste trabalho sustentam a nova abordagem em termos de tipologia de problemas de projeto e a matriz de classificação da competência. Dessa forma, a estrutura para classificação da competência possibilita planejar o desenvolvimento da competência dos indivíduos que compõem a equipe de PDP da organização em função das lacunas identificadas na matriz de classificação. Ao mesmo tempo, a identificação dos tipos de problemas de projeto, que possui correlação com o grau de dificuldade cognitiva estabelecido pela novidade em termos de conhecimento-método, possibilita direcionar o tipo de problema para desenvolver as competências individuais dos projetistas.
Os projetos que apresentam maior diversidade tecnológica, que requeiram um novo conhecimento à organização, são os que oferecem maiores oportunidades à equipe de aprender com sua execução. Dessa forma, um projeto que contemple um novo sistema oferece maiores possibilidades desenvolver a competência dos membros da equipe, preparando-os para a inovação. A matriz de classificação do tipo de aprendizagem dos projetos executados, coletados em nível de grupo de projeto, permite que se avalie o grau de balanceamento dos tipos de projetos executados pela organização. Uma concentração excessiva em projetos que possuem problemas do Tipo IV, que apenas reforçam um comportamento de rotina, pode indicar uma tendência estratégica no sentido de uma acomodação. Em função do exposto, este trabalho, ao propor uma estrutura para classificar a aprendizagem e estabelecer uma relação com o desenvolvimento da competência, abre novos espaços para a formulação de métodos de gerenciamento do portfólio de produtos com base na aprendizagem.
Referências
Anbari, F.T., Carayannis, E.G., Voetschd, R.J. (2008); “Post-project reviews as a key project management competence”, Technovation, 28, 633-643.
Anderson, J.R. (1996); The architecture of cognition; New York; Psychology Press, 345 p.
Anderson, J.R. (2005); Aprendizagem e memória: uma abordagem integrada; Rio de Janeiro, LTC, 327 p.
Casper, S., Whitley, R. (2004); “Managing competences in entrepreneurial technology firms: a comparative institutional analysis of Germany, Sweden and the UK”, Research Policy, 33, 89-106,.
Cooper, L. P. (2007); Converting project team experience to organizational learning: a case study, in: Proceedings of the 40th Hawaii International Conference on System Sciences.
Hobday, M. (2000); “The project-based organization: an ideal form for managing complex products and systems?”, Research Policy, 29, 871-893.
Koners, U., Goffin, K. (2007); “Learning from postproject reviews: a cross-case analysis”, The Journal of Product Innovation Management, 24(3), 242-258.
Marmaras, N., Pavard, B. (1999); “Problem-driven approach to the design of information technology systems supporting complex cognitive task”, Cognition, Technology & Work, 1, 222-236.
Prencipe, A., Tell, F. (2001); “Inter-project learning: processes and outcomes of knowledge codification in project-based firms”, Research Policy, 30(9), 1373–1394.
Prahalad, C.K., Hamel, G. (1990); “The core competence of the corporation”, Harvard Business Review, 69(6), 79-91.
Pozo, J.I. (2002); Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem; Porto Alegre, Artmed, 296 p.
Quintana-García, C., Benavides-Velasco, C.A. (2008); “Innovative competence, exploration and exploitation: the influence of technological diversification”, Research Policy, 37, 492-507.
Schindler, M., Eppler, M.J. (2003); “Harvesting project knowledge: a review of project learning methods and success factors”, International Journal of Project Management, 21(3), 219-228.
Stalk, G., Evans, P., Shulman, L.E. (1992); “Competing on capabilities: the new rules of corporate strategy”, Harvard Business Review, 70(2), 57-69.
Sternberg, R.J. (2000); Psicologia cognitiva; Porto Alegre; Artmed, 496 p.
Wheelwright, S.C., Clark, K.B. (1992); Revolutionizing product development: quantum leaps in speed, efficiency and quality; New York; The Free Press, 370 p.
Yin, R.K. (2010); Estudo de caso: planejamento e métodos; Porto Alegre; Bookman, 248 p. |