Renato Dagnino
O próximo passo do longo e arriscado caminho a que se fez referencia da introdução deste trabalho implica numa mudança de foco. Trata-se de passar da América Latina para os paises avançados de modo a avaliar como a esquerda hoje concebe as relações entre Ciência, a Tecnologia e a sociedade para desta forma vislumbrar como elas podem se materializar numa política adequada à realidade de países periféricos como o nosso. Essa rápida síntese destaca três direções de crítica da esquerda contemporânea ao pensamento hegemônico de direita sobre essas relações. Dela se poderá extrair uma orientação para a construção de um substrato analítico-conceitual e de um marco institucional para uma PCT de esquerda, e para construir propostas para ação imediata no âmbito dos governos de esquerda.
Ao criticar o uso do conhecimento pelas elites para viabilizar a exploração da classe trabalhadora, por um lado, e a incapacidade do socialismo real para gerar uma C&T coerente com o interesse dos trabalhadores e com o estilo de desenvolvimento sustentável que desejam, por outro, a esquerda tem revisitado a análise da história da C&T contada por pensadores do capitalismo. E o tem feito partindo da incidência da C&T sobre sua contradição central, a relação capital-trabalho. Ou, mais especificamente, da forma como o capital as usa crescentemente para viabilizar sua reprodução ampliada tirando partido da característica singular da mercadoria força de trabalho: o fato de ela poder ser trocada por um não-equivalente em termos de tempo de trabalho socialmente necessário.
Antes de Marx, outros pensadores já haviam mostrado que o preço das mercadorias era uma manifestação social do tempo de trabalho nelas incorporado na esfera da produção (o qual regulava a troca de equivalentes em valor), e não um suposto equilíbrio entre oferta e demanda logrado através do mercado.
Marx avança evidenciando que esse tempo de trabalho que determina o valor das mercadorias, entendido este como uma construção social, é dividido em três partes; que correspondem às matérias-primas e depreciação das máquinas, ao lucro do capitalista, e ao salário que ele paga ao trabalhador pela mercadoria força de trabalho. Origem, vale ressaltar, da acumulação capitalista.
Marx mostra também que esse lucro mais valia, para ser exato pode ser aumentado continuamente pelo capitalista através do emprego de novas tecnologias máquinas, equipamento, métodos de gestão da mão-de-obra etc - que diminuam a terceira parte, correspondente ao tempo que o trabalhador gasta para produzir as mercadorias em sua empresa. Ou, então, pela ação de outras tecnologias, em outras empresas, que permitam a produção das matérias-primas ou dos bens que consomem os trabalhadores num tempo menor.
Ou seja, que o desenvolvimento de tecnologias que permitam reduzir a parte do valor da mercadoria efetivamente pago ao trabalhador pelos capitalistas donos dos meios de produção, e maximizar o que Marx chama de mais valia relativa, é o motor da acumulação do capital e a condição de manutenção da exploração da classe trabalhadora.
Marx foi além ao mostrar como a pesquisa científica passava a incorporar-se à lógica capitalista ao proporcionar conhecimentos apropriados para aumentar o controle do capitalista sobre o processo de trabalho, cada vez mais parcelizado, alienante (dissociador do trabalho intelectual do braçal), hierarquizado, heterogestionário. O caráter de construção social da C&T é também evidenciado quando ele aponta como, em dezenas de processos de inovação que então estavam ocorrendo, alternativas de igual eficiência técnica eram escolhidas em função da facilidade com que o capitalista ou gerente podia diminuir o preço da força de trabalho. Quer através do controle sobre o processo de trabalho em sua empresa, aumentando o tempo de trabalho não pago ou a produtividade do trabalho, quer diminuindo o número de trabalhadores necessário para a produção e, desta forma, ao reduzir-se a oferta de empregos, abaixando o salário real.
A direita evitou o questionamento do marxismo apoiando-se no velho mito iluminista - da neutralidade da ciência que a idealiza como resultado intrinsecamente verdadeiro, e cada vez melhor, da relação (individual) de um Homem curioso com uma Natureza perfeita. Dessa forma, tem logrado mascarar o caráter de construção social do conhecimento que, sob a égide do capitalismo, se verifica em benefício de seu objetivo de dominação. Um outro mito, positivista, do determinismo, que confere ao desenvolvimento tecnológico atributos de endogenia, linearidade e inexorabilidade que assegurariam eficiência crescente e a serviço de todos, tem sido usado para compor no plano ideológico superestrutural o suporte para a manutenção das relações sociais e materiais que, no plano da infra-estrutura técnico-econômico, garantem a exploração capitalista.
A esquerda contemporânea, criticando o novo fetiche unificador a inovação que a direita ideou para tentar convencer a sociedade que ela só poderá evoluir caso incorpore celeremente este fruto desses dois processos quase supra-humanos, tem atuado em três direções complementares.
Primeiro, argumentando de modo radical que o estilo de desenvolvimento alternativo que defende não pode ser construído tendo por base o conhecimento, aparentemente neutro e progressista, mas intrinsecamente excludente e predatório engendrado por um sistema que só logra manter-se às custas de violência crescente. Que, tal como mostrou o socialismo soviético (forçado a recriar o controle autoritário que a tecnologia capitalista no qual se fundou exigia, e por esta via engendrar a degenerescência burocrática), não basta a mera apropriação pela classe trabalhadora, e em seu benefício, do conhecimento que maximiza a mais-valia. Isto é, que a transformação que ela anseia demanda a concepção de um conhecimento alternativo ao existente, por mais difícil e utópico que isso seja.
Segundo, resignando-se, dialética e realistamente, a “não jogar a criança com a água do banho”, mostrando como a adoção de agendas de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico que internalizem valores ético-sociais (e sua contrapartida técnica) coerentes com um estilo alternativo de desenvolvimento podem levar à concepção de um outro tipo de conhecimento. Consciente de que essa reorientação da trajetória da C&T, embora seja um desafio histórico sem precedentes, é indispensável para seu projeto político, a esquerda tem substituído as receitas totalizadoras, ingênuas e voluntaristas do passado pela proposição de estratégias de pesquisa e docência ancoradas nos interesses dos movimentos sociais que alavanquem processos de adequação sócio-técnica coerentes com esse estilo alternativo.
Terceiro, mostrando que a crescente subordinação da dinâmica de exploração da fronteira do conhecimento científico-tecnológico ao interesse das empresas transnacionais não produz apenas trabalhadores desempregados e pesquisadores obcecados por uma “qualidade” enganosa. Que também empresários pequenos e médios vêem-se cada vez mais debilitados frente a uma situação como a atual em que as dez transnacionais que mais realizam pesquisa gastem mais do que a Inglaterra e a França juntas.
Ao apontar essas direções de crítica, a esquerda contemporânea tem mostrado o alto grau de convergência política possível entre esses três atores diretamente envolvidos com a C&T. Grau este que se torna potencialmente muito maior em se tratando de países periféricos como o nosso. Mas que exige para se tornar efetivo um processo de politização do debate que resgate a C&T da “neblina ideológica” em que se encontra.
De fato, essa crítica ao pensamento formulado pela direita não alcançou ainda a cena brasileira. Pelo contrário, tem ecoado aqui, ampliada, a proposição do neoliberalismo - aparentemente neutra, mas de fato ideologizada e contrária os interesses desses três atores e da sociedade - sobre a importância da “inovação” para a “competitividade” das empresas e para o “progresso” dos países num mundo “globalizado”.
Por isso, esse pensamento permanece hegemônico na condução do esforço nacional de pesquisa e formação de recursos humanos, mantendo-a infensa à crítica política da esquerda; como se esta área de intervenção do estado não estivesse estado como outras a serviço do projeto neoliberal.
A existência desse pensamento tem dificultado também a construção no âmbito da esquerda de um marco analítico-conceitual alternativo capaz de integrar a questão do desenvolvimento científico e tecnológico na sua proposta global de transformação sócio-econômica e cultural, e a concepção de um estilo de PCT com ela coerente. Como resultado, nas instâncias de governo que vem logrando conquistar, a esquerda não tem sido capaz de implementar ações na área de C&T à altura das demandas tecnológicas que aquela proposta contém. Não tem sequer logrado politizar o tema, acompanhando o movimento protagonizado pela esquerda contemporânea, no âmbito do aparato do estado e da sociedade, e dos professores, pesquisadores e gestores que conformam nosso complexo público do ensino superior e da pesquisa. Nem mesmo tem conseguido contrapor-se à ofensiva da direita para seguir implementando seu projeto político na área de C&T.
A absoluta precedência desse processo de politização do tema em relação à elaboração de um marco analítico-conceitual adequado necessário para conceber uma PCT de esquerda, tem sido crescentemente percebida por setores que, entendendo-o como uma prioridade, o tem colocado em marcha.
A ampliação dessa politização da C&T no âmbito nacional, supõe a utilização pela esquerda dos instrumentos, inclusive institucionais, de que dispõe para envolver comunidade de pesquisa, gestores públicos, empresários e ONGs, juntamente com a sociedade e seus movimentos sociais organizados, na construção de uma PCT de esquerda. Uma política que, levando em conta os diferentes atores e correntes de opinião que compõem o pacto que lidera, privilegie o interesse daqueles que estrategicamente representa, os trabalhadores.