1 Introdução
A preocupação com o desenvolvimento sustentável global, evidenciado na última década por estratégias, experimentos e pesquisas colocadas em prática ao redor do mundo, demonstra a relevância dos estudos nesta área. No entanto, várias lacunas ainda permanecem nos estudos relacionados com o mercado da base da pirâmide econômica. Estas lacunas justificam-se pelo fato das grandes corporações manterem seus esforços voltados para atender as necessidades de consumidores com alto poder aquisitivo. No entanto, numericamente a população da base da pirâmide econômica representa um imenso público potencial de consumo para as empresas que voltarem seus esforços para suas necessidades e interesses.
Compreender a dinâmica do mercado da base da pirâmide econômica, os motivadores de consumo, formas de inclusão social e geração de receita e renda para a população mais pobre, que proporcionem às empresas o desenvolvimento sustentável de seus negócios é um desafio para a agenda de pesquisa das instituições acadêmicas e das organizações ao redor do mundo. Este trabalho se insere nesta perspectiva, buscando contribuir, de forma singular, para a compreensão parcial deste fenômeno complexo. Neste sentido, o presente estudo busca contribuir na compreensão da dinâmica da consolidação das competências organizacionais em empresas inseridas no mercado da base da pirâmide, mais especificamente no caso da venda de calçados por catálogo da Azaleia Colômbia.
Para atingir os objetivos propostos, este artigo está estruturado em seis seções, incluindo esta introdução. A segunda seção apresenta o referencial teórico sobre o mercado da base da pirâmide econômica, destacando suas características e principais vertentes teóricas que abordam o tema sob a ótica da ação das organizações. A seção seguinte descreve a teoria que embasa a noção de competência organizacional, deste as suas raízes na teoria da Visão Baseada em Recursos, e os principais atributos relacionados com a dinâmica da consolidação das competências nas empresas, enfatizando o modelo teórico utilizado no trabalho e a proposição de estudo. O quarto item trata dos procedimentos metodológicos do estudo, abordando as fases e a técnicas utilizadas na pesquisa. O próximo bloco contextualiza o modelo de negócios de venda de calçados por catálogo da Azaleia Colômbia. A sexta parte apresenta a análise dos dados coletados na pesquisa de campo, à luz do referencial teórico tratado anteriormente, buscando compreender a dinâmica das competências organizacionais da Azaleia Colômbia no mercado de venda de calçados por catálogo, trazendo as conclusões do estudo.
2. O Mercado da Base da Pirâmide
A discussão sobre o potencial do mercado da Base da Pirâmide (BP) para a expansão de negócios e geração de riqueza das grandes corporações inicia com a publicação do artigo “The End of Corporate Imperialism”, de Prahalad e Lieberthal (1998). Neste trabalho, os autores destacam a exaustão do modelo tradicional de negócios, cujo foco da oferta de produtos e serviços está no atendimento das necessidades das classes mais altas da população, com maior poder aquisitivo, e alertam para a necessidade das organizações em vislumbrarem mercados periféricos. Alguns anos mais tarde Prahalad apresenta o marco que consolida a perspectiva de ação de organizações em mercados da BP, em seu artigo de 2002, “The Fortune at the Botton of the Pyramid”, em co-autoria com Hart. Neste artigo, os autores discutem a participação econômica ativa da parcela da população mundial que sobrevive com menos de 1.500 dólares per capita por ano. Segundo os autores, a pirâmide econômica mundial caracteriza-se por uma concentração extrema em sua base, formada pela população mais pobre, que representa, aproximadamente, 4 bilhões de pessoas, de um total de 6,3 bilhões de habitantes no mundo. Sob esta ótica, 2/3 da população mundial sobrevive com menos de 2 dólares per capita por dia, em condições de pobreza ou extrema pobreza. Apesar da carência aparente desta parcela da população, os autores defendem a existência de capacidade de consumo nesta camada social e o potencial de geração riqueza, a partir de uma nova abordagem de mercado das organizações multinacionais. O trabalho publicado em 2002, intitulado “Serving the World´s Poor, Profitably” (PRAHALAD e HAMMOND, 2002), completa a trilogia inicial de artigos que lançam os fundamentos para a compreensão do mercado da BP como uma oportunidade de crescimento e de negócios para as organizações multinacionais. A obra declara que as empresas, ao analisarem individualmente a população pobre, cometem um equívoco ao crerem que este segmento não possui poder de compra. No entanto, ao observarem a parcela de pessoas mais pobres como um grupo, as organizações passam a perceberem eles como ávidos consumidores de produtos e serviços. Sob esta ótica, os mercados que estão na BP são novas fontes de desenvolvimento para as empresas, porque possuem pessoas com necessidades de consumo não saciadas e porque estão, geralmente, em fases iniciais de crescimento. O principal alvo das empresas está, ainda, na parte superior da pirâmide, enquanto que o grande potencial de expansão está em sua base.
Segundo os dados do World Resources Institute (HAMMOND, et. al., 2007), os 4 bilhões de pessoas que compõem a base da pirâmide econômica mundial formam um mercado estimado em 5 trilhões de dólares de potencial de consumo, por ano. A parcela mais alta da pirâmide, com aproximadamente 1,4 bilhão de pessoas, representa um poder de compra de 12,5 trilhões de dólares, que está concentrada principalmente nas áreas urbanas e já é relativamente bem servida e saciada em suas necessidades.
Com base nos desafios que se apresentam às empresas que investem no mercado da BP, London e Hart (2004) propõem que atuar no topo da pirâmide ou em sua base irá requerer das empresas diferentes estratégias e mix de capacidades. Ou seja, a empresa deverá buscar alternativas para seu modelo de negócios, que não estará adequado para atender as características da BP sem adaptações significativas que o transformem em um modelo de negócios voltado para as necessidades inerentes deste mercado. O acesso a mercados da BP também está condicionado à capacidade da organização em estabelecer uma lógica de criação de soluções, na qual a empresa desenvolva novas capacidades internas a partir do estabelecimento de relações com novos parceiros e consumidores, expandindo o conhecimento da organização e proporcionando o diálogo com o mercado (SIMANIS e HART, 2008). O desenvolvimento de um modelo de negócios que incorpore estas múltiplas dimensões exige que as organizações empreendam várias atividades inter-relacionadas, sendo elas: a seleção do local apropriado para o empreendimento, a formação e treinamento de equipes multidisciplinares e a seleção de parceiros locais. O alinhamento destas três atividades permite a criação de uma quarta capacidade, essencial para o desenvolvimento da abordagem estratégica em mercados da BP: a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços e soluções.
O modelo de negócios para a BP pressupõe uma lógica diferente daquela utilizada em mercados de baixa renda por empresas ocidentais (LONDON e HART, 2004). A estratégia voltada para empreendimentos na BP depende da alavancagem das forças de mercado existentes no ambiente, incluindo o desenvolvimento de parceiros não tradicionais, a invenção de soluções criadas coletivamente e a construção de capacidades locais. Hart e Christensen (2002) destacam a ruptura com o modelo tradicional de inovação para que as organizações atuem em mercados da BP. Esta ruptura perpassa todas as áreas da empresa, do marketing às operações, da tecnologia ao acesso de mercado, da governança de negócios à percepção de oportunidades de crescimento para a empresa. Compreender a dinâmica existente no mercado da BP e adaptar-se às necessidades complexas de acesso a este negócio é o principal desafio para as empresas. Utilizar o mesmo modelo de negócios que está adaptado a atender as características de segmentos no topo da pirâmide não é certeza de eficácia para as organizações que se inserem em negócios da BP. Pelo contrário, é preciso uma ruptura com o modelo tradicional, a compreensão das reais necessidades deste novo mercado, a criação de capacidade de adaptação e o desenvolvimento de novas habilidades para atender ao consumidor da BP.
3. A Visão Baseada em Recursos e a Dinâmica das Competências Organizacionais
A visão da empresa baseada em recursos, no original Resource-Based View of the firm (RBV), toma fôlego nas últimas décadas como uma das mais fortes vertentes de pesquisa com foco na estratégia das organizações. Diversos autores exploram o conceito central da RBV de que a empresa é constituída por uma gama de recursos que definem sua singularidade e diversificação e estabelecem uma posição competitiva sustentável (SELZNICK, 1957, In: FOSS, 1997, PENROSE, 1959, NELSON E WINTER, 1982, In: FOSS, 1997, WERNEFELT, 1984, BARNEY, 1991, DIERICKX e COOL, 1989, In: FOSS, 1997). No entanto, esta forma de compreender a empresa, a partir de seus recursos, não é uma abordagem recente. O livro Theory of the Growth of the Firm, de Edith Penrose (1959), inaugura esta discussão ao afirmar que os produtos da empresa são originários da forma como os recursos da organização são alocados e organizados em um quadro de referência administrativo. Grant (1991, p. 114) conceitua a estratégia como “a combinação entre os recursos e as habilidades internas da organização” como forma de responder às forças e oportunidades resultantes do ambiente externo. Neste contexto, a RBV considera a estratégia como a derivação das competências internas da firma, percebendo a empresa como um leque de recursos e capacidades.
Os conceitos expressos pela RBV, em especial a dependência de trajetória, a ambiguidade causal e a complexidade social, estão no cerne da compreensão das capacidades dinâmicas da organização. O livro An evolutionary theory of economic change (NELSON e WINTER, 1982) estabelece os princípios do dinamismo dos processos organizacionais. Os conceitos-chave presentes na abordagem das capacidades dinâmicas são a mobilização dos recursos pela empresa e a capacidade de mudança, inovação e adaptação ao ambiente que os recursos possuem. Teece, Pisano e Shuen (1997, In: FOSS, 1997) destacam três aspectos fundamentais para a compreensão das capacidades dinâmicas da organização. O primeiro refere-se aos processos organizacionais que são moldados pela posição dos ativos da empresa e por seu caminho evolutivo. Este fator destaca a importância da trajetória da organização para definição de suas habilidades e capacidades essenciais e explica como empresas, mesmo dentro do mesmo segmento, podem apresentar características distintivas entre si. O segundo aspecto destaca as habilidades específicas da organização, que estão relacionadas com seus recursos disponíveis, no caso a tecnologia, o capital intelectual, os ativos tangíveis e intangíveis, a carteira de clientes, a relação com fornecedores, etc. O último aspecto aborda as opções estratégicas da empresa, sua trajetória particular e o rumo único que ela terá a partir de suas escolhas. A abordagem das capacidades dinâmicas das organizações implica analisar a posição da empresa não apenas do ponto de vista de como ela utiliza ou disponibiliza seus recursos, mas em entender quais são os ativos que ela possui para buscar um posicionamento que lhe proporcione uma vantagem competitiva, além da forma de mobilizá-los e gerar mudanças a favor da organização. Esta percepção das organizações proporciona a reflexão sobre os seus recursos internos valiosos e seu posicionamento de mercado, destacando que a dinâmica deste processo e os recursos disponíveis condicionam as opções estratégicas da empresa. Este conceito é sintetizado por Teece, Pisano e Shuen (1997, In: FOSS, 1997, p. 270), ao afirmarem que “as capacidades dinâmicas são o sub estabelecimento de competências/capacidades que permitem à firma criar novos produtos e processos e responder às circunstâncias de mudanças do mercado”. Os preceitos teóricos envolvidos na discussão da RBV e das capacidades dinâmicas da organização estão na origem da compreensão da empresa como um portfólio de recursos que, articulados pela organização no sentido de oportunizar uma vantagem competitiva sustentável, geram competências que são únicas e valiosas.
A abordagem das competências das organizações, como fator de geração de vantagem competitiva sustentável, é inaugurada com Hamel e Prahalad (1990) no artigo The Core Competence of the Corporation. É importante destacar que o conceito de competência da organização remonta da abordagem de Selznick (1972), que destaca a importância da organização em criar uma competência que a distinga da concorrência, valorizando o papel estratégico e central da competência da empresa. Esta perspectiva é compartilhada por outros autores (GRANT, 1991; LEONARD-BARTON, 1992; NONAKA e TAKEUSHI, 1997), que afirmam que as competências devem ser protegidas e realimentadas, proporcionando que seu caráter dinâmico implique a geração de novas fontes de vantagem competitiva para a organização. Sanchez, Heene e Thomas (1996) compreendem a competição baseada em competências como um processo dinâmico, cognitivo e holístico. Para os autores, as organizações são sistemas abertos que buscam o alcance de seus objetivos estratégicos por meio de processos de gerenciamento de seus recursos. Prahalad (1999) afirma que a geração de novas competências da firma exige que os elementos que compõem seu atual sistema de competências seja reavaliado continuamente, sendo ele formado, principalmente, pelo conhecimento incorporado pelas pessoas, pela empresa e pelos fornecedores. Neste contexto, o desafio das organizações é o de criar as condições para que o processo de desenvolvimento de competências seja administrado e seja gerador de capacidades para toda a empresa.
As competências da organização possuem uma condição dinâmica, que estão diretamente relacionadas às escolhas estratégicas, à trajetória da firma ao longo do tempo (path dependence) e ao processo de inovação e a aprendizagem organizacional (HAMEL E PRAHALAD, 1995; GRANT, 1991; LEONARD-BARTON, 1992; NONAKA e TAKEUSHI, 1997). A mobilização das competências organizacionais gera valor percebido pelo cliente e contribui para a ampliação da vantagem competitiva da empresa (BARNEY, 1991; HAMEL e PRAHALAD, 1995).
Diante do referencial teórico exposto, o mercado da BP pode ser compreendido como um contexto onde as competências da organização podem ser desenvolvidas, a partir da dinâmica de criação de novas capacidades, contribuindo para o desempenho e competitividade da empresa.
Com base no referencial teórico desenvolvido foi estabelecida a proposição do estudo:
A estratégia de acesso a negócios da BP desenvolverá competências organizacionais únicas que darão suporte para a competitividade da empresa no novo mercado.
O estudo realizado na operação de venda de calçados por catálogo da empresa Azaleia no mercado colombiano busca avaliar se a proposição acima é válida.
A figura a seguir sintetiza a revisão teórica que sustenta este trabalho. Observa-se que nesta destacam-se os principais elementos que fazem parte da análise e as premissas do estudo, derivadas da proposição geral apresentada anteriormente. Estas premissas envolvem a geração de valor percebida pelo cliente (P1), a aprendizagem organizacional, trajetória e inovação na empresa (P2) e as estratégia de acesso a negócios da BP e competitividade (P3).
Figura 1: Mapa conceitual
Fonte: Elaborado pelos autores
4. Procedimentos Metodológicos
A pesquisa foi realizada através de um estudo de caso qualitativo descritivo. Para escolha do caso, foram estabelecidos os seguintes:
- o porte da organização e sua capacidade de expansão e capilarização de suas competências;
- a atuação destacada da empresa em mercados da base da pirâmide econômica, com a utilização de modelos diferenciados de gestão do negócio.
Com base nestes critérios e por caracterizar um caso representativo de estudo, foi selecionada a empresa brasileira Azaleia e sua atuação na venda de calçados por catálogo no mercado colombiano, como a unidade de análise deste estudo. Esta seleção buscou a consonância entre os objetivos e proposições de estudo com a atuação da empresa em seu segmento, destacando-se a relevância e contemporaneidade dos dados pesquisados.
As fases que compuseram a pesquisa são descritas a seguir:
A) Fase Exploratória Inicial: Após a revisão inicial da literatura e seleção do caso estudado, foi elaborado um questionário, com perguntas abertas, para conhecer melhor a organização e verificar a relevância da experiência. O questionário foi encaminhado para um dos gestores da empresa no Brasil, ligado diretamente à implantação da venda de calçados por catálogo no Peru, na Colômbia e no México, em sua sede na cidade de Parobé, Rio Grande do Sul;
B) Fase Descritiva Intermediária: Após a elaboração do protocolo de pesquisa e da realização da fase exploratória inicial, a fase seguinte foi guiada pelo objetivo de identificação das características inerentes ao empreendimento de venda de calçados por catálogo e suas implicações na dinâmica das competências organizacionais no mercado direcionado para a população da base da pirâmide econômica. Para tanto, foi elaborado um questionário com perguntas abertas que guiaram as entrevistas com os gestores da empresa no Brasil.
C) Fase Avançada: Foi definido um cronograma de entrevistas e coleta de dados que se concentrou na capital da Colômbia, Bogotá, local onde a empresa mantém sua principal base de operações naquele país. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio digital, sendo posteriormente transcritas, permitindo a análise do seu conteúdo. As conversas foram realizadas em espanhol e a transcrição das mesmas foi conduzida por um profissional especialista neste idioma, mantendo as mesmas em seu idioma original, garantindo a integridade e confiabilidade das informações coletadas. O processo de transcrição das 15 entrevistas realizadas, incluindo aquelas realizadas na fase intermediária, resultou em 269 laudas para análise. Na fase Avançada foram entrevistados o gestor da Azaléia na Colômbia, a gestora da venda por catálogos, a coordenadora de logística da empresa, a dirigente da Asociación Colombiana de Venta Directa (ACOVEDI), a coordenadora de zona da venda por catálogo, responsável pela zona de Bogotá, 5 promotoras de vendas, o gestor e a coordenadora de marketing. Além das entrevistas houve a observação não participante, por ocasião do acompanhamento do trabalho de campo junto às promotoras de venda da empresa.
D) Coleta de Dados Secundários: A coleta de dados secundários incluiu os seguintes levantamentos: amostras de catálogos de empresas que atuam na venda direta na Colômbia, fornecidos pela dirigente da ACOVEDI; dados relativos à comercialização por catálogos na Colômbia e no mundo, retirados dos sites de associações nacionais de venda direta; dados de comercialização de calçados extraídos das resenhas estatísticas da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (ABICALÇADOS); informações da Azaléia S/A e da Vulcabras S/A, em especial quanto à formação societária e estrutura de gestão, fornecidos pela empresa ou retirados de fontes de informações públicas; reportagens em jornais e revistas alusivos à empresa pesquisada.
E) Análise do Dados: Para auxiliar na análise e interpretação dos dados qualitativos levantados nas etapas de coleta, utilizou-se o software NVivo 8. O software contribuiu para indexar os trechos das entrevistas obtidas durante a coleta de dados a partir das categorias de análise relacionadas com a problemática proposta pela pesquisa. As categorias de análise, portanto, foram criadas com base no referencial teórico e leitura preliminar das entrevistas transcritas. As categorias de análise do estudo e as suas respectivas subcategorias são as seguintes:
Categorias de Análise |
Elementos de Análise no NVivo 8 |
Inovação |
Inovação em Processos e/ou Produtos |
Estratégia |
Alinhamento de Processos |
Alavancagem de Recursos |
Aprendizagem |
Melhoria |
Novas Habilidades |
Valor |
Valor Percebido pelo Cliente |
Dependência de Trajetória |
Trajetória da Empresa |
Quadro 1: Categorias e elementos de análise
Fonte: Elaborado pelos autores
5. A Operação de Venda de Calçados Por Catálogo da Azaleia Colômbia
A Calçados Azaleia S.A. foi fundada em dezembro de 1958, quando cinco jovens empreendedores alugaram um galpão de madeira desativado em Parobé, cidade distante aproximadamente 82 quilômetros de Porto Alegre, Capital do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Condições econômicas favoráveis e utilização de técnicas mais avançadas de produção permitiram que a Azaleia ampliasse sua capacidade de produção e em 1990, a empresa inicia o seu processo de internacionalização. Destaca-se que, desde o início da internacionalização da marca, a Azaleia focou suas vendas para mercados latinos vizinhos, onde hoje está concentrada cerca de 80% de suas exportações.
As atividades da Azaléia na Colômbia iniciaram em 1998, com a instalação de um escritório de vendas, que atuava como representante da marca localmente. As exportações eram feitas diretamente aos importadores, que concentravam suas atenções na distribuição para o mercado. Como conseqüência do crescimento das vendas e aceitação da marca na Colômbia, a empresa adotou, a partir de 2000, uma estratégia mais agressiva, passando a estruturar suas operações por meio de uma unidade comercializadora própria, que se transformou em uma distribuidora da marca para todo o país, conhecida como Calzados Azaléia de Colombia Ltda (Azaleia Colômbia ou AC). Esta estratégia proporcionou a expansão da base de comercialização da Azaleia, pois pequenos compradores que antes não tinham condições de importar calçados de forma direta com a fábrica, no Brasil, vislumbraram a possibilidade de comprar em pequenas quantidades por meio da filial colombiana. A primeira iniciativa da AC foi a designação de uma equipe especialmente responsável pela operação de venda por catálogo. Paralelo a esta ação, a empresa precisou desenvolver três alterações em sua estrutura de gestão de vendas. A primeira se refere à individualização do produto, a segunda à criação de um sistema informatizado de suporte a operação e a terceira à criação de uma estrutura de transporte adequada para a distribuição de pedidos diários. A individualização do produto era necessária, visto que o calçado é habitualmente vendido em prepack de 12 pares e a venda por catálogo precisa ser feita por unidade, pois os pedidos são realizados individualmente. Esta mudança afetou profundamente o sistema de embalagem e estoque da empresa. A criação de um sistema informatizado foi outro passo indispensável para tornar a operação factível, considerando que a estimativa de volume de pedidos era de crescimento, a partir da individualização dos pedidos e da ampliação da base de clientes. Por fim, a entrega dos produtos vendidos por catálogos precisa ser feita diretamente no endereço do solicitante, em muitos casos em locais afastados de Bogotá ou de Cartagena das Índias, locais onde a AC mantém centros de distribuição e estoque. A empresa resolveu este problema logístico com a contratação de empresas de transporte de médio ou pequeno porte.
Após a montagem da estrutura inicial para a operação, o primeiro catálogo da AC foi lançado em dezembro de 2005, após, aproximadamente, seis meses de preparação. Na operação iniciada na Colômbia, o catálogo é próprio e exclusivo da AC, bem como toda a rede logística e de comercialização dos produtos. Há uma estrutura de atendimento e operação exclusiva, direcionada para este canal de distribuição. Todas as demais operações de suporte são sustentadas pelos departamentos administrativos da empresa, que prestam serviços a todos os canais comerciais. Atualmente, a AC conta com uma equipe que se dedica integralmente a atividade de venda de calçados por catálogo no mercado colombiano. Na Colômbia trabalham 85 funcionários, sendo que 9 deles estão diretamente ligados à operacionalização do sistema de distribuição por catálogos, nas seguintes áreas: comercial, carteira, faturamento e armazém (despacho). Além dos funcionários, ligados diretamente a AC, o sistema de venda por catálogos conta com coordenadoras de zona e promotoras de vendas, que não possuem vínculo empregatício com a empresa e recebem ganhos sobre suas vendas.
As coordenadoras de zona estão distribuídas pelo país, orientando e dando suporte às atividades das promotoras de venda, que efetivamente são responsáveis pela comercialização do produto. No entanto, o início das atividades da venda por catálogo foi restrito à zona de Bogotá, expandindo-se gradualmente, conforme a rede de coordenadoras e promotoras era montada pela gestora da venda de catálogos da AC. Atualmente a AC possui cerca de 19 coordenadoras de zona, que abastecem diariamente a empresa com pedidos de compra, que são processados, cobrados e entregues em até 4 dias após realizado o pedido.A empresa lança uma nova edição do catálogo de calçados a cada mês, alterando ofertas e incluindo novos produtos, fazendo com que ele chegue até as mãos das promotoras de vendas, que efetuarão as encomendas utilizando o software de pedidos pela internet. A venda por catálogos representa, aproximadamente, 10% do total de vendas da AC, que mantém os canais tradicionais (lojas próprias e pequenos e grandes varejistas) operando em separado.
A venda por catálogos na Colômbia conta com uma base entre 700 e 800 mil pessoas atuando como promotores de venda, cuja principal característica é, cerca de 80%, pertencerem aos estratos sociais 2 e 3. A estrutura socioeconômica colombiana é distribuída em 6 estratos sociais (1 a 6), sendo o estrato 1 aquele que recebe a menor remuneração e o estrato 6 o de maior ganho. A Colômbia possui uma população estimada de 45 milhões de habitantes, sendo o terceiro país mais rico da América do Sul, tendo como base a comparação entre o Produto Interno Bruto (PIB) dos países. No entanto, possui 49,2% da população abaixo da linha da pobreza (Cia World Factbook, 2009). A situação de grande concentração de riqueza na camada mais alta da população, que corresponde a apenas 3,10% dos lares (estratos 5 e 6), e a principal característica associada à modalidade de venda por catálogos, em se tornar uma fonte de renda ou complementação de renda para as pessoas envolvidas, estabelece a adesão maciça dos estratos sociais 2 e 3 a este tipo de comercialização.
Prahalad (2006) enfatiza que as organizações precisam desenvolver métodos eficazes de acesso ao mercado da BP, pois os sistemas tradicionais de distribuição são tão decisivos para o sucesso do negócio quanto a inovação em produtos e serviços. Os sistemas logísticos redesenhados para a BP traz para organização como benefício adicional, além da eficiência na operação, a proximidade com o consumidor. A AC atuou fortemente na gestão da cadeia de distribuição e na busca de ampliação do contato com o consumidor. A principal capacidade desenvolvida pela AC é destacada por seus gestores como sendo a utilização do canal de venda, distribuição e controle baseado na tecnologia de informação desenvolvida exclusivamente para a nova operação. A compreensão da dinâmica do mercado de venda por catálogo, aliado com o conhecimento sobre comercialização de calçados e a adaptação promovida na logística de venda e entregas da AC fez com que a empresa criasse uma capacidade única no empreendimento. Enquanto as demais empresas que comercializam neste meio trabalham com o lançamento de um novo catálogo a cada 21 dias ou mais e faturam seus pedidos dentro deste prazo, a AC criou uma estrutura que lhe proporciona a realização de pedidos diários e faturamento imediato. As empresas tradicionais são dependentes da distribuição dos novos catálogos para as promotoras de venda para que os pedidos possam entrar no processo de cobrança e entrega. Com a implantação do sistema de pedidos on-line, a AC possui a capacidade de receber, faturar, embalar e enviar os pedidos aos clientes diariamente. A adaptação do sistema de embalagem da AC foi outro ponto afetado diretamente pela operação de venda por catálogo. A venda por catálogo é feita por peça, enquanto que a comercialização para os lojistas é feita em prepaks de doze unidades. Este era um fato crucial para o sucesso da operação, visto que a venda por catálogo se caracteriza por pedidos de pequenas e diversificadas unidades. Esta alteração na logística teve impactos profundos no sistema de armazenamento, embalagem, distribuição e faturamento. Prahalad (2006) destaca como um dos pilares para a inovação no mercado da BP o sistema de distribuição, que deve ser adaptado às condições peculiares deste mercado.
A inovação no modelo de negócios de venda de calçados por catálogo da AC está focada principalmente em processos que dão suporte à operação. A deficiência na inovação em produto, originada pela dependência do lançamento das coleções da fábrica brasileira, é compensada com a oferta seqüencial e balanceada dos produtos a cada nova edição do catálogo. A inovação em lançamentos de produtos e no acesso ao mercado, que o canal de venda de calçados por catálogo proporciona, possui como objetivo atender às necessidades do cliente e gerar valor percebido por ele. Além destes fatores, o modelo de negócios implantado pela AC traz um benefício adicional ao cliente, que é a geração de renda por meio da comercialização do produto da empresa, tornando o consumidor um promotor de vendas da empresa.
A experiência da Azaleia na venda de calçados por catálogo no mercado mexicano, aliada com a consolidação da operação colombiana, foi o fator motivador para que a empresa empreendesse o negócio da venda direta na Colômbia. A partir desta motivação, a estratégia da organização esteve diretamente relacionada com a necessidade de recuperação de competitividade após a perda de mercado originada pela variação cambial, o interesse da empresa em minimizar a dependência dos intermediários (lojistas) e a perspectiva de criar maior proximidade com o consumidor. Para empreender no novo canal de comercialização, a organização precisou conhecer profundamente a venda por catálogo, tanto em relação ao mercado quanto ao processo, preparando-se durante seis meses antes de iniciar a operação. A inovação em processos foi decisiva para o sucesso do empreendimento, visto que a AC, por depender diretamente da produção realizada na fábrica brasileira, possui limitações em relação à inovação de produtos. Para isso, a empresa inovou seu sistema de pedidos, a logística de armazenamento e entrega, na tecnologia que suporta a operação e o sistema de vendas. Por fim, o resultado para a empresa foi a criação de um novo canal de vendas, que favoreceu uma maior proximidade com o consumidor e maior margem de ganho para a empresa, e para o consumidor foi o ganho financeiro, a possibilidade de acesso ao produto e a relação afetiva estabelecida com a empresa. A aprendizagem organizacional, no canal de venda de calçados por catálogo da AC, é propulsora para a adaptação e consolidação das competências que suportam a atuação da empresa no mercado.
Com base nos fatores elencados acima, as competências geradas na AC, a partir da implantação do negócio de venda de calçados por catálogo, são descritas como:
- Competência Comercial: capacidade de atender de forma individualizada o consumidor;
- Competência Logística: capacidade de distribuição de calçados, de forma personalizada e ágil, atendendo diferentes localidades e perfis de consumidores.
6 Conclusões
Apesar da trajetória bem sucedida desde a implantação da unidade comercializadora em 1998, a AC passou a perceber que a expansão do negócio era necessária para enfrentar as dificuldades de mercado que surgiram após a desvalorização cambial que se intensificava em 2004, afetando diretamente a competitividade da empresa no mercado colombiano. Conhecer o mercado de venda de calçados por catálogo, que está concentrado nos estratos sociais 2 e 3, tornou-se essencial para a implementação da estratégia da AC, que estava condicionada à necessidade de criação de novos canais de comercialização para compensar a redução na margem de ganho nas vendas que a empresa enfrentava a partir de 2004. Após conhecer a operação mexicana e implantar a venda de calçados por catálogo na Colômbia no final de 2005, a empresa buscou a expansão moderada das atividades, a partir de Bogotá, base principal da empresa. Esta estratégia destaca a cautela da organização em aprender profundamente com o mercado antes intensificar suas operações na Colômbia.
Os gestores da Azaleia destacam que a organização optou por abordar a venda de calçados por catálogo como um negócio independente, tratando-o em separado dos demais canais devido às particularidades inerentes ao empreendimento. O objetivo da AC é a minimização da dependência da empresa com o lojista, que garante margens de lucratividade muito justas para a operação. A venda de calçados por catálogo elimina o intermediário e facilita o gerenciamento da margem de lucro da empresa. O canal de venda por catálogo proporciona para organização uma margem de contribuição maior sobre o preço final de comercialização e a proximidade maior com o consumidor.
A proposição do presente estudo relaciona a consolidação das competências da organização com a sua estratégia, partindo da lógica de que as opções estratégicas movem a empresa para a geração de competências que serão significativas para sua competitividade. A proposição afirma que “a estratégia de acesso a negócios da BP desenvolverá competências organizacionais únicas que darão suporte para a competitividade da empresa no novo mercado”. Esta proposição é ratificada ao analisar a opção pelo modelo de negócio implantado pela AC. A empresa ingressou neste mercado a partir de sua experiência no México e da criação de um modelo de negócios adaptado à realidade colombiana. A empresa optou pela criação de um setor especifico para atender ao novo consumidor. Não há o menor indício, conforme as entrevistas realizadas, de que haja a transferência de competências entre os setores da empresa. Ou seja, a aprendizagem oriunda da experiência da AC no novo modelo de venda de calçados por catálogo e as competências desenvolvidas a partir deste negócio estão concentradas exclusivamente no setor responsável pela operação, não sendo compartilhadas na empresa.
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